A república - Platáo
Platão
A República
LIVRO I
SÓCRATES Fui ontem ao Pireu com Glauco, filho de
Aríston, para orar à deusa, e também para me certificar de
como seria a festividade, que eles promoviam pela primeira
vez. A procissão dos atenienses foi bastante agradável, embora
não me parecesse superior à realizada pelos trácios. Após termos
orado e admirado a cerimônia, estávamos regressando à cidade
quando, no caminho, fomos vistos a distância por Polemarco,
filho de Céfalo. Ele mandou seu jovem escravo correr até nós,
para nos pedir que o esperássemos. O servo puxou-me pela
capa, por trás, dizendo:
Polemarco pede que o esperem.
Virei-me e indaguei onde seu amo se encontrava.
Está vindo atrás de mim respondeu o jovem.
Esperem-no.
Evidente que o esperaremos declarou Glauco.
Polemarco chegou poucos minutos depois, juntamente com
Adimanto, irmão de Glauco, com Nicerato, filho de Nícias, e
com outros que regressavam da procissao.
Polemarco Sócrates, parece-me que estás indo embora
para a cidade.
Sócrates Tua suposição está correta.
Polemarco Estás vendo quantos somos?
Sócrates Sim, estou vendo.
Polemarco Então, se não fordes mais fortes que nós,
tereis de permanecer aqui.
Sócrates Existe a possibilidade de convencer-vos a permitir
que partamos?
Polemarco Será que conseguireis convencer-nos, se não
quisermos ouvir?
Glauco De forma alguma.
Polemarco Saibais então que não vos ouviremos.
Nesse momento Adimanto perguntou:
Desconheceis que esta noite haverá uma corrida com
archotes, a cavalo, em honra da deusa?
Sócrates A cavalo?! Significa que os contendores passam
os archotes uns aos outros enquanto correm com seus cavalos?
Polemarco Sim. E haverá também uma festividade noturna
digna de ser vista. Iremos assistir a essa festa depois de
havermos jantado. Muitos jovens estarão lá, e poderemos conversar
com eles. Ficai para irdes conosco.
Glauco Não há dúvidas de que teremos de ficar.
Sócrates Se julgas assim, é o que faremos.
Dirigimo-nos à casa de Polemarco, onde encontramos
seus irmãos Lísias e Eutidemo, e também Trasímaco de Calcedônia,
Carmantides de Penéia e Clitofonte, filho de Aristónimo.
Havia também o pai de Polemarco, Céfalo. E este se
me afigurou bastante idoso, pois não me encontrava com ele
havia bastante tempo. Estava acomodado numa cadeira com
almofadas e envergava uma coroa na cabeça, pois tinha oferecido
um sacrifício no pátio da moradia. Nos sentamos todos
em cadeiras junto dele.
Céfalo Tu vens raramente ao Pireu, Sócrates, para nos
visitar. Devias vir mais vezes. Se eu fosse suficientemente forte
para caminhar até a cidade, não precisarias vir aqui: nós nos
dirigiríamos à tua casa. No entanto, és tu que tens a obrigação
de vir cá mais amiúde. Pois, para mim, cada vez mais os prazeres
do corpo cedem lugar ao desejo e ao deleite da conversação.
Dá, então, a estes jovens o proveito da tua companhia e vem
mais vezes a esta casa de teus muito íntimos amigos.
Sócrates Em verdade, Céfalo, eu aprecio conversar com
os velhos. Penso que devemos aprender com eles, pois são pessoas
que nos antecederam num caminho que também iremos
trilhar, para assim conhecermos como é: áspero e árduo ou tranqüilo
e cômodo. Com certeza, ser-me-ia agradável conhecer tua
opinião, porquanto já alcançaste a fase da existência que poetas
denominam o limiar da velhice. Como julgas este momento
da tua vida?
Céfalo Agrada-me, Sócrates, expressar meu pensamento.
Cultivo o hábito de encontrar-me com pessoas da mesma
idade. Muitos de nós lamentam-se, recordam os prazeres da
juventude e, ao lembrar do amor, da bebida, da boa comida e
de outros prazeres, atormentam-se como pessoas privadas de
bens notáveis, que em outra época viviam bem e que, agora,
nem ao menos vivem. Vários manifestam pesar pelas ofensas
oriundas dos parentes e imputam à velhice a causa de tantos
sofrimentos. Contudo, em meu modo de ver, Sócrates, eles se
enganam a respeito da verdadeira causa de suas misérias, pois,
se ela fosse realmente a velhice, também eu sentiria o mesmo
desconforto, assim como todos aqueles que chegaram a esta
fase da vida. Mas a verdade é que tenho encontrado velhos
que se expressam de maneira muito diferente. Certa vez, indagaram
ao poeta Sófocles, em minha presença:
Qual é tua opinião a respeito do amor, Sófocles? Ainda
te julgas capaz de amar?
E ele respondeu:
Falemos baixo! Libertei-me do amor com o prazer de
quem se liberta de um senhor colérico e truculento.
Naquela época dei-lhe razão, e dou-lhe ainda hoje. Porque
é bem verdade que a velhice nos proporciona repouso, livrando-
nos de todas as paixões. Quando os desejos diminuem, a
asserção de Sófocles revela toda a sua justeza. E como se nos
libertássemos de inúmeros e enfurecidos senhores. No que diz
respeito aos desgostos, aos aborrecimentos domésticos, estes
têm apenas uma causa, Sócrates, que não é a velhice, mas o
caráter dos homens. Se eles tiverem bom caráter e espírito equilibrado,
a velhice não lhes será um fardo insuportável. Para os
que não são assim, tanto a velhice quanto a juventude lhes serão
desgostosas.
E eu, encantado com as suas palavras e desejoso de continuar
a ouvi-lo, provoquei-o e disse-lhe:
Eu creio, Céfalo, não serem muitos os que apóiam tuas
idéias, porque julgam não ser teu caráter, porém a tua riqueza
que te ajuda a tolerar bem a velhice. Com efeito, o dinheiro
traz muitas compensaçoes.
Céfalo É verdade que não me apóiam. E têm certa razão,
apesar de não ser tanta quanto crêem. Existe muito de verdadeiro
na resposta de Temfstocles ao indivíduo de Serifo que o
insultou dizendo-lhe que era famoso por causa de sua pátria e
não por causa de seus próprios méritos. Eu não teria me transformado
num homem célebre, se tivesse nascido em Serifo, tampouco
tu, se fosses ateniense. Do mesmo modo, àqueles que,
não sendo ricos, se lamentam da velhice, poder-se-ia dizer que,
se é verdade que um homem bom não pode ser totalmente feliz
na velhice, também riqueza alguma poderá proporcionar a paz
a um homem mau.
Sócrates Diz-me, Céfalo, tu obtiveste por herança teus
bens ou os conquistaste?
Céfalo Quanto é que conquistei, Sócrates? Como comerciante,
fiquei entre meu avô e meu pai. Meu avô, de quem
possuo o mesmo nome, recebeu por herança uma fortuna quase
igual à que tenho agora, e a aumentou. Enquanto meu pai,
Lisânias, tomou-a menor do que é hoje. Eu ficarei satisfeito se
não a deixar diminuída a estes jovens, e sim um pouco superior.
Sócrates Perguntei-te isto porque pareceu-me que não
estimas a riqueza em excesso, ao contrário daqueles que a adquirem
com o próprio trabalho, os quais a prezam muito mais.
Da mesma maneira que os poetas adoram seus versos, e os
pais aos filhos, um comerciante preza sua riqueza por ser obra
sua, e também por causa de sua utilidade, igualmente a todos
os outros homens. Este é o motivo por que é difícil a convivência
com eles, pois se interessam apenas pelo dinheiro.
Céfalo Tens razão.
Sócrates Diz-me mais uma coisa: qual foi o maior proveito
que recebeste pelo fato de possuíres tão grande fortuna?
Céfalo Se eu o dissesse, não conseguiria convencer muitas
pessoas. Como tu sabes, Sócrates, quando alguém chega à
idade em que toma consciência de que logo morrerá, surgem-lhe
o temor e a preocupação a respeito de assuntos nos quais antes
não pensava. Efetivamente, tudo o que se conta a respeito do
Hades, onde serão expiados os atos maus praticados em vida,
todas essas fábulas das quais até então ele fazia troça, agora
aterrorizam sua alma, por temer que correspondam à verdade.
E esse alguém devido à debilidade da velhice, ou porque
divisa agora com maior clareza as coisas do além toma-se
repleto de desconfianças e receios, inicia a fazer cálculos e a
analisar se cometeu alguma injustiça com alguma pessoa. E
aquele que encontrar em sua vida pregressa muitas maldades
intimida-se, seja acordando numerosas vezes durante a noite,
da mesma forma que as crianças, seja esperando alguma desgraça.
Ao contrário, aquele que sabe não haver cometido injustiças
sempre alimenta uma doce esperança, benévola ama da
velhice, como declara Píndaro. São encantadoras as palavras
deste poeta, ó Sócrates, a respeito de quem tiver levado uma
existência justa e pura:
a doce esperança
que lhe acalenta o coração acompanha-o,
qual amada velhice, a esperança que governa, mais que tudo,
os espíritos vacilantes dos mortais.
Palavras maravilhosas. Devido a isto, tenho as riquezas
em grande apreço, não para todos, mas somente para aqueles
homens moderados e cautelosos. Jamais enganar alguém ou
mentir, ainda que inadvertidamente, nem ser devedor, quer de
sacrifícios aos deuses, quer de dinheiro a uma pessoa, e depois
falecer sem nada recear. Para isso, a riqueza é de grande serventia.
Existem várias outras vantagens. Porém, mais do que
tudo, á Sócrates, é por causa desta finalidade que eu considero
a riqueza utilíssima para o homem judicioso.
Sócrates As tuas são palavras maravilhosas, ó Céfalo.
Mas essa virtude de justiça resume-se em proferir a verdade e
em restituir o que se tomou de alguém, ou podemos dizer que
às vezes é correto e outras vezes incorreto fazer tais coisas? Vê
este exemplo: se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a
um amigo, e depois, havendo se tomado insano, as exigisse de
volta, todos julgariam que o amigo não lhe as deveria restituir,
nem mesmo concordariam em dizer toda a verdade a um homem
enlouquecido.
Céfalo Estou de acordo.
Sócrates Como vês, justiça não significa ser sincero e
devolver o que se tomou.
Polemarco Eu digo que sim, Sócrates, pelo menos se
acreditarmos em Simônides.
Céfalo Deixo-vos com este assunto, visto que preciso
ir ternunar o sacrifício.
Polemarco Quer dizer que eu não sou o teu herdeiro?
Céfalo (sorrindo) Não há dúvida que sim. E afastou-
se para o seu sacrifício.
Sócrates Explique-nos, já que és o herdeiro da discussão,
que foi que disse Simônides de tão correto a respeito da justiça.
Polemarco Que é justo devolver aquilo que devemos.
Julgo ser esta asserção correta.
Sócrates Evidentemente, é impossível não dar razão a
Simônides, homem sábio e divino. Não obstante, tu, Polemarco,
deves saber o signfficado do que ele diz, ao passo que eu o
ignoro. Está claro que Simônides não se expressou a respeito
do que falávamos, sobre restituir a uma pessoa algo do qual
nos foi confiada a guarda, sendo que essa pessoa veio a perder
a razão. Contudo, devemos ou não restituir um objeto do qual
foi-nos confiada a guarda?
Polemarco Claro que devemos.
Sócrates Mas de forma alguma deve ser restituído se
quem o reclamar tiver perdido a razão?
Polemarco Com certeza.
Sócrates Então, parece-me que Simônides quer dizer
outra coisa quando afirma ser justo que restituamos o que
devemos.
Polemarco Certamente que se trata de outra coisa, por
Zeus! Na opinião dele, deve-se fazer sempre o bem aos amigos,
nunca o mal.
Sócrates Compreendo. Não é lícito devolver a uma pessoa
o ouro do qual ela nos confiou a guarda, se essa devolução
lhe for prejudicial, e se os que o restituem forem seus amigos.
É isto que quis dizer Simônides?
Polemarco Exatamente.
Sócrates E aos inimigos? Devemos restituir algo que
por acaso estamos lhes devendo?
Polemarco Com certeza. Pois, em meu entendimento,
o que um inimigo deve a outro é, logicamente, o que lhe convém:
o mal.
Sócrates Logo, Simônides se expressou por enigmas,
como usam fazer os poetas, ao declarar o que entendia por
justiça. Aparentemente, para ele, é justo restituir a cada um o
que lhe convém, considerando isso restituir o que é devido.
Polemarco Perfeitamente.
Sócrates Por Zeus! Portanto, se alguém lhe perguntasse:
ó Simônides, a quem e o que dá de devido e conveniente a
arte que é denominada medicinal Em teu entender, que resposta
ele daria?
Polemarco Evidentemente, que dá remédios, alimentos
e bebidas aos doentes.
Sócrates E a quem dá o que é devido e próprio a arte
da culinária?
Polemarco Temperos aos alimentos.
Sócrates Certo. Agora, a quem e o que dá a arte que
chamamos de justiça?
Polemarco De acordo com o que afirmamos anteriormente,
ela dá benefícios aos amigos e prejuízo aos inimigos.
Sócrates Logo, o que Simônides entende ser justiça é
ajudar os amigos e prejudicar os inimigos?
Polemarco E o que me parece.
Sócrates E quem tem mais possibilidade de ajudar os
amigos que sofrem e prejudicar os inimigos, no que concerne
a doença e a saúde?
Polemarco O médico.
Sócrates E aos navegantes, relativamente aos perigos
numa viagem no mar?
Polemarco O piloto.
Sócrates E quanto ao homem justo? Em que circunstância
e como ele pode ajudar os amigos e prejudicar os inimigos?
Polemarco Penso que seja na guerra, lutando contra
uns e aliando-se aos outros.
Sócrates Muito bem. Contudo, amigo Polemarco, o médico
é inútil para as pessoas sadias.
Polemarco Concordo.
Sócrates E o piloto também o é para os que não estão
navegando.
Polemarco Claro.
Sócrates E o homem justo, seria igualmente inútil para
aqueles que não estão guerreando?
Polemarco Com isto eu não concordo.
Sócrates Portanto, a justiça é útil também durante a paz?
Polemarco Sim.
Sócrates Isto também vale para a agricultura, não é
verdade?
Polemarco E.
Sócrates Para conseguirmos os produtos da terra?
Polemarco Sim.
Sócrates E, logicamente, também a arte do sapateiro?
Polemarco Também.
Sócrates Para podermos conseguir sapatos, certo?
Polemarco Claro que sim.
Sócrates Então, com qual objetivo de uso ou posse de
que objeto a justiça é útil em tempo de paz?
Polemarco Para os contratos comerciais, Sócrates.
Sócrates Por contratos comerciais queres dizer as associações
ou outro tipo de contrato?
Polemarco As associações.
Sócrates Sendo assim, quem é mais útil no jogo: o justo
ou aquele que sabe jogar bastante bem?
Polemarco Aquele que joga bem.
Sócrates E quem é mais útil para assentar tijolos e pedras:
o justo ou o pedreiro?
Polemarco Lógico que o pedreiro.
Sócrates Então, em qual associação julgas o justo mais
útil que o pedreiro e o citarista, da mesma forma que o citarista
o é em relação ao justo na arte da música?
Polemarco Creio que nos assuntos monetários.
Sócrates Exceção feita, talvez, Polemarco, para usar o
dinheiro, como, por exemplo, na ocasião de adquirir ou vender
um cavalo em sociedade. Nesse caso, seria mais útil um tratador
de cavalos, não achas?
Polemarco Parece-me que sim.
Sócrates E a respeito de um navio, também é mais útil
o construtor ou o piloto, concordas?
Polemarco Sim.
Sócrates Sendo assim, em qual circunstância, em que
for necessário usar dinheiro ou ouro em sociedade, o homem
justo é mais útil que qualquer outro?
Polemarco Na circunstância de desejarmos fazer um
depósito em segurança, Sócrates.
Sócrates Mas isso significa: quando não utilizamos o
dinheiro e preferimos deixá-lo imobilizado. Certo?
Polemarco Sem dúvida.
Sócrates Logo, a justiça só é útil quando o dinheiro
for inútil?
Polemarco Creio que sim.
Sócrates Então, no caso de precisarmos guardar uma
podadeira, a justiça é útil tanto do ponto de vista comum como
particular; contudo, se precisarmos usá-la, é mais útil a arte de
cultivar a vinha?
Polemarco Parece que sim.
Sócrates Tu concluis, portanto, que, se quisermos guardar
um escudo e uma lira, sem usá-los, a justiça é útil; porém,
se desejarmos nos servir deles, é mais útil a arte do soldado e
do músico.
Polemarco Necessariamente.
Sócrates Por conseguinte, a respeito de todas as outras
coisas, a justiça é inútil quando nos servimos dela e útil quando
não nos servimos?
Polemarco Penso que sim.
Sócrates Logo, meu amigo, a justiça é muito pouco importante,
se ela se aplica somente a coisas inúteis. Mas vamos
examinar o seguinte: em um combate ou numa luta qualquer,
o homem mais capaz de desferir golpes é também o mais capaz
de se defender?
Polemarco Sem dúvida.
Sócrates E o mais capaz em preservar-se de uma doença
não é também o mais capaz em transmiti-la secretamente?
Polemarco Creio que sim.
Sócrates Mas não é bom guarda de um exército aquele
que furta aos inimigos os seus segredos e os seus planos?
Polemarco Não resta dúvida.
Sócrates Por conseguinte, o hábil guardião de uma coisa
é também o hábil ladrão dessa mesma coisa.
Polemarco Parece que sim.
Sócrates Logo, se o homem justo é hábil em guardar
dinheiro, o será também em furtá-lo.
Polemarco Teu raciocínio leva a essa conclusão.
Sócrates Portanto, o justo apresenta-se como uma espécie
de ladrão, e penso que tu aprendeste isto com Homero.
De fato, este poeta enaltece o avô materno de Ulisses, Autólico,
dizendo que excedia a todos os homens no furto e no perjúrio.
Logo, parece que a justiça, na tua opinião, na de Homero e
Simônides, corresponde a uma determinada arte de furtar, porém
a favor dos amigos e em prejuízo dos inimigos. Não era
isso que tu dizias?
Polemarco Claro que não! Não sei mais o que eu dizia.
No entanto, continuo afirmando que a justiça se resume em ser
útil aos amigos e prejudicial aos inimigos.
Sócrates Mas tu chamas de amigos aqueles que os outros
reputam honestos ou aqueles que o são dÉ verdade, apesar de
não o parecerem, e da mesma forma os inimigos?
Polemarco É natural apreciarmos os que julgamos honestos
e detestar os que consideramos maus.
Sócrates Mas os homens não podem se enganar, julgando
honestas pessoas que não o são e vice-versa?
Polemarco Sim, podem.
Sócrates Logo, para os que se enganam, os honestos
são inimigos e os desonestos, amigos?
Polemarco Sem dúvida.
Sócrates E, apesar disso, reputam justo ser útil aos desonestos
e prejudicial aos honestos?
Polemarco Parece que sim.
Sócrates Contudo, os honestos e bons são justos e não
têm capacidade de cometer injustiças.
Polemarco Concordo.
Sócrates Logo, de acordo com o teu raciocínio, é justo
prejudicar os que não cometem injustiças.
Polemarco De forma alguma, Sócrates, pois o teu raciocínio
está errado.
Sócrates Então, é justo prejudicar os maus e ajudar
os bons?
Polemarco Essa condusão é bem melhor que a precedente.
Sócrates Então, para numerosas pessoas, Polemarco,
que se enganaram a respeito dos homens, a justiça significará
prejudicar os amigos sendo que possuem amigos maus
e ajudar os inimigos os quais, em verdade, são bons. E,
sendo assim, afirmaremos o contrário do que imputávamos
a Simônides.
Polemarco Sem dúvida, parece que é isso mesmo. Mas
façamos uma correção, pois corremos o risco de não havermos
feito uma precisa definição de amigo e inimigo.
Sócrates E de que maneira os definimos, Polemarco?
Polemarco Amigo é aquele que parece honesto.
Sócrates E de que maneira corrigiremos a definição?
Polemarco Amigo é aquele que parece e realmente é
honesto. Aquele que parece honesto, mas não é, apenas aparenta
ser amigo, sem sê-lo. A definição é a mesma a respeito
do inimigo.
Sócrates Por conseguinte, de acordo com o teu raciocínio,
amigo é o indivíduo bom e inimigo, o mau?
Polemarco Exatamente.
Sócrates Então, queres que acrescentemos ao que dissemos
anteriormente a respeito da justiça que é justo ajudar o
amigo e prejudicar o inimigo. Agora, devemos também afirmar
que é justo ajudar o amigo bom e prejudicar o inimigo mau?
Polemarco Precisamente. Dessa maneira parece-me bem
explicado.
Sócrates Logo, é peculiar ao justo prejudicar a quem
quer que seja?
Polemarco Não há dúvida de que devemos prejudicar
os maus que são nossos inimigos.
Sócrates E se fazemos mal aos cavalos, eles se tornam
melhores ou piores?
Polemarco Piores.
Sócrates Relativamente à virtude dos cães ou à dos
cavalos?
Polemarco A dos cavalos.
Sócrates Então, quanto aos cães a que fizermos mal,
eles se tomarão piores em relação à virtude dos cães, e não
à dos cavalos?
Polemarco Exatamente.
Sócrates E quanto aos homens a quem se faz mal, podemos
também afirmar que se tomam piores conforme a virtude
humana?
Polemarco Isso mesmo.
Sócrates Mas a justiça não é virtude especificamente
humana?
Polemarco Sim.
Sócrates Por conseguinte, meu amigo, os homens contra
quem se pratica o mal tornam-se obrigatoriamente piores.
Polemarco Concordo.
Sócrates Por acaso, é possível a um músico, por intermedio
de sua arte, tomar outras pessoas ignorantes em música?
Polemarco Isso é impossível.
Sócrates E, por intermédio da arte eqüestre, pode um
cavaleiro tomar outras pessoas incapazes de montar?
Polemarco Também é impossível.
Sócrates Mas, através da justiça, é possível que um justo
tome alguém injusto? Ou, de forma geral, pela virtude, os bons
podem transformar os outros em maus?
Polemarco Não podem.
Sócrates Realmente, creio que ao calor não é dado esfriar,
e sim o contrário.
Polemarco Justamente.
Sócrates Nem à aridez é dado umedecer, mas o contrário.
Polemarco Não há dúvida.
Sócrates Nem ao homem bom ser mau, mas o contrário.
Polemarco E o que parece.
Sócrates Portanto, o homem justo é bom?
Polemarco Evidentemente.
Sócrates Então, Polemarco, não é adequado a um homem
justo prejudicar seja a um amigo, seja a ninguém, mas é
adequado ao seu oposto, o homem injusto.
Polemarco Estás dizendo a pura verdade, Sócrates.
Sócrates Por conseguinte, se alguém declara que a justiça
significa restituir a cada um o que lhe é devido, e se por isso
entende que o homem justo deve prejudicar os inimigos e ajudar
os amigos, não é sábio quem expõe tais idéias. Pois a verdade
é bem outra: que não é lícito fazer o mal a ninguém e em nenhuma
ocasião.
Polemarco Estou de pleno acordo.
Sócrates Sendo assim, lutaremos juntos, tu e eu, contra
quem imputar semelhante princípio a Simônides, a Bias, a Pítaco
ou a qualquer outro homem sábio.
Polemarco Associo-me com prazer à luta.
Sócrates Sabes a quem atribuo a asserção de que é justo
ajudar os amigos e prejudicar os inimigos?
Polemarco A quem?
Sócrates A Periandro, a Perdicas, a Xerxes, a Ismênio,
de Tebas, ou a qualquer outro homem rico que se considerava
assaz poderoso.
Polemarco Eis uma grandÉ verdade.
Sócrates Porém, visto que nem a justiça nem o justo
nos pareceram signfficar isso, como poderemos defini-los?
Repetidas vezes, enquanto falávamos, Trasímaco procurara
tomar parte na conversa, mas fora impedido pelos amigos,
que queriam ouvir-nos até o fim. Durante a nossa pausa, após
minhas últimas palavras, não pôde mais se conter; erguendo-se
do chão, como uma fera, lançou-se contra nós, como para nos
dilacerar.
Polemarco e eu ficamos apavorados; porém Trasímaco, elevando
a voz no meio do auditório, gritou: Que tagarelice é
essa, Sócrates, e por que agis como tolos, inclinando-vos alternadamente
um diante do outro? Se queres mesmo saber o que
é justo, não te limites a indagar e não teimes em refutar aquele
que responde, mas, tendo reconhecido que é mais fácil indagar
do que responder, responde tu mesmo e diz como defines a
justiça. E abstém-te de pretender ensinar o que se deve fazer,
o que é o útil, proveitoso, lucrativo ou vantajoso; exprime-te
com clareza e precisão, pois eu não admitirei tais banalidades.
Ao ouvir tais palavras, fui tomado de assombro e, olhando
para ele, senti-me dominado pelo medo; creio até que, se não
o tivesse olhado antes que ele me olhasse, eu teria ficado mudo)
Mas, quando a discussão começou a irritá-lo, olhei-o em primeiro
lugar, de modo que consegui dizer-lhe, um tanto trémulo:
Sócrates Não fiques zangado, Trasímaco, porque, se eu
e este jovem cometemos um erro em nossa análise, sabes que
foi involuntariamente. Pois, se estivéssemos à procura de ouro,
não nos inclinaríamos um para o outro, prejudicando assim as
nossas oportunidades de descoberta; portanto, não penses que,
procurando a justiça, coisa mais preciosa que grandes quantidades
de ouro, façamos tolamente concessões mútuas, em vez
de nos esforçarmos o mais possível por descobri-la. Não penses
isso de forma alguma, meu amigo. Mas aeio que a tarefa ultrapassa
as nossas forças. Por isso, é muito mais natural para
vós, os hábeis, ter compaixão de nós do que testemunhar-nos
irritação.
Ao ouvir estas palavras, Trasímaco soltou uma risada sardônica
e exclamou: Ô Hércules! Aqui está a habitual ironia
de Sócrates! Eu sabia e disse a estes jovens que não quererias
responder, que fingirias ignorância, que farias por não responder
às perguntas ,que te fizessem!
Sócrates Es um homem sutil, Trasímaco. Sabias perfeitamente
que, se perguntasses a alguém quais são os fatores de
doze e o prevenisses: Evita, amigo, de me responderes que
doze é o mesmo que duas vezes seis ou tres vezes quatro ou
seis vezes dois ou quatro vezes três, porque não admitirei tal
lengalenga, sabias perfeitamente, repito, que ninguém poderia
responder a uma pergunta formulada dessa maneira. Porém,
se ele te dissesse: Trasímaco, como explicas que eu não responda
nada ao que enunciaste antecipadamente? Será que, homem
extraordinário, se a verdadeira resposta é uma dessas,
não devo dá-la, mas dizer outra coisa diferente da verdade?
Ou então como o explicas?, que responderias a isto?
Trasímaco Muito bem! Se uma coisa fosse semelhante
à outra!
Sócrates Nada impede. E, mesmo que não fosse semelhante,
mas que assim se afigurasse à pessoa interrogada, achas
que ela deixaria de responder o que lhe parecÉ verdadeiro, quer
lhe proibíssemos, quer não?
Trasímaco Tu também irás se comportar dessa maneira?
Darás uma das respostas que eu te proibi?
Sócrates Não me espantaria se, depois de pensar, tomasse
essa resolução.
Trasímaco Mas veja, se eu provo que existe, a respeito
da justiça, uma resposta diferente de todas essas e melhor, a
que te condenas?
Sócrates A que poderá ser, senão ao que convém ao
ignorante? Ora, convém-lhe ser instruído por quem sabe; portanto,
condeno-me a isso.
Trasímaco Tu és encantador. Mas, além da pena de
aprenderes, também deverás pagar com dinheiro.
Sócrates Certamente, quando o tiver.
Glauco Mas nós o temos. Se é uma questão de dinheiro,
Trasímaco, fala: todos nós pagaremos por Sócrates.
Trasímaco Percebo claramente. Para que Sócrates se entregue
à sua ocupação habitual, não deve responder. E, quando
alguém responde, apodera-se do argumento e refuta-o!
Sócrates Mas como, meu nobre amigo, alguém poderia
responder em primeiro lugar, se não sabe e se confessa não
saber, e se, além disso, caso tenha uma opinião sobre o assunto,
é proibido de dizer o que pensa por uma pessoa de
grande autoridade? És tu que deves falar, dado que pretendes
saber e ter algo a dizer. Não te esquives, portanto: dá-me o
prazer de responder e não uses de parcimônia para instruir
Glauco e os outros.
Após eu proferir essas palavras, Glauco e os outros pediram-
lhe que não se esquivasse. Percebia-se claramente que Trasímaco
desejava falar para se distinguir, julgando ter uma excelente
resposta a dar; mas aparentava insistir para que fosse
eu a responder. Por fim, cedendo, exclamou:
Trasímaco E esta a sabedoria de Sócrates: recusar-se a
ensinar, ir instruir-se com os outros e não se mostrar reconhecido
por isso!
Sóacrates Tens razão quanto ao fato de que me instruo
com os outros, mas estás enganado ao pretender que não lhes
pago na mesma moeda. Pois eu pago na medida em que posso.
Ora, não posso senão aplaudir, porque não possuo riquezas.
Mas a alegria com que o faço, quando julgo que alguém fala
bem, tu a conhecerás logo que me tenhas respondido; porque
eu julgo que falarás bem.
Mas, quando a discussão começou a irritá-lo, olhei-o em primeiro
lugar, de modo que consegui dizer-lhe, um tanto trémulo:
Sócrates Não fiques zangado, Trasímaco, porque, se eu
e este jovem cometemos um erro em nossa análise, sabes que
foi involuntariamente. Pois, se estivéssemos à procura de ouro,
não nos inclinaríamos um para o outro, prejudicando assim as
nossas oportunidades de descoberta; portanto, não penses que,
procurando a justiça, coisa mais preciosa que grandes quantidades
de ouro, façamos tolamente concessões mútuas, em vez
de nos esforçarmos o mais possível por descobri-la. Não penses
isso de forma alguma, meu amigo. Mas creio que a tarefa ultrapassa
as nossas forças. Por isso, é muito mais natural para
vós, os hábeis, ter compaixão de nós do que testemunhar-nos
irritação.
Ao ouvir estas palavras, Trasímaco soltou uma risada sardônica
e exclamou: Ó Hércules! Aqui está a habitual ironia
de Sócrates! Eu sabia e disse a estes jovens que não quererias
responder, que fingirias ignorância, que farias por não responder
às perguntas que te fizessem!
Sócrates Es um homem sutil, Trasímaco. Sabias perfeitamente
que, se perguntasses a alguém quais são os fatores de
doze e o prevenisses: Evita, amigo, de me responderes que
doze é o mesmo que duas vezes seis ou três vezes quatro ou
seis vezes dois ou quatro vezes três, porque não admitirei tal
lengalenga, sabias perfeitamente, repito, que ninguém poderia
responder a uma pergunta formulada dessa maneira. Porém,
se ele te dissesse: Trasímaco, como explicas que eu não responda
nada ao que enunciaste antecipadamente? Será que, homem
extraordinário, se a verdadeira resposta é uma dessas,
não devo dá-Ia, mas dizer outra coisa diferente da verdade?
Ou então como o explicas?, que responderias a isto?
Trasímaco Muito bem! Se uma coisa fosse semelhante
à outra!
Sócrates Nada impede. E, mesmo que não fosse semelhante,
mas que assim se afigurasse à pessoa interrogada, achas
que ela deixaria de responder o que lhe parecÉ verdadeiro, quer
lhe proibíssemos, quer não?
Trasímaco Tu também irás se comportar dessa maneira?
Darás uma das respostas que eu te proibi?
Sócrates Não me espantaria se, depois de pensar, tomasse
essa resolução.
Trasímaco Mas veja, se eu provo que existe, a respeito
da justiça, uma resposta diferente de todas essas e melhor, a
que te condenas?
Sócrates A que poderá ser, senão ao que convém ao
ignorante? Ora, convém-lhe ser instruído por quem sabe; portanto,
condenome a isso.
Trasímaco Tu és encantador. Mas, além da pena de
aprenderes, também deverás pagar com dinheiro.
Sócrates Certamente, quando o tiver.
Glauco Mas nós o lemos. Se é uma questão de dinheiro,
Trasímaco, fala: todos nós pagaremos por Sócrates.
Trasímaco Percebo claramente. Para que Sócrates se entregue
à sua ocupação habitual, não deve responder. E, quando
alguém responde, apodera-se do argumento e refuta-o!
Sócrates Mas como, meu nobre amigo, alguém poderia
responder em primeiro lugar, se não sabe e se confessa não
saber, e se, além disso, caso tenha uma opinião sobre o assunto,
é proibido de dizer o que pensa por uma pessoa de
grande autoridade? És tu que deves falar, dado que pretendes
saber e ter algo a dizer. Não te esquives, portanto: dá-me o
prazer de responder e não uses de parcimônia para instruir
Glauco e os outros.
Após eu proferir essas palavras, Glauco e os outros pediram-
lhe que não se esquivasse. Percebia-se claramente que Trasímaco
desejava falar para se distinguir, julgando ter uma excelente
resposta a dar; mas aparentava insistir para que fosse
eu a responder. Por fim, cedendo, exclamou:
Trasímaco É esta a sabedoria de Sócrates: recusar-se a
ensinar, ir instruir-se com os outros e não se mostrar reconhecido
por isso!
Sócrates Tens razão quanto ao fato de que me instruo
com os outros, mas estás enganado ao pretender que não lhes
pago na mesma moeda. Pois eu pago na medida em que posso.
Ora, não posso senão aplaudir, porque não possuo riquezas.
Mas a alegria com que o faço, quando julgo que alguém fala
bem, tu a conhecerás logo que me tenhas respondido; porque
eu julgo que falarás bem.
Trasímaco Ouve, então. Eu digo que a justiça é simplesmente
o interesse do mais forte. Então, que esperas para
me aplaudir? Vais-te recusar!
Sócrates Em primeiro lugar, deixa que eu compreenda
o que dizes, porque ainda não entendi. Pretendes que justiça é
o interesse do mais forte. Mas como entendes isso, Trasímaco?
Com efeito, não pode ser da seguinte maneira: Se Polidamas
é mais forte do que nós e a carne de boi é melhor para conservar
suas forças, não dizes que, também para nós, mais fracos do
que ele, esse alimento é vantajoso e ao mesmo tempo, justo?
Trasímaco Es um cínico, Sócrates. Tomas as minhas
palavras por onde podes atacá-las melhor!
Sócrates De forma alguma, nobre homem. Mas exprime-
te mais claramente.
Trasímaco De acordo! Tu sabes que, entre as cidades,
umas são tirânicas, outras democráticas, outras aristocráticas.
Sócrates Logicamente que sei.
Trasíxnaco Portanto, o setor mais forte, em cada cidade,
é o governo?
Sócrates Sim.
Trasfmaco E cada governo faz as leis para seu próprio
proveito: a democracia, leis democráticas; a tirania, leis tirânicas,
e as outras a mesma coisa; estabelecidas estas leis, declaram
justo, para os governados, o seu próprio interesse, e castigam
quem o transgride como violador da lei, culpando-o de injustiça.
Aqui tens, homem excelente, o que afirmo: em todas as cidades
o justo é a mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo
constituído; ora, este é o mais forte, de onde se segue, para um
homem de bom raciocínio, que em todos os lugares o justo é
a mesma coisa: o interesse do mais forte.
Sócrates Agora compreendo o que dizes. Procurarei
estudá-lo. Portanto, também tu, Trasímaco, respondeste que
aquilo que é vantajoso é justo, depois de me teres proibido
de dar essa resposta, acrescentando, contudo: o interesse do
mais forte.
Trasímaco Uma pequena adição, talvez?
[1 Polidamas. atleta de enorme compleição. vencedor dos Jogos Olímpicos de 408 a.c. ]
Sócrates Ainda não é evidente que seja grande; mas é
evidente que é necessário examinar se falas verdade. Reconheço
que o justo é algo vantajoso; mas tu acrescentas à definição que
é o interesse do mais forte; por mim, ignoro-o: preciso analisá-lo.
Trasímaco Analisa-o.
Sócrates Assim farei. Agora, diz-me: não julgas ser justo
obedecer aos governantes?
Trasímaco Julgo.
Sócrates Mas os governantes são sempre infalíveis ou
passíveis de se enganarem?
Trasímaco E evidente que são passíveis de se enganarem.
Sócrates Logo, qúando elaboram leis, fazem-nas boas
e más?
Trasímaco É assim que eu penso.
Sócrates As boas leis são aquelas que instituem o que
lhes é vantajoso e as más o que lhes é desvantajoso?
Trasímaco Sim.
Sócrates Mas o que eles instituíram deve ser obedecido
pelos governados; é nisto que consiste a justiça?
Trasímaco Com certeza.
Sócrates Logo, na tua opinião, não apenas é justo fazer
o que é vantajoso para o mais forte, mas também o contrário,
o que é desvantajoso.
Trasímaco Que estás dizendo?!
Sócrates O que tu mesmo dizes, penso; mas examinemos
melhor. Não concordamos que, às vezes, os governantes se enganam
quanto ao que é o melhor, impondo determinadas leis
aos governados? E que, por outro lado, é justo que os governados
obedeçam ao que lhes ordenam os governantes? Não
concordamos?
Trasímaco Sim.
Sócrates Então, acreditas também justo fazer o que é
desvantajoso para os governantes e para os mais fortes, quando
os governantes, inadvertidamente, dão ordens que lhes são prejudiciais,
porquanto tu afirmas ser justo que os governados façam
o que ordenam os governantes. Portanto, sábio amigo Trasímaco,
não decorre necessariamente que é justo fazer o contrário
daquilo que dizes? Com efeito, ordena-se ao mais fraco
que faça o que é prejudicial ao mais forte.
Polemarco Por Zeus, Sócrates, isso é claríssimo!
Clitofonte Se ao menos testemunhasses por ele...
Polemarco E quem necessita de testemunho? Trasímaco
reconhece que às vezes os governantes fazem leis que
lhes são prejudiciais e que é justo que os governados obedeçam
a tais leis.
Clitofonte Com efeito, Polemarco, Trasímaco afirmou ser
justo que sejam obedecidas as ordens dadas pelos governantes.
Polemarco De fato, Clitofonte, Polemarco considerou
justo o que é vantajoso para o mais forte. Ao enunciar estes
dois princípios, reconheceu também que, às vezes, os mais fortes
dão aos mais fracos e aos governados ordens que são prejudiciais
a eles mesmos. Destas declarações decorre que a justiça é tanto
a vantagem como a desvantagem do mais forte.
Clitofonte Mas ele definiu como vantagem do mais fone
o que o mais forte crê ser vantajoso para ele; é isso que o mais
fraco tem de fazer e foi isso que Trasímaco considerou justo.
Polemarco Ele não se expressou desse modo!
Sócrates Isso não importa, Polemarco. Porém, se agora
Trasímaco se expressa assim, admitamos que é assim que o
entende. Diz-me, Trasímaco: entendes por justiça o que parece
vantajoso para o mais forte, quer isso lhe seja vantajoso, quer
não? Podemos dizer que te expressas assim?
Trasíinaco De forma alguma. Acreditas que julgo aquele
que se engana o mais forte, no momento em que se engana?
Sócrates Assim acreditava quando tu reconheceste que
os governantes não são infalíveis, mas que podem enganar-se.
Trasímaco Es um difamador, Sócrates, quando discutes.
Por acaso consideras médico aquele que se engana em relação
aos doentes, no mesmo instante e enquanto se engana? Ou calculador
aquele que comete um erro de cálculo, no preciso momento
em que comete o erro? Não. E um modo de falar, acredito,
quando dizemos: o médico se enganou, o calculador e o escriba
se enganaram. Mas julgo que nenhum deles, na medida em
que é o que o denominamos, jamais se engana; de modo que,
para falar com precisão, visto que queres ser preciso, nenhum
artesão se engana. Aquele que se engana o faz quando a ciência
o abandona, no instante em que não é mais artesão; assim, artesão,
sábio ou governante, ninguém se engana no exercido das
suas funções, apesar de todos dizerem que o médico se enganou,
que o governante se enganou. Portanto, admito que te tenha
respondido há pouco neste sentido; mas, para me expressar de
forma mais exata, o governante, enquanto governante, não se
engana, não comete um erro ao fazer passar por lei o seu maior
interesse, que deve ser realizado pelo governado. Deste modo,
como no mído, afirmo que a justiça consiste em fazer o que e
vantajoso para o mais forte.
Sócrates Que seja, Trasímaco. Pareço-te um difamador?
Trasímaco Exataménte.
Sócrates Achas que te inquiri como fiz, com premeditação,
para te prejudicar na discussão?
Trasímaco Com toda a certeza. Mas não terás êxito,
porque não poderás esconder-se para me prejudicar, nem me
dominares pela violência na disputa.
Sócrates Eu nem sequer o tentarei, homem bem-aventurado!
Porém, para que isso não aconteça, define claramente
se entendes no sentido vulgar ou no sentido exato, de que acabas
de falar, os termos governante, mais forte, para vantagem de
quem será justo que o mais fraco trabalhe.
Trasímaco Entendo o governante no sentido exato da
palavra. Para isso, tenta prejudicar-me ou caluniar-me, se puderes.
Mas não és capaz!
Sócrates Crês que sou louco a ponto de tentar tosquiar
um leão ou caluniar Trasímaco?
Trasímaco A verdade é que tentaste, embora inutilmente!
Sócrates Chega com este palavreado! Mas diz-me: o
médico, no sentido exato do termo, de que falavas ainda há
pouco, tem por objetivo ganhar dinheiro ou tratar os doentes?
Mas fala-me do verdadeiro médico.
Trasímaco Tem por objetivo tratar os doentes.
Sâcrates E o piloto? O verdadeiro piloto é chefe dos
marinheiros ou marinheiro?
Trasímaco Chefe dos marinheiros.
Sócrates Não penso que se deva ter em conta o fato de
navegar para que o denominemos marinheiro; de fato, não é
por navegar que o denominamos piloto, mas devido à sua arte
e ao comando que exerce sobre os marinheiros.
Trasímaco Concordo.
Sócrates Portanto, para o doente e o marinheiro, existe
alguma vantagem?
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates E a arte não objetiva procurar e proporcionar
a cada um o que é vantajoso para ele?
Trasímaco Sim.
Sócrates Mas, para cada arte, existe outra vantagem
além de ser tão perfeita quanto possível?
Trasímaco Qual é o sentido da tua pergunta?
Sócrates Este. Se me perguntasses se é suficiente ao
corpo ser corpo ou se tem necessidade de outra coisa, responder-
te-ia: Certamente que tem necessidade de outra coisa. Para
isso é que a arte médica foi inventada: porque o corpo é defeituoso
e não lhe é suficiente ser o que é. Por isso, para lhe proporcionar
vantagens, a arte organizou-se. Parece-te que tenho
ou não razão?
Trasímaco Tens razão.
Sócrates Mas então a medicina é defeituosa? Geralmente,
uma arte exige certa virtude como os olhos a visão ou
as orelhas a audição, pelo fato de que estes órgãos necessitam
de uma arte que examine e lhes proporcione a vantagem de
ver e ouvir? E nessa mesma arte existe algum defeito? Cada
arte exige outra arte que examine o que lhe é vantajoso, e esta,
por sua vez, outra semelhante, e assim até ao infinito? Ou examma
ela própria o que lhe é vantajoso? Ou não precisa nem
dela própria nem de outra para remediar a sua imperfeição?
Pois nenhuma arte apresenta defeito ou imperfeição e não deve
procurar outra vantagem exceto a do indivíduo a que se aplica:
ela própria, quando verdadeira, está isenta de mal e é pura
enquanto se mantiver rigorosa e totalmente de acordo com a
sua natureza. Analisa, tomando as palavras no sentido exato
de que falavas. E assim ou não?
Trasímaco Parece-me que sim.
Sócrates Portanto, a medicina não objetiva a sua própria
vantagem, mas a do corpo.
Trasímaco Certamente.
Sócrates Nem a arte eqüestre a sua própria vantagem,
mas a dos cavalos; nem, em geral, qualquer arte tem por objeto
a sua própria vantagem pois não necessita de nada , mas
a do indivíduo a que se aplica.
Trasímaco E assim que me parece.
Sócrates Mas, Trasímaco, as artes governam e dominam
o objeto sobre o qual se exercem.
Ele concordou comigo neste ponto, embora a muito custo.
Sócrates Portanto, nenhuma ciência procura nem prescreve
a vantagem do mais forte, mas a do mais fraco, que lhe
é sujeito.
Também concordou comigo neste ponto, mas só depois
de ter procurado uma contestação; quando cedeu, eu lhe disse:
Sócrates Portanto, o médico, na medida em que é médico,
não objetiva nem prescreve a sua própria vantagem, mas
a do doente? Com efeito, reconhecemos que o médico, no sentido
exato da palavra, governa o corpo e não é homem de negócios.
Não reconhecemos?
Ele concordou.
Sócrates E que o piloto, no sentido exato da palavra,
lidera os marinheiros, mas não é marinheiro?
Trasímaco Foi assim que o reconhecemos.
Sócrates Conseqüentemente, um tal piloto, um tal governante,
não objetivará e não prescreverá a sua própria vantagem,
mas sim a do marinheiro, do indivíduo que ele governa.
Ele concordou com grande dificuldade.
Sócrates Sendo assim, Trasímaco, nenhum governante,
seja qual for a natureza da sua autoridade, na medida em que
é governante, não objetiva e não ordena a sua própria vantagem,
mas a do indivíduo que governa e para quem exerce a sua arte;
é com vista ao que é vantajoso e conveniente para esse indivíduo
que diz tudo o que diz e faz tudo o que faz.
Estávamos neste ponto da discussão e era claro para todos
que a definição da justiça tinha sido virada do avesso, quando
Trasímaco, em lugar de responder, gritou:
Tu tens ama, Sócrates?
Sócrates O quê? Não seria mais apropriado responderes
do que me fazeres tal pergunta?
Trasímaco E que ela não te deixa babar e não te assoa
o nariz quando necessário, visto que não aprendeste a diferenciar
os carneiros do pastor.
Sócrates Por que dizes isso?
Trasímaco Porque crês que os pastores e os vaqueiros
objetivam o bem dos seus carneiros e dos seus bois e os engordam
e tratam tendo em vista outra coisa para além do bem
dos seus patrões e deles mesmos. E, da mesma maneira, acreditas
que os governantes das cidades, os que são realmente
governantes, olham para os seus súditos como se olha para
carneiros e que objetivam, dia e noite, tirar deles um lucro pessoal.
Foste tão longe no conhecimento do justo e da justiça, do
injusto e da injustiça, que ignoras que a justiça é, na realidade,
um bem alheio, o interesse do mais forte e daquele que governa
e a desvantagem daquele que obedece e serve; que a injustiça
é o oposto e comanda os simples de espírito e os justos; que
os indivíduos trabalham para o interesse do mais forte e fazem
a sua felicidade servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles
mesmos. Aqui tens, ó muito simples Sócrates, como é necessário
encarar o caso: o homem justo é em todos os lugares inferior
ao injusto. Em primeiro lugar, no comércio, quando se associam
um ao outro, nunca descobrirás, ao dissolver-se a sociedade,
que o justo ganhou, mas que perdeu; em seguida, nos negócios
públicos, quando é preciso pagar contribuições, o justo paga
mais do que os seus iguais, o injusto menos; quando, ao contrário,
trata-se de receber, um não recebe nada, o outro muito.
E, quando um e outro ocupam algum cargo, acontece que o
justo, mesmo que não haja outro prejuízo, deixa, por negligência,
que os seus negócios domésticos periclitem e não tira da função
pública nenhum proveito, por causa da sua justiça. Além disso,
incorre no ódio dos parentes e conhecidos, ao recusar servi-los
em detrimento da justiça; quanto ao injusto, é exatamente o
contrário. Pois entendo como tal aquele de quem falava há pouco,
o que é capaz de se sobrepor aos outros; examina-o bem,
se quiseres saber até que ponto, no particular, a injustiça é mais
vantajosa do que a justiça. Mas irás compreendê-lo mais facilmente
se fores até a injustiça mais perfeita, a que leva ao ápice
da felicidade o homem que a comete e ao ápice da infelicidade
os que a sofrem e não querem cometê-la. Esta injustiça é a tirania
que, por fraude ou violência, se apodera do bem alheio: sagrado,
profano, particular, público, e não por partes, mas na totalidade.
Para cada um destes delitos, o homem que se deixa apanhar é
punido e coberto das piores ignomínias com efeito, essas
pessoas que agem por partes são consideradas sacrílegas, traficantes
de escravos, arrombadores de moradias, espoliadores,
ladrões, conforme a injustiça cometida. Mas quando um homem,
além da fortuna dos cidadãos, se apodera das suas pessoas e
os escraviza, em vez de receber esses nomes ignominiosos, e
considerado feliz e afortunado, não apenas pelos cidadãos, mas
também por todos aqueles que sabem que ele cometeu a injustiça
em toda a sua extensão; com efeito, não receiam cometer a injustiça
os que a reprovai»: receiam ser vítimas dela. Por isso,
Sócrates, a injustiça levada a um alto grau é mais forte, mais
livre, mais digna de um senhor do que a justiça e, como eu
dizia a princípio, a justiça significa o interesse do mais forte e
a injustiça é em si mesma vantagem e lucro.i
Depois de falar dessa maneira, Trasímaco pretendia retirar-
se, após ter, como um banhista, inundado os nossos ouvidos
com o seu impetuoso e abundante discurso. Mas os assistentes
não o deixaram partir e forçaram-no a permanecer para justificar
as suas palavras. Eu próprio insisti com ele, dizendo-lhe:
Õ divino Trasímaco, depois de nos teres feito um tal
discurso, pensas em ir embora, antes de demonstrares suficientemente
ou ensinares se isso é assim ou diferente? Crês que é
tarefa fácil definir a regra de vida que cada um de nós deve
seguir para viver da maneira mais proveitosa?
Trasímaco Por acaso eu penso que é de outra maneira?
Sócrates E o que parece. Ou então não te preocupas
conosco e não te importa que levemos uma vida pior ou melhor,
na ignorância do que tu pretendes saber. Mas, meu caro, dá-te
ao incômodo de nos instruir também: não farás um mau investimento
se nos fizeres teus devedores, numerosos como somos.
Com efeito, se queres saber o que penso, não estou convencido
e não creio que a injustiça seja mais vantajosa do que a justiça,
mesmo quando há a liberdade de praticá-la e não se é impedido
de fazer o que se quer. Mesmo que um homem, meu caro, seja
injusto e tenha o poder de praticar a injustiça por fraude ou à
[1 Todo esse discurso de Trasíxnaco é uma paródia da linguagem dos solistas.]
força: nem por isso estou convencido de que tire daí mais proveito
que da justiça. Talvez este seja também o sentimento de
outros entre nós, e não somente o meu; convence-nos, portanto,
homem divino, de maneira satisfatória, de que fazemos mal em
preferir a justiça à injustiça.
Trasímaco E como eu haveria de te convencer, se não
o consegui com o que já disse? Que mais posso fazer? Será
necessário que enfie os meus argumentos na tua cabeça?
Sócrates Por Zeus, basta! Em primeiro lugar, mantém-te
nas posições assumidas, ou, se as mudares, terás de fazê-lo com
clareza e não nos enganes. Vês agora, Trasímaco para voltar
ao que dissemos , que, depois de teres apresentado a definição
do verdadeiro médico, não achaste que devias revelar rigorosamente
a do verdadeiro pastor. Pensas que, como pastor, ele
engorda os seus carneiros não objetivando seu maior bem, mas,
como um glutão que pretende dar um festim, objetivando a
boa carne ou, como um comerciante, objetivando a venda, e
não como um pastor. Mas a arte do pastor objetiva unicamente
o maior bem do indivíduo a que se aplica já que ele próprio
está suficientemente provido das qualidades que asseguram a
sua excelência, enquanto se mantém de acordo com a sua natureza
de arte pastoril. Pelo mesmo motivo, eu supunha há
pouco que éramos obrigados a reconhecer que todo governo,
enquanto governo, objetiva unicamente o maior bem dos indivíduos
que governa e dos quais é responsável, quer se trate da
população de uma cidade, quer de um particular. Mas tu crês
que os governantes das cidades, os que governam realmente,
o fazem com prazer?
Trasímaco Se creio? Por Zeus, tenho certeza!
Sócrates Mas como, Trasímaco! Não notaste que ninguém
concorda em exercer os outros cargos por eles mesmos,
que, ao contrário, se exige uma retribuição, porque não é ao
próprio que o seu exercício aproveita, mas aos governados?
E responde a isto: não se diz sempre que uma arte se diferencia
de outra por ter um poder diferente? E, homem bemaventurado,
não responde contra a tua opinião, para que possamos
avançar!
Trasímaco Mas é nisso que ela se diferencia.
Sócrates E cada um de nós não procura conseguir um
certo benefício particular e não comum a todos, como a medicina
a saúde, a pilotagem a segurança na navegação e assim
por diante?
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates E a arte do mercenário, o salário, dado que
reside aí o seu próprio poder? Confundes a medicina com a
pilotagem? Ou, para definir as palavras com rigor, como propuseste,
se alguém recupera a saúde governando um navio,
porque é vantajoso para ele navegar, denominarás por isso medicina
a sua arte?
Trasímaco Claro que nao.
Sócrates Mas como! Denominarás medicina a arte do
mercenário porque o médico, ao curar, ganha salário?
Trasímaco Não.
Sócrates Não afirmamos que cada arte objetiva um beneficio
particular?
Trasímaco Afirmamos.
Sócrates Portanto, se todos os artesãos se beneficiam
em comum de um certo lucro, é evidente que acrescentam à
sua arte um elemento comum de que auferem lucro?
Trasímaco E o que parece.
Sócrates E nós declaramos que os artesãos ganham salário
porque adicionam à sua arte a do mercenário.
Reconheceu-o a custo.
Sócrates Portanto, não é da arte que exerce que cada
um retira esse proveito que consiste em receber um salário;
mas, examinando com rigor, a medicina cria a saúde e a arte
do mercenário proporciona o salário, a arquitetura edifica a moradia
e a arte do mercenário, que a acompanha, proporciona o
salário, e assim todas as outras artes: cada um trabalha na obra
que lhe é própria e aproveita ao indivíduo a que se aplica.
Porém, se não recebesse salário, tiraria o artesão proveito da
sua arte?
Trasímaco Acredito que não.
Sócrates E sua arte deixa de ser útil quando ele trabalha
gratuitamente?
Trasímaco A meu ver, não.
Sócrates Então, Trasímaco, é evidente que nenhuma arte
e nenhum comando provê ao seu próprio benefício, mas, como
dizíamos há instantes, assegura e objetiva o do governado, objetivando
o interesse do mais fraco, e não o do mais forte. Eis
por que, meu caro Trasímaco, que eu dizia há pouco que ninguém
concorda de bom grado em governar e curar os males
dos outros, mas exige salário, porque aquele que quer exercer
convenientemente a sua arte não faz e não objetiva, na medida
em que objetiva segundo essa arte, senão o bem do governado;
por estas razões, é necessário pagar um salário aos que concordam
em governar, seja em dinheiro, honra ou castigo, se porventura
se recusarem.
Glauco Que queres dizer com isso, Sócrates? Eu conheço
os dois outros tipos de salários, mas ignoro o que entendes por
castigo dado na forma de salário.
Sócrates Então não conheces o salário dos melhores,
aquilo pelo qual os mais virtuosos governam, quando se resignam
a fazê-lo. Não sabes que o amor à honra e ao dinheiro é
considerado coisa vergonhosa e, efetivamente, o é?
Glauco Sei.
Sócrates Devido a isso, os homens de bem não querem
governar nem pelas riquezas nem pela honra; porque não querem
ser considerados mercenários, exigindo abertamente o salário
correspondente à sua função, nem ladrões, tirando dessa
função lucros secretos; também não trabalham pela honra, porque
não são ambiciosos. Portanto, é preciso que haja obrigação
e castigo para que aceitem governar é por isso que tomar o
poder de livre vontade, sem que a necessidade a isso obrigue,
pode ser considerado vergonha e o maior castigo consiste
em ser governado por alguém ainda pior do que nós, quando
não queremos ser nós a governar; é com este receio que me
parecem agir, quando governàm, as pessoas honradas, e então
assumem o poder não como um bem a ser usufruído, mas como
uma tarefa necessária, que não podem confiar a outras melhores
que elas nem a iguais. Se surgisse uma cidade de homens bons,
é provável que nela se lutasse para fugir do poder, como agora
se luta para obtê-lo, e tornar-se-ia evidente que, na verdade, o
governante autêntico não deve visar ao seu próprio interesse,
mas ao do governado; de modo que todo homem sensato preferiria
ser obrigado por outro do que preocupar-se em obrigar
outros. Portanto, de forma alguma concordo com Trasímaco,
quando afirma que a justiça Significa o interesse do mais forte.
Mas voltaremos a este ponto mais tarde; dou uma importância
muito maior ao que diz agora Trasímaco: que a vida do homem
injusto é superior à do justo. Que partido tomas, Glauco? Qual
destas asserções te parece mais verdadeira?
Glauco A vida do homem justo parece-me mais proveitosa.
Sócrates Ouviste a relação que Trasímaco fez dos bens
ligados à vida do injusto?
Glauco Ouvi, mas não me convenci.
Sócrates Queres então que o convençamos, se conseguirmos
encontrar o meio, de que ele não está na verdade?
Glauco Como não haveria de querer?
Sócrates Se, juntando as nossas forças contra ele e opondo
argumento a argumento, relacionarmos os bens que a justiça
proporciona, se, por seu turno, ele replicar, e nós também, será
preciso contar e avaliar as vantagens citadas por uma e outra
parte em cada argumento e iremos precisar de juizes para decidir;
se, ao contrário, como há pouco, debatermos a questão
até conseguirmos um mútuo acordo, nós seremos conjuntamente
juizes e advogados.
Glauco É verdade.
Sócrates Qual destes dois métodos preferes?
Glauco O segundo.
Sócrates Então, Trasímaco, voltemos ao começo e responde-
me. Acreditas que a injustiça total é mais proveitosa do
que a justiça total?
Trasímaco Com certeza, e já expliquei por que razões.
Sócrates Muito bem, mas da maneira que entendes essas
duas coisas, denominas uma virtude e a outra, vício?
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates E é a justiça que denominas virtude e a irtjustiça,
vício?
Trasímaco E o que dou a entender, encantadora criatura,
quando digo que a injustiça é proveitosa e a justiça não o é?
Sócrates Como é, então?
Trasímaco O contrário.
Sócrates A justiça é um vício?
Trasímaco Não, mas uma nobre simplicidade de caráter.
Sócrates Então a injustiça é perversidade de caráter?
Trasímaco Não, é prudência.
Sócrates Será, Trasímaco, que os injustos te parecem
sábios e bons?
Trasímaco Sim, aqueles que são capazes de cometer a
injustiça com perfeição e de submeter cidades e povos. Pensas,
talvez, que me refiro aos gatunos? Sem dúvida, tais práticas
são rendosas, enquanto não são descobertas; mas não merecem
menção ao lado das que acabo de indicar.
Sócrates Percebo perfeitamente o teu raciocínio, mas o
que me surpreende é que classifiques a injustiça com a virtude
e a sabedoria, e a justiça com os seus opostos.
Trasímaco Mas é exatamente assim que as classifico.
Sócrates Isto é grave, camarada, e não é fácil saber o
que se pode dizer. Se, com efeito, admitisses que a injustiça é
proveitosa, admitindo ao mesmo tempo, como alguns outros,
que é vício e coisa vergonhosa, poderíamos responder-te invocando
as noções correntes sobre o assunto; mas, evidentemente,
tu dirias que ela é bela e forte e conceder-lhe-ias todos os atributos
que nós concedemos à justiça, visto que ousaste compará-
la com a virtude e a sabedoria.
Trasímaco Adivinhas muito bem.
Sócrates Contudo, não devo recusar-me a continuar com
este exame enquanto puder acreditar que falas seriamente. E
que me parece, realmente, Trasímaco, que não é caçoada da
tua parte e que estás exprimindo a tua verdadeira opinião.
Trasímaco Que importância tem que seja ou não a minha
opinião? Limita-te a refutar-me.
Sócrates De fato, não tem importância. Mas responde
a mais isto: parece-te que homem justo procura prevalecer de
algum modo sobre outro o homem justo?
Trasímaco Jamais, pois não seria educado e simples
como é.
Sócrates Nem mesmo numa ação justa?
Trasímaco Nem assim.
Sócrates Mas ele pretenderia prevalecer sobre o homem
injusto e pensaria ou não fazê-lo justamente?
Trasímaco Pensaria e o pretenderia, mas não poderia.
Sócrates Não foi isso que perguntei: quero saber se o
justo não teria nem a pretensão nem o desejo de prevalecer
sobre o justo, mas apenas sobre o injusto.
Trasímaco Assim é.
Sócrates E o injusto pretenderia prevalecer sobre o justo
e sobre a ação justa?
Trasímaco Como não, se ele pretende prevalecer
sobre todos?
Sócrates Então, prevalecerá sobre o homem injusto e
sobre a ação injusta e se empenhará em prevalecer sobre todos?
Trasímaco Isso mesmo.
Sócrates Resumindo: o justo não prevalece sobre o seu
semelhante, mas sobre o seu contrário; o injusto prevalece sobre
o seu semelhante e o seu contrário.
Trasímaco Excelentemente expresso.
Sócrates Porém, o injusto é sábio e bom, ao passo que
o justo não é nem uma coisa nem outra?
Trasímaco Excelente, também.
Sócrates Como conseqüência, o injusto asaeneiha-se ao
sábio e ao bom, e o justo não se lhes assemelha?
Trasímaco Como poderia ser diferente? Sendo o que é,
ele se assemelha aos seus semelhantes e o outro não se lhes
assemelha.
Sócrates Muito bem. Portanto, cada um é tal como aqueles
a que se assemelha?
Trasímaco Quem pode duvidar?
Sócrates Que seja, Trasímaco. Agora, não afirmas que
um homem é músico e que outro não o é?
Trasímaco Afirmo.
Sócrates Qual dos dois é conhecedor e qual não é?
Trasímaco Certamente, o músico é conhecedor e o
outro não é.
Sócrates E um não é bom nas coisas de que é conhecedor
e o outro não o é?
Trasímaco Certamente.
Sócrates Mas a respeito da medicina não é assim?
Trasímaco E assim.
Sócrates Agora, crês, excelente homem, que um músico
que afim a sua lira, esticando ou soltando as cordas, pretende
prevalecer sobre um músico ou ter vantagem sobre ele?
Trasímaco Não, não creio.
Sócrates Mas quererá prevalecer sobre um homem ignorante
em música?
Trasímaco Sim, com certeza.
Sócrates E o médico? Ao prescrever alimento e bebida,
quererá prevalecer sobre um médico ou sobre a prática médica?
Trasímaco Certamente que não.
Sócrates E sobre um homem que ignora a medicina?
Trasímaco Sim.
Sócrates Mas percebes, a respeito da ciência e da ignorância
em geral, se um conhecedor qualquer parece querer prevalecer,
com atos ou com palavras, sobre outro conhecedor e
não agir como o seu semelhante no mesmo caso.
Trasímaco Talvez seja necessário que seja assim.
Sócrates Mas, da mesma forma, não quererá o ignorante
prevalecer sobre o conhecedor e o ignorante?
Trasímaco Talvez.
Sócrates Ora, o conhecedor é sábio?
Trasímaco E.
Sócrates E o sábio é bom?
Trasímaco E.
Sócrates Portanto, o homem sábio e bom não quererá
prevalecer sobre o seu semelhante, mas sobre aquele que não
se assemelha a ele, sobre o seu oposto.
Trasímaco Aparentemente.
Sócrates Ao passo que o homem mau e ignorante quererá
prevalecer sobre o seu semelhante e o seu oposto.
Trasímaco Pode ser.
Sócrates Mas, Trasímaco, o nosso homem injusto não
prevalece sobre o seu oposto e o seu semelhante? Não o disseste?
Trasímaco Disse.
Sócrates E não é verdade que o justo não prevalecerá
sobre o seu semelhante, mas sim sobre o seu oposto?
Trasímaco É verdade.
Sócrates Então, o justo assemelha-se ao homem sábio
e bom e o injusto, ao homem mau e ignorante.
Trasímaco Pode ser.
Sócrates Mas nós havíamos afirmado que cada um deles
é igual àquele a que se assemelha.
Trasímaco De fato, afirmamos.
Sócrates Logo, o justo é bom e sábio e o injusto, ignorante
e mau.
Trasímaco concordou com tudo isto, não tão facilmente
como o meu relato, mas contra sua vontade e a muito custo.
Suava abundantemente, tanto mais que fazia muito calor e
foi então que, pela primeira vez, vi Trasímaco enrubescer! E
quando concordamos que a justiça é virtude e sabedoria e a
injustiça vício e ignorância, prossegui:
Sócrates Consideremos isto definido. Mas afirmamos
que a injustiça tem também a força. Não te lembras, Trasímaco?
Trasímaco LembrQ-me, mas não me agrada o que acabas
de afirmar e sei como refutar. Contudo, se eu usar da palavra,
com certeza dirás que estou fazendo um discurso. Por isso, deixa-
me falar à vontade ou, se queres interrogar-me, interroga-me;
e eu, como se faz com as velhas que contam histórias, dir-te-ei
seja! e te aprovarei ou desaprovarei com a cabeça.
Sócrates Mas, pelo menos, nao respondas contra a
tua opinião.
Trasímaco Farei como quiseres, já que não me deixas
falar. Que mais queres?
Sócrates Nada, por Zeus! Faz como preferires; vou
interrogar-te.
Trasímaco Interroga.
Sócrates Far-te-ei a mesma pergunta que há pouco, para
podermos continuar a discussão: o que é a justiça em comparação
com a injustiça? Com efeito, foi dito que a injustiça é
mais poderosa do que a justiça; mas agora, se a justiça é sabedoria
e virtude, conclui-se facilmente, penso eu, que ela é mais
poderosa do que a injustiça, visto que a injustiça é ignorância.
Já ninguém pode ignorá-lo. No entanto, não é de uma maneira
tão simples, Trasímaco, que pretendo abordar o assunto, mas
do ponto de vista seguinte: existe cidade injusta que tente sujeitar
ou tenha sujeitado outras cidades, mantendo um grande
número delas em escravidão?
Trasímaco Com certeza. E é assim que procederá a meffior
cidade, a mais perfeitamente injusta.
Sócrates Eu sei que era esta a tua tese. Mas a tal propósito
considero o seguinte ponto: uma cidade que se torna
senhora de outra cidade poderá fazê-lo sem intermédio da justiça
ou será obrigada a recorrer a ela?
Trasímaco Se, como dizias há pouco, a justiça for sabedoria,
recorrerá a ela; mas, se for como eu dizia, utilizará a
injustiça.
Sócrates Estou feliz, Traslmaco, por não aprovares ou
desaprovares com um gesto de cabeça e responderes tão bem.
Trasímaco Faço-o para te agradar.
Sócrates Muito amável da tua parte. Mas, por favor,
responde ainda a isto: achas que uma cidade, um exército, um
bando de salteadores ou de ladrões, ou qualquer outra associação
que persegue em comum um objetivo injusto, poderia
levar a cabo qualquer empresa se os seus membros violassem
entre si as normas da justiça?
Traslmaco Certamente que não.
Sócrates E se observassem as normas? Não seria melhor?
Trasfmaco Com certeza.
Sócrates Portanto, Trasímaco, a injustiça faz nascer entre
os homens dissensões, ódios e brigas, enquanto a justiça alimenta
a concórdia e a amizade. Concordas?
Trasímaco Assim seja! Não quero entrar em discussão
contigo.
Sócrates Estás se portando muito bem, excelente homem.
Mas responde a esta pergunta: se é próprio da injustiça
provocar o ódio em todo lugar onde acontece, aparecendo
em homens livres ou escravos, não fará que eles se odeiem,
briguem entre si e sejam impotentes para empreender seja o
que for em comum?
Trasfmaco Sem dúvida.
Sócrates E se a injustiça surgir em dois homens? Não
ficarão divididos, cheios de rancor, inimigos um do outro e
dos justos?
Trasímaco Ficarão.
Sócrates E se, maravilhoso amigo, a injustiça surgir em
um único homem, ela perderá o seu poder ou o manterá intato?
Trasímaco Penso que o manterá intato!
Sócrates Portanto, não parece possuir o poder, seja qual
for o lugar em que ela surja, cidade, tribo, exército ou sociedade,
de tornar primeiramente cada um deles incapaz de agir de acordo
consigo próprio, devido às dissensões e contendas que causa,
e, em seguida, de torná-lo inimigo de si mesmo, do seu oposto
e do justo?
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates E creio que, num único homem, a injustiça
produzirá os mesmos efeitos que está na sua natureza produzir;
em primeiro lugar, tomará esse homem incapaz de agir, provocando
nele a rebeldia e a discórdia; em seguida, irá transformá-
lo em inimigo de si mesmo e dos justos. Não é?
Trasímaco E.
Sócrates Mas, meu amigo, os deuses não são justos?
Trasímaco Que seja!
Sócrates Portanto, também entre os deuses, o injusto
será inimigo, e o justo amigo.
Trasímaco Regozija-te sem receio com os teus argumento:
não te contradirei, para não provocar o ressentimento da
assembléia.
Sócrates Então, continuemos! Alimenta-me com o resto
do festim, continuando a responder. Acabamos de concluir que
os homens justos são mais sábios, melhores e mais poderosos
do que os homens injustos, e que estes são incapazes de agir
harmonicamente e, quando dizemos que às vezes levaram
a bom termo um assunto em comum, não é, de maneira nenhuma,
a verdade, porque uns e outros não seriam poupados
se tivessem sido totalmente injustos; por isso, é evidente que
existia neles uma certa justiça que os impediu de se prejudicarem
mutuamente, na época em que causavam dano às suas vítimas,
e que lhes permitiu realizar o que realizaram; lançando-se em
seus injustos empreendimentos, só em parte estavam pervertidos
pela injustiça, visto que os inteiramente maus e os totalmente
injustos são também inteiramente incapazes de fazer seja
o que for. Eis como eu o compreendo, e não como tu supunhas
no início. Agora, precisamos analisar se a vida do justo é melhor
e mais feliz do que a do injusto: questão que tínhamos adiado
para análise posterior. Ora, parece-me que isso é evidente, conforme
aquilo que dissemos. No entanto, devemos analisar melhor
o problema, pois não se trata de uma discussão a respeito
de uma fflvialidade, mas sobre o modo como temos de regular
a nossa vida.
Trasímaco Então, analisa.
Sócrates Assim farei. Diz-me: parece-te que o cavalo
tem uma função?
Trasímaco Sim, me parece.
Sócrates Dirias, então, que é função do cavalo, ou de
qualquer outra criatura, apenas o que pode ser feito por ele ou
o que se faz melhor com ele?
Trasímaco Não compreendo.
Sócrates Explico-me melhor: tu podes enxergar sem ser
com os olhos?
Trasímaco Certamente que não.
Sócrates E podes ouvir sem ser com os ouvidos?
Trasímaco De forma alguma.
Sócrates Portanto, podemos afirmar que são essas as
funções desses órgãos.
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates Mas não podes podar uma videira com uma
faca, um trinchete e muitos outros instrumentos?
Trasímaco E por que não?
Sócrates Mas com nenhum outro, creio eu, tão bem
quanto com um podão, que existe para isso.
Trasímaco Concordo.
Sócrates Portanto, não afirmaremos que é essa a sua
função?
Trasímaco Por certo que afirmaremos.
Sócrates Julgo que agora compreendes melhor o que
eu dizia há pouco, quando te perguntava se a função de uma
coisa não é o que ela pode fazer ou o que ela faz melhor do
que as outras.
Trasímaco Compreendo e creio que é realmente essa a
função de cada coisa.
Sócrates Ótimo. Mas bâo existe também uma virtude
em cada coisa a que é atribuida uma função? Voltemos aos
exemplos anteriores: os olhos possuem uma função?
Trasímaco Possuem.
Sócrates Então, possuem também uma virtude?
Trasímaco Sim, possuem uma virtude.
Sócrates Muito bem! As orelhas, dissemos nós, possuem
uma função?
Trasímaco Sim.
Sócrates E, por conseguinte, também uma virtude?
Trasimaco Também uma virtude.
Sócrates Mas não acontece o mesmo com todas as coisas?
Trasímaco Acontece.
Sócrates Pois bem! Poderiam os olhos desempenhar bem
a sua função se não possuíssem a virtude que lhes é própria
ou se, em lugar dessa virtude, possuissem o vício contrário?
Trasímaco Como poderiam? Queres, por acaso, dizer
a cegueira, em vez da vista?
Sócrates Qual é a sua virtude, pouco importa; ainda
não to perguntei, mas apenas se cada coisa desempenha bem
a sua função por virtude própria e mal pelo vício contrário.
Trasímaco É como dizes.
Sócrates Posto isto, os ouvidos, sendo privados da sua
virtude própria, desempenharão mal a sua função?
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates Este princípio pode ser aplicado a todas as
outras coisas?
Trasímaco Julgo que sim.
Sócrates Então, analisa agora isto: a alma não possui
uma função que nada, a não ser ela, poderia desempenhar, como
vigiar, comandar, deliberar e o resto? Podemos atribuir estas
funções a outra coisa que não à alma e não temos o direito de
dizer que elas lhe são peculiares?
Trasímaco Não podemos atribuí-las a nenhuma outra coisa.
Sócrates E a vida? Não afirmaremos que é uma função
da alma?
Trasímaco Com certeza.
Sócrates Portanto, afirmaremos que a alma também possui
a sua virtude própria?
Trasímaco Afirmaremos.
Sócrates Então, Trasímaco, a alma executará bem essas
fimções se for privada da sua virtude própria? Ou será impossível?
Trasímaco Será impossível.
Sócrates Em decorrência disso, é obrigatório que uma
alma má comande e vigie mal e que uma alma boa faça bem
tudo isso.
Trasímaco É obrigatório.
Sócrates Ora, não concluímos que a justiça é uma virtude
e a injustiça, um vício da alma?
Trasimaco Concluímos.
Sócrates Por consegumte, a alma justa e o homem justo
viverão bem e o injusto, mal?
Trasímaco Assim parece, de acordo com o teu raciocínio.
Sócrates Então, aquele que vive bem é feliz e afortunado
e o que vive mal, o contrário.
Trasímaco Não há dúvida.
Sócrates Portanto, o justo é feliz e o injusto, infeliz.
Trasímaco Que seja!
Sócrates E não é vantajoso ser infeliz, mas ser feliz.
Trasímaco Sem dúvida.
Sócrates Por conseguinte, divino Trasímaco, jamais a
injustiça é mais vantajosa do que a justiça.
Trasímaco Que seja esse, Sócrates, o teu festim das festas
de Béndis!
Sócrates Tive-o graças a ti, Traslmaco, visto que recuperaste
a calma e deixaste de ser rude comigo. No entanto, não
me regalei o suficiente: por culpa minha, e não tua. Parece-me
que fiz como os glutões, que se lançam avidamente sobre o
prato que lhes entregam, antes de terem apreciado suficientemente
o anterior; da mesma forma, antes de termos encontrado
o que procurávamos inicialmente, a natureza da justiça, lanceime
numa discussão para analisar se ela é vício e ignorância ou
sabedoria e virtude; tendo surgido em seguida outra hipótese,
a de saber que a mjustiça é mais vantajosa do que a justiça,
não pude evitar de ir de uma para outra, de modo que o resultado
da nossa conversa é que não sei nada; porquanto, não
sabendo o que é a justiça, ainda menos saberei se é virtude ou
não e se aquele que a possui é feliz ou infeliz.
LIVRO II
Ao PROFERIR estas palavras, julgava ter-me livrado da
discussão; mas, na verdade, não passava de um prelúdio. Com
efeito, Glauco, que se mostrava corajoso em todas as ocasiões,
não admitiu a retirada de Trasímaco:
Glauco Contentas-te, Sócrates, em fingir que nos convenceste
ou queres convencer-nos realmente de que, de qualquer
maneira, é melhor ser justo que injusto?
Sócrates Preferiria convencer-vos dÉ verdade, se isso
dependesse de mim.
Glauco Então, não fazes o que pretendes. Com efeito,
diz-me: não te parece que existe uma espécie de bens que buscamos
não objetivando as suas conseqüências, mas porque os
amamos em si mesmos, como a alegria e os prazeres inofensivos,
que, por isso mesmo, não têm outro efeito que não seja o deleite
daquele que os possui?
Sócrates Sim, acredito sinceramente que existem bens
dessa espécie.
Glauco E não existem bens que amamos por si mesmos
e também por suas conseqüências, como o bom senso, a visão,
a saúde? Com efeito, tais bens nos são preciosos por ambos os
motivos.
Sócrates Sim.
Glauco Mas não vês uma terceira espécie de bens
como a ginástica, a cura de uma doença, o exercício da arte
médica ou de outra profissão lucrativa? Poderíamos dizerdestes
bens que exigem boa vontade; nós os buscamos não por
eles mesmos, mas pelas recompensas e as outras vantagens
que proporcionam.
Sócrates Concordo que essa terceira espécie existe. Mas
aonde queres chegar?
Glauco Em qual dessas espécies tu colocas a justiça?
Sócrates Na mais bela, creio, na dos bens que, por si
mesmos e por suas conseqüências, deve amar aquele que quer
ser plenamente feliz.
Glauco Não é a opinião da maioria dos homens, que
põem a justiça no nível dos bens penosos que é preciso cultivar
pelas recompensas e distinções que proporcionam, mas que devem
ser evitados por eles mesmos, porque são difíceis.
Sócrates Eu sei que é essa a opinião da maioria. E por
isso que, desde há muito, Trasímaco censura esses bens e elogia
injustiça. Mas, segundo parece, eu tenho a cabeça dura.
Glauco Então, escuta-me agora, se é que não mudaste
de opinião. Com efeito, creio que Traslmaco cedeu mais rapidamente
do que devia, fascinado por ti como uma serpente; eu
não me satisfiz com a vossa exposição sobre a justiça e a injustiça.
Desejo conhecer a sua natureza e qual o poder próprio de cada
uma, considerada em si mesma, na alma em que reside, sem
considerar as recompensas que proporcionam e as suas conseqüências.
Eis como procederei, se estiveres de acordo: retomando
a argumentação de Trasímaco, começarei por dizer o que
geralmente se entende por justiça e qual é a sua origem; em
segundo lugar, que aqueles que a praticam não o fazem por
vontade própria, por considerá-la uma coisa necessária, e não
um bem; em terceiro lugar, que têm razão para agirem assim,
dado que a vida do injusto é muito melhor do que a do justo,
como afirmam. Quanto a mim, Sócrates, não compartilho esta
opinião. No entanto, sinto-me embaraçado, pois tenho os ouvidos
cheios dos argumentos de Trasímaco e mil outros. Ainda
não ouvi ninguém falar da justiça e da sua superioridade sobre
a injustiça como o desejaria: gostaria de ouvir sendo elogiada
em si mesma e por ela mesma. E é principalmente de ti que
espero esse elogio. E por isso que, aplicando todas as minhas
forças, elogiarei a vida do injusto e, ao fazê-lo, mostrarei de
que maneira pretendo que censures a injustiça e elogies a justiça.
Mas vê se isto te convém.
Sócrates Caro que me convém. Com efeito, de que assunto
um homem sensato apreciaria falar e ouvir falar com
mais freqüência?
Glauco A tua observação é excelente. Escuta, então, o
que eu vou expor-te em primeiro lugar: qual é a natureza e a
origem da justiça.
Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau
sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-
la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem
e experimentam as duas situações, os que não podem evitar
um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem
a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as
leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia
a lei. E esta a origem e a essência da justiça: situa-se
entre o maior bem cometer impunemente a injustiça e o
maior mal sofrê-la quando se é incapaz de vingança. Entre
estes dois extremos, a justiça é apreciada não como um bem
em si mesma, mas porque a impotência para cometer a injustiça
lhe dá valor. Com efeito, aquele que pode praticar esta última
jamais se entenderá com ninguém para se abster de cometê-la
ou sofrê-la, porque seria louco. E esta, Sócrates, a natureza da
justiça e a sua origem, segundo a opinião comum.
Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade
de cometerem a injustiça é o que compreenderemos bem
se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao
injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamo-los e
observemos até onde o desejo leva a um e a outro. Apanharemos
o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o
injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros:
é isso que a natureza toda procura como um bem, mas que,
por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A permissão
a que me refiro seria especialmente significativa se eles
recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado
de Giges, o Lídio. Este homem era pastor a serviço
do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante
uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo
fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu
rebanho pastava. Tomado de assombro, desceu ao fundo do
abismo e, entre outras maravilhas que a lenda enumera, viu
um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-
se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do
que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de
que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse
anel no dedo, foi assistir à assembléia habitual dos pastores,
que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado
dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos
outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da
mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que
falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou
novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível.
Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o
anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio:
virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para
fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos
mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu
a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e
obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza
e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum
fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter
a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que
poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se
nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper
os grilhôes a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se
igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria
do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citarse-
ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por
vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um
bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer
a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça
é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa
isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se
alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse
cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o
mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem
da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-loiam,
mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo
de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer
sobre este assunto.
Agora, para fazermos um juízo da vida dos dois homens
aos quais nos referimos, confrontemos o mais justo com o mais
injusto e estaremos em condição de julgá-los bem; de outro
modo não o conseguiríamos. Mas como estabelecer esta confrontação?
Assim: não tiremos nada ao injusto da sua injustiça
nem ao justo da sua justiça, mas consideremo-los perfeitos, cada
um em sua modalidade de vida. Em primeiro lugar, que o injusto
aja como os artesãos hábeis como o piloto experiente,
ou o médico, distingue na sua arte o impossível do possível,
empreende isto e abandona aquilo; se se engana em algum ponto,
é capaz de corrigir o erro , tal como o injusto se dissimula
habilmente quando realiza alguma má ação, se quer ser superior
na injustiça. Daquele que se deixa apanhar deve-se fazer pouco
caso, porque a extrema injustiça consiste em parecer justo não
o sendo. Portanto, deve-se conceder ao homem perfeitamente
injusto a perfeita injustiça, não suprimir nada e permitir que,
cometendo os atos mais injustos, retire deles a maior reputação
de justiça; que, quando se engana em alguma coisa, é capaz de
corrigir o erro, de falar com eloqüência para se justificar se um
dos seus crimes for denunciado, e usar de violência nos casos
em que a violência for necessária, ajudado pela sua coragem,
o seu vigor e os seus recursos em amigos e dinheiro. Diante
de tal personagem coloquemos o justo, homem simples e generoso,
que quer, de acordo com Esquilo, não parecer, mas ser
bom. Tiremos-lhe esta aparência. Se, com efeito, parecer justo,
receberá, como tal, honrarias e recompensas; saber-se-á então
se é pela justiça ou pelas honrarias e as recompensas que ele
é assim. Para isso, é preciso despojá-lo de tudo, exceto de justiça,
e fazer dele o oposto do anterior. Sem que cometa ato injusto,
que tenha a maior reputação de injustiça, a fim de que a sua
virtude seja posta à prova, não se deixando enfraquecer por
uma má fama e suas conseqüências; que se mantenha inabalável
até a morte, parecendo injusto durante a vida toda, mas sendo
justo, a fim de que, chegando ambos aos extremos, um da justiça,
outro da injustiça, possamos julgar qual é o mais feliz.
Sócrates Oh, meu caro Glauco! Com que energia estás
limpando, tal qual estátuas, esses dois homens, para os submeteres
ao nosso julgamento!
Glauco Faço o melhor que posso. Agora, se eles são
como acabo de os apresentar, julgo não ser difícil descrever o
gênero de vida que os espera. Portanto, digamo-lo; e, se esta
linguagem for demasiado rude, lembra-te, Sócrates, que não
sou eu quem fala, mas aqueles que situam a injustiça acima da
justiça. Eles dirão que o justo, tal como o representei, será açoitado,
torturado, acorrentado, terá os olhos queimados, e que,
finalmente, tendo sofrido todos os males, será crucificado e saberá
que não se deve querer ser justo, mas parecê-lo. Assim,
as palavras de Esquilo aplicar-se-iam muito mais exatamente
ao injusto; porque, na realidade, dirão: é aquele cujas ações estão
de acordo com a verdade e que, não vivendo para as aparências,
não quer parecer injusto, mas sê-lo:
No sulco profundo de seu espírito ele colhe
a seara dos felizes projetos.
Em primeiro lugar, governa na sua cidade, graças ao seu aspecto
de homem justo; em seguida, arranja mulher onde lhe apraz,
constitui associações de prazer ou de negócios com quem lhe
agrada e tira proveito de tudo isso, porque não tem escrúpulos
em ser injusto. Se entra em conflito, público ou privado, com
alguém, prevalece sobre o adversário; por este meio enriquece-
se, ajuda os amigos, prejudica os inimigos, oferece aos seus
deuses sacrifícios e presentes com prodigalidade e magnificência
e concilia, muito melhor que o justo, os deuses e os homens a
quem quer agradar, sendo, por conseguinte, mais agradável aos
deuses do que o justo. Deste modo, dizem eles, Sócrates, os
deuses e os homens proporcionam ao injusto uma vida melhor
que ao justo.
Quando Glauco acabou de falar, dispunha-me a responder-
lhe, mas Adimanto, seu irmão, tomou a palavra:
Acreditas, Sócrates, que a questão foi suficientemente
desenvolvida?
Sócrates E por que não?
Adimanto O ponto essencial foi omitido.
Sócrates Pois bem! De acordo com o provérbio, que o
innão socorra o irmão! Se Glauco esqueceu algum ponto, ajuda-
o. No entanto, ele disse o suficiente para me pôr fora de
combate e na impossibilidade de defender a justiça.
Adimanto Desculpa inútil. Ouve mais isto. Com efeito,
é preciso que eu exponha a tese contrária à que Glauco defendeu,
a tese daqueles que elogiam a justiça e censuram a injustiça.
Ora, os pais recomendam aos filhos que sejam justos e assim
fazem todos os que são responsáveis por almas, elogiando não
a justiça em si mesma, mas a reputação que ela acarreta, a fim
de que aquele que parece justo consiga, por causa dessa reputação,
os cargos, as alianças e todas as outras vantagens que
Glauco enumerou como ligadas a uma boa fama. E essas pessoas
levam ainda mais longe os benefícios da aparência. Falam como
o bom Hesíodo e Homero. Com efeito, o primeiro diz que, para
os justos, os deuses fazem com que
Os carvalhos carreguem bolotas nos altos ramos
e abelhas no tronco;
acrescenta que, para eles,
as ovelhas se dobram ao peso do velo.
e que tenham muitos outros bens semelhantes. O segundo utiliza
mais ou menos a mesma linguagem. Fala de alguém como
de um rei irrepreensível que, temendo os deuses,
observa a justiça; e para ele, a terra negra produz
trigo e cevada, drvores vergadas sob o peso dos frutos;
o rebanho cresce e o mar oferece os seus peixes.
Museu e seu filho, da parte dos deuses, concedem aos
justos recompensas ainda maiores. Conduzindo-os aos Campos
Elísios, introduzem-nos no banquete dos virtuosos, onde, coroados
de flores, os fazem passar o tempo a embriagar-se, como
se a mais bela recompensa da virtude fosse uma embriaguez
eterna. Outros prolongam as recompensas concedidas pelos
deuses; dizem, com efeito, que o homem piedoso e fiel aos seus
juramentos revive nos filhos dos seus filhos e na sua posteridade.
E assim, e em termos parecidos, que fazem o elogio da justiça.
Quanto aos ímpios e injustos, mergulham-nos na lama do Hades
e os condenam a transportar água num crivo; durante a vida,
os condenam à infâmia, e todos esses castigos que Glauco enumerou
a propósito dos justos que parecem injustos são aplicados
aos maus; não conhecem outros. Tal é a sua maneira de elogiar
a justiça e censurar a injustiça.
Além disso, Sócrates, ouve outra concepção da justiça e
da injustiça desenvolvida pelo povo e pelos poetas. Todos são
unânimes em celebrar como boas a temperança e a justiça, mas
as consideram difíceis e penosas; a intemperança e a injustiça,
ao contrário, parecem-lhes agradáveis e de fácil domínio, somente
vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei; as
ações injustas, dizem eles, são mais proveitosas do que as justas,
no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes
e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao
contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que
são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores
que os outros. Mas, de todos estes discursos, os mais estranhos
são os que fazem acerca dos deuses e da virtude. Os próprios
deuses, dizem eles, reservaram muitas vezes aos homens virtuosos
o infortúnio e uma vida miserável, ao passo que concediam
aos maus a sorte contrária. Por seu lado, sacerdotes mendigas
e adivinhos vão às podas dos ricos e os convencem de
que obtiveram dos deuses o poder de reparar as faltas que eles
ou os seus antepassados cometeram, por meio de sacrifícios e
encantamentos, com acompanhamento de prazeres e festas; se
se quer prejudicar um inimigo por uma módica quantia, pode-se
causar dano tanto ao justo como ao injusto, por intermédio das
suas evocações e fórmulas mágicas, dado que, segundo afirmam,
convencem os deuses a se colocarem a seu serviço. Em apoio
a todas essas assertivas, invocam o testemunho dos poetas. Uns
falam da facilidade do vício:
Para o mal em bandos nos encaminhamos
facilmente: o caminho é suave e ele mora pato;
mas diante da virtude os deuses colocaram suor e trabalho.
Os outros, para provar que os homens podem influenciar os deuses, alegam
estes vemos de Homero:
Os próprios deuses deixam-se dobrar;
e, pelo sacrifício e devota prece,
as libações e das vítimas a fumaça,
o homem aplaca-lhes a ira
quando infringiu as suas leis e pecou.
E produzem grande quantidade de livros de Museu e Orfeu,
descendentes, dizem eles, de Selene e das Musas. Regulam
os seus sacrifícios por esses livros e convencem nao apenas os
simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser
absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte,
por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios.
Estas práticas os livram dos males do outro mundo, mas, se as
desprezarmos, esperam-nos terríveis suplícios.
Todos estes discursos, amigo Sócrates, e muitos outros que
se fazem sobre a virtude, o vício e a estima que lhes dedicam
os homens e os deuses, que efeito cremos que produzem na
alma do jovem dotado de bom caráter que os ouve e é capaz,
saltando de uma opinião para outra, de extrair daí uma resposta
a esta pergunta: o que se deve ser e que caminho se deve seguir
para atravessar a vida da melhor maneira possível? É provável
que diga a si próprio, com Píndaro: Escalarei, pela justiça ou por
tortuosos ardis, uma muralha mais alta, para aí me consolidar e passar
a minha vida? Conforme aquilo que se diz, se eu for justo sem
o parecer, não tirarei disso nenhum proveito, mas sim aborrecimentos
e prejuízos evidentes; se eu for injusto, mas gozando
de uma reputação de justiça, dirão que levo uma vida divina.
Portanto, visto que a aparência, como o demonstram os sábios,
violenta a verdade e é senhora da felicidade, para ela devo tender
inteiramente. Como fachada e cenário, devo criar ao meu redor
uma imagem de virtude e imitar a raposa do muito sábio Arquiloco,
animal astuto e rico em artimanhas. Mas, dir-se-á,
não é fácil esconder-se sempre quando se é mau. Realmente,
não, responderemos, e também nenhuma grande empresa é fácil;
no entanto, se queremos ser felizes, devemos seguir o caminho
que nos é traçado por esses discursos. Para não sermos
descobertos, formaremos associações e sociedades secretas, e
existem mestres de persuasão para nos ensinarem a eloqüência
pública e judiciária; graças a estes auxilios, convencendo aqui,
violentando acolá, venceremos sem incorrer em castigo. Mas,
argumentar-se-á, não é possível escapar ao olhar dos deuses
nem violentá-los. Se eles não existem ou se não se ocupam
dos problemas humanos, devemos preocupar-nos em escaparlhes?
E, se existem e se ocupam de nós, apenas os conhecemos
por ouvir dizer e pelas genealogias dos poetas; ora, estes pretendem
que são suscetíveis, por meio de sacrifícios, devotas preces
ou oferendas, de se deixar dobrar e é preciso acreditar nestas
duas coisas ou em nenhuma. Portanto, se é preciso acreditar,
seremos injustos e lhes ofereceremos sacrifícios com o produto
das nossas injustiças. Com efeito, se fôssemos justos, estaríamos
isentos de castigo por eles, mas renunciaríamos aos benefícios
da injustiça; ao contrário, sendo injustos, teremos esses benefícios
e, por intermédio de preces, escaparemos ao castigo das
nossas faltas e dos nossos pecados. Mas no Hades, dir-se-á,
sofreremos as penas das injustiças cometidas neste mundo, nós
ou os filhos dos nossos filhos. Mas, meu amigo, responderá o
homem que raciocina, os mistérios podem muito, assim como
os deuses libertadores, a crer nas grandes cidades e nos filhos
dos deuses, poetas e profetas, que nos revelam estas verdades.
Por que motivo havemos de continuar a preferir a justiça
à extrema injustiça, que, se a praticarmos com fingida honestidade,
nos permitirá triunfar junto dos deuses e junto dos homens,
durante a vida e depois da morte, como o afirmam a
maior parte das autoridades e as mais eminentes? Depois do
que foi dito, será ainda possível, Sócrates, consentir em honrar
a justiça quando se dispõe de alguma superioridade, de alma
ou de corpo, de riquezas ou de nascimento, e não rir ao ouvi-la
louvar? Deste modo, se alguém estiver em condições de provar
que mentimos e de se dar suficientemente conta de que a justiça
é o melhor dos bens, será indulgente e não se encolerizará contra
os homens injustos; sabe que, exceto aqueles que, sendo de natureza
divina, sentem aversão pela injustiça, e aqueles que se
abstêm porque receberam as luzes da ciência, ninguém é justo
por vontade própria, mas que é apenas a covardia, a idade ou
qualquer outra fraqueza que leva a censurar a injustiça, quando
se é incapaz de a cometer. A prova é clara: com efeito, entre
as pessoas que estão neste caso, a primeira que receber o poder
de ser injusto será a primeira a usá-lo, na medida das suas
possibilidades. E tudo isto não tem outra causa senão a que
nos empenhou, ao meu irmão e a mim, nesta discussão, Sócrates,
para te dizermos: Ó admirável amigo, entre vós todos que pretendeis
ser os defensores da justiça, a começar pelos heróis dos
primeiros tempos cujos discursos chegaram até nós, ainda ninguém
censurou a injustiça nem tampouco louvou a justiça de
outro modo, exceto pela reputação, pelas honras e recompensas
que a elas estão vinculadas; quanto ao fato de estarem uma e
outra, por seu próprio poder, na alma que as possui, ocultas
aos deuses e aos homens, ninguém, quer em verso, quer em
prosa, jamais demonstrou suficientemente que uma é o maior
dos males do espírito e a outra, a justiça, o seu maior bem.
Com efeito, se nos falassem todos assim desde o começo e se,
desde a infância, nos convencessem desta verdade, não precisaríamos
nos defender mutuamente da injustiça, mas cada um
de nós seria o melhor guarda de si mesmo, por causa do temor
de, se fosse injusto, coabitar com o maior dos males.
Tudo isso, Sócrates, e talvez mais, Trasímaco ou qualquer
outro poderia dizê-lo a respeito da justiça e da injustiça, invertendo
os seus respectivos poderes de forma deplorável, parece-
me. Quanto a mim pois não quero esconder-te nada ,
foi com o desejo de te ouvir sustentar a tese contrária que envidei,
tanto quanto possível, todos os meus esforços neste discurso.
Por isso, não te limites a provar-nos que a justiça é mais
forte que a injustiça; mostra-nos os efeitos que cada uma produz
por si mesma na alma onde se encontra e que fazem que uma
seja um bem e a outra, um mal. Coloca de lado as reputações
que nos proporcionam, como te aconselhou Glauco. Se, com
efeito, não colocares de lado, de um e de outro lado, as verdadeiras
reputações e lhes adicionares as falsas, diremos que não
aprecias a justiça, mas a aparência, que não censuras a injustiça,
mas a aparência, que recomendas ao homem injusto que se
esconda e que aceitas, da mesma forma que Trasímaco, que
a justiça é um bem alheio, vantajoso para o mais forte, enquanto
a injustiça é útil e vantajosa a si mesma, mas nociva
ao mais fraco.
Dado que reconheceste que a justiça pertence à classe dos
maiores bens, aqueles que devem ser procurados pelas suas
conseqüências e muito mais por eles mesmos, como a visão, a
audição, a razão, a saúde e todas as coisas que são verdadeiros
bens devido à sua natureza e não segundo a opinião, louva,
portanto, na justiça o que ela tem em si mesma de vantajoso
para aquele que a possui e condena na injustiça o que ela tem
de prejudicial; quanto às recompensas e à reputação, deixa que
outros as louvem. Eu, do meu lado, aceitaria que outro louvasse
a justiça e condenasse a injustiça desta maneira, elogiando e
condenando a reputação e as recompensas que acarretam, mas
não aceitarei que tu o faças, a não ser que me ordenes, visto
que passaste toda a tua vida a analisar esta única questão. Não
te contentes, pois, em provar-nos que a justiça é mais poderosa
que a injustiça, mas demonstra-nos também, pelas conseqüências
que cada uma delas produz em seu possuidor, ignoradas
ou não pelos deuses e pelos homens, que uma é um bem e a
outra, um mal.
Arrebatado pelos discursos de Glauco e Adimanto, cujas
qualidades sempre admirara, disse-lhes:
Não era sem motivo, ó filhos de tal pai, que o amante
de Glauco começava nos seguintes termos a elegia que vos dedicou,
quando vos distinguistes na batalha de Mégara:
Filhos de Aríston, divina raça de um homem ilustre.
Tal elogio, meus amigos, parece-me que vos cabe à perfeição.
De fato, existe algo de realmente divino nos vossos sentimentos
se não estais convencidos de que a injustiça vale mais
que a justiça, sendo capazes de falar assim, a respeito desta
questão. Ora, acredito que, na verdade, não estais convencidos
julgo-o pelos outros aspectos do vosso caráter, visto que. a
julgar apenas pela vossa linguagem, desconfiaria de vós e
quanto mais confiança vos concedo, mais confuso me sinto
quanto ao partido que devo tomar. Por um lado, não sei como
tomar a defesa da justiça; parece-me que não tenho forças para
isso e o sinal para mim é este: quando eu pensava ter demonstrado,
contra Trasímaco, a superioridade da justiça sobre
a injustiça, vós não aceitastes os meus argumentos. Por outro
lado, não sei como não tomar a sua defesa; com efeito, seria
pura impiedade abandonar a defesa da justiça, quando atacada
em minha presença, enquanto me resta alento e energia para
reagir. Por isso, o melhor é defendê-la o melhor que eu puder.
Ouvindo isso, Glauco e os outros suplicaram-me a utilizar
todos os meus recursos, que não abandonasse a discussão, mas
que investigasse a natureza da justiça e da injustiça e a verdade
das suas respectivas vantagens. Disse-lhes então o que sentia:
A busca que executamos não é de pouca importância,
mas exige, em minha opinião, grande acuidade de espírito. Ora,
dado que esta qualidade nos falta, dir-vos-ei como julgo que
se deve proceder. Se se ordenasse a pessoas com visão pouco
apurada que lessem de longe letras escritas em caracteres miúdos
e uma delas descobrisse que essas mesmas letras se encontram
escritas em outro lugar em grandes caracteres e num espaço
maior, ninguém duvidaria de que seria mais fácil ler primeiro
as letras grandes e examinar em seguida as miúdas, para
ver se são de fato iguais.
Adimanto Certamente. Mas, Sócrates, que tem isso a
ver com a investigação a respeito da natureza da justiça?
Sócrates A justiça é, como declaramos, um atributo não
apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?
Adimanto Sim.
Sócrates E a cidade não é maior que o indivíduo?
Adimanto Claro.
Sócrates Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e
mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos
por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida,
procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança
da grande justiça com a pequena.
Adimanto Estou de acordo.
Sócrates Porém, se estudarmos o nascimento de uma
cidade, não observaremos a justiça aparecer nela, tanto quanto
a injustiça?
Adimanto E possível.
Sócrates Então, encontraremos mais facilmente o que
buscamos?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Portanto, devemos ir até o fim nessa busca?
Em minha opinião, não é tarefa fácil. Ponderai-a.
Adimanto Está ponderado. Podes prosseguir.
Sócrates O que causa o nascimento a uma cidade, penso
eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a
si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas;
ou ju~Igas que existe outro motivo para o nascimento de uma
cidade?
Adimanto Não.
Sócrates Portanto, um homem une-se a outro homem
para determinado emprego, outro ainda para outro emprego,
e as múltiplas necessidades reúnem na mesma residência um
grande número de associados e auxiliares; a esta organização
demos o nome de cidade, não foi?
Adimanto Exatamente.
Sócrates Porém, quando um homem dá e recebe, está
convencido de que a troca se faz em seu proveito.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Construamos, pois, em pensamento, uma cidade,
cujos alicerces serão as nossas necessidades.
Adimanto Cedo.
Sócrates O primeiro deles, que é também o mais importante
de todos, consiste na alimentação, de que depende a
conservação do nosso ser e da nossa vida.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates O segundo consiste na moradia; o terceiro, no
vestuário e em tudo o que lhe diz respeito.
Adimanto Isso mesmo.
Sócrates Mas como poderá uma cidade prover a tantas
necessidades? Não será preciso que um seja agricultor, outro
pedreiro, outro tecelão? Poderemos acrescentar um sapateiro
ou qualquer outro adesão para as necessidades do corpo?
Adimanto Certamente.
Sócrates A cidade toda, então, será composta, essencialmente,
de ao menos quatro ou cinco homens.
Adimanto E o que parece.
Sócrates Então, cada um deverá desempenhar a sua
função para toda a comunidade. O lavrador, por exemplo, garantirá
sozinho a alimentação de quatro, gastando quatro vezes
mais tempo e trabalho em fazer a provisão de trigo que terá
de repartir com os outros. Mas não seria preferível que, trabailiando
apenas para si, só produzisse a quarta parte dessa alimentação
na quarta parte do tempo, destinando as outras
três quartas partes a procurar moradia, vestimentas e calçados,
tratando ele mesmo das suas coisas, sem se importar
com a comunidade?
Adimanto Talvez seja mais fácil trabalhar de acordo
com a primeira maneira.
Sócrates Por Zeus! Isto é absurdo! As tuas palavras me
sugerem o seguinte raciocínio: em primeiro lugar, a natureza
não fez todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e
aptos para esta ou aquela função. Concordas?
Adimanto Concordo.
Sócrates Em que circunstância, então, se trabalha melhor,
quando se exerce um só ofício ou vários ofícios de uma
só vez?
Adimanto Quando se exerce so um.
Sócrates Parece-me também que, quando se deixa passar
a oportunidade de fazer uma coisa, essa coisa perde-se.
Adimanto É verdade.
Sócrates Porque o trabalho a ser realizado não se acomoda
às conveniências do operário, mas este à natureza do
trabalho, sem perda de tempo.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates De onde se deduz que se produzem todas
as coisas em maior número, melhor e mais facilmente, quando
cada um, segundo as suas aptidões e no tempo adequado,
se entrega a um único trabalho, sendo dispensado de todos
os outros.
Adimanto É como dizes.
Sócrates Neste caso, são necessários mais de quatro
cidadãos para satisfazer as necessidades a que nos referimos.
Com efeito, o lavrador não deve fazer o próprio arado, se
quiser que seja de boa qualidade, tampouco a enxada, nem
as outras ferramentas agrícolas; também o pedreiro não fará
a sua ferramenta; o mesmo se dará com o tecelão e o sapateiro,
não concordas?
Adimanto Concordo.
Sócrates Desta forma, temos carpinteiros, ferreiros e
muitos outros operários aumentando a população de nossa pequena
cidade.
Adimanto Obviamente.
Sócrates Mas seria ainda maior se lhe juntássemos
boiadeiros, pastores e outras espécies de criadores de gado,
para que o lavrador tenha bois para a lavra da terra; o pedreiro,
animais de carga para transportar materiais; o tecelão
e o sapateiro, peles e lãs.
Adimanto Mas uma cidade que reunisse todas essas
pessoas já não seria tão pequena.
Sócrates E tem mais: seria impossível fundar uma cidade
num local onde não houvesse necessidade de importar nada.
Adimanto Sim, seria impossível.
Sócrates Haveria, pois, necessidade de outras pessoas
que, de outras cidades, trouxessem o que lhe falta.
Adimanto Sim, haveria necessidade.
Sócrates Porém, se essas pessoas fossem de mãos vazias,
não levando nada daquilo de que os fornecedores demandam,
também partiriam de mãos vazias, não é?
Adimanto Penso que sim.
Sócrates Será necessário, então, que a nossa cidade produza
não apenas aquilo de que precisa, mas também aquilo
que lhe é exigido pelos fornecedores.
Adimanto Decerto, será necessário.
Sócrates Por conseguinte, será necessário um maior número
de agricultores e de outros artesãos.
Adimanto Logicamente.
Sócrates E inclusive de pessoas que se encarreguem da
importação e da exportação das diversas mercadorias. Ora, estas
pessoas são os comerciantes, certo?
Adimanto São.
Sócrates Logo, também precisaremos de comerciantes.
Adimanto Com certeza.
Sócrates E, se o comércio se fizer por mar, ainda precisaremos
de gente versada na arte da navegação.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Mas, no interior da própria cidade, como os homens
irão permutar os produtos do seu trabalho? Já que foi com
esse propósito que os associamos ao findarmos uma cidade.
Adimanto Evidentemente que será através da venda e
da compra.
Sócrates Neste caso, necessitaríamos de um mercado e
de moeda, símbolo do valor das mercadorias permutadas.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Mas, se o lavrador ou qualquer outro operário
que leva ao mercado um de seus produtos não conseguir
se encontrar com aqueles que querem fazer permutas com
ele, interromperá o seu trabalho para ficar sentado no mercado
esperando-os?
Adimanto De jeito nenhum. Existem pessoas que se
encarregam desse serviço; nas cidades bem organizadas, são
geralmente as pessoas mais fracas de saúde, incapazes de qualquer
outro trabalho. O seu papel é ficar no mercado, comprar
a dinheiro aos que vendem, e depois vender, também a dinheiro,
aos que desejam comprar.
Sócrates Logo, esta necessidade dá origem à classe dos
mercadores na nossa cidade; damos este nome não é mesmo?
àqueles que se dedicam à compra e à venda, com estabelecimento
aberto no mercado, e o de negociantes aos que viajam
de cidade em cidade.
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates Existem também outras pessoas que prestam
serviços: aquelas que, sem talento para outro tipo de serviço,
são, pelo seu vigor corporal, aptos para os trabalhos pesados;
vendem o emprego da sua força física e, como denominam salário
o preço do seu trabalho, damos-lhes o nome de assalariados,
não é assim?
Adimanto Exatamente.
Sócrates Esses assalariados, no meu entender, representam
o complemento da cidade.
Adimanto É também a minha opinião.
Sócrates Então, a nossa cidade já não cresceu suficientemente
para ser considerada perfeita?
Adimanto Talvez.
Sócrates E onde encontraremos a justiça e a injustiça?
De qual dos elementos que mencionamos julgas que elas se
originam?
Adimanto Eu não o sei, Sócrates, salvo se for das relações
mútuas dos cidadãos.
Sócrates Talvez tenhas razão. Mas convém que analisemos
o caso sem desanimar. Comecemos considerando como
viverão as pessoas assim organizadas. Não produzirão trigo,
vinho, vestuário, calçados? Não edificarão moradias? Durante
o verão, trabalharão quase nuas e descalças, e, no inverno, vestidas
e calçadas. Para se alimentar, prepararão farinha de cevada
e de frumento, cozinhando esta e apenas amassando aquela;
colocarão seus estupendos bolos e os seus pães em ramos ou
folhas frescas e, deitadas em camas de folhagem, feitas de teixo
e de murta, regalar-seão com seus filhos, bebendo vinho, com
a cabeça coroada de flores, e cantando louvores aos deuses;
passarão assim agradavelmente a vida juntos e regularão o número
de filhos pelos seus recursos, para evitar os incômodos
da pobreza e os temores da guerra.
Neste ponto, Glauco interveio:
Pareceme que não dás nada a esses homens além de
pão seco.
Sócrates Tens razão. Esqueci-me de dizer que, evidentemente,
eles terão sal, azeitonas, queijo, cebolas e esses legumes
cozidos que se costumam preparar no campo. Como sobremesa,
terão figos, ervilhas e favas; assarão na brasa bagas de murta
e bolotas, que comerão, bebendo moderadamente. Assim, passando
a vida em paz e com saúde, morrerão velhos, como é
natural, e legarão aos filhos uma vida semelhante à deles.
Glauco Se fundasses uma cidade de suínos, Sócrates,
engordá-los-ias de maneira diferente?
Sócrates Como devem então viver, Glauco?
Glauco Como geralmente se vive. Devem se deitar
em camas, penso eu, se quiserem sentir-se confortáveis, comer
sentados à mesa e servir-se de pratos e de sobremesas hoje
conhecidos.
Sócrates Que assim seja, compreendo. Não estamos
considerando apenas uma cidade em formação, mas também
uma cidade repleta de luxo. Talvez o processo não seja mau;
de fato, é possível que um tal exame nos mostre como a justiça
e a injustiça se originam nas cidades. Contudo, creio que a
verdadeira cidade deva ser a que descrevi como sã; agora,
se quiserdes, examinaremos uma cidade tomada de excitação;
nada impede que o façamos. Parece que muitos não se satisfarão
com esse padrão de vida simples e com esse regime:
terão leitos, mesas, móveis de toda a espécie, pratos requintados,
essências aromáticas, perfumes para queimar, cortesãs,
variadas iguanas, e tudo isto em grande quantidade. Portanto,
já não podemos considerar apenas necessárias as coisas a que
nos referimos no começo: moradias, vestuários e calçados;
teremos de levar em conta a pintura e a arte de bordar, procurar
ouro, marfim e materiais preciosos de todas as qualidades.
Não é isso?
Glauco É.
Sócrates Sendo assim, precisamos aumentar a cidade,
pois aquela que consideramos sã já não é suficiente, e enchê-la
de uma multidão de pessoas que não estão nas cidades por
necessidade, como os caçadores de toda a espécie e os imitadores,
a turba dos que imitam as formas e as cores e a turba
dos que cultivam a música: os poetas com seu cortejo de cantores
ambulantes, atores, dançarmos, empresários de teatro, fabricantes
de artigos de todo tipo e especialmente de adornos femininos.
Precisaremos também de aumentar o número dos servidores;
ou achas que não teremos necessidade de pedagogos, amas,
governantas, criadas de quarto, cabeleireiros e também cozinheiros
e mestres cozinheiros? E teremos necessidade também
de porqueiros! Não existia nada disto na nossa primeira cidade,
porque não havia necessidade, mas nesta será indispensável. E
devemos acrescentar gado de toda a espécie, para aqueles que
desejarem comer carne, não te parece?
Glauco E por que não?
Sócrates Mas, levando este tipo de vida, teremos necessidade
de muito mais médicos do que antes.
Glauco Muito mais.
Sócrates E a pátria, que até então era de tamanho suficiente
para alimentar os seus habitantes, tornar-se-á demasiado
pequena e insuficiente. Que achas disto?
Glauco Que é verdade.
Sócrates Então seremos obrigados a tomar as pastagens
e lavouras dos nossos vizinhos? E eles não farão a mesma coisa
em relação a nós, se, ultrapassando os limites do necessário, se
entregarem, como nós, a uma insaciável cupidez?
Glauco E bem provável, Sócrates.
Sócrates Iremos então à guerra, ou faremos outra coisa?
Glauco hemos à guerra.
Sócrates Ainda não chegou o momento de dizer se a
guerra acarreta bons ou maus resultados; notemos apenas que
descobrimos a origem da guerra nessa paixão que é, no mais
alto grau, geradora desse flagelo tão funesto para o indivíduo
e a sociedade.
Glauco Exatamente.
Sócrates Então, meu amigo, a cidade precisa aumentar
ainda mais, e não em pouca coisa, pois redamará todo um exército
que possa entrar em campanha pana defender todos os bens
a que nos referimos e fazer frente aos invasores.
Glauco Mas como? Os cidadãos não podem fazer isso?
Sócrates Não, se tu e todos nós concordamos com o
princípio, quando fundamos a cidade, de que é impossível a
um único homem exercer satisfatoriamente vários ofícios.
Glauco Tens razão.
Sócrates E não achas que o oficio de guerreiro depende
de uma técnica?
Glauco Sim, com certeza.
Sócrates Tu crês que se deve dar mais atenção à arte
do calçado do que à arte da guerra?
Glauco De forma alguma.
Sócrates Mas nós negamos ao sapateiro o direito de
exercer ao mesmo tempo o oficio de lavrador, tecelão ou pedreiro;
obrigamo-lo a ser apenas sapateiro, para que os trabalhos
de sapataria sejam bem executados; da mesma forma, atribuímos
a cada um dos outros artesãos um único ofício, aquele
para o qual está habilitado por natureza, se quer tirar proveito
das oportunidades a desempenhar bem a sua tarefa. Mas não
é importante que o oficio da guerra seja bem executado? Ou é
fácil que um lavrador, um sapateiro ou qualquer outro artesão
possa, ao mesmo tempo, ser guerreiro, quando não se pode ser
bom jogador de gamão ou de dados, se não se praticarem estes
jogos desde a infância, e não apenas nas horas livres? Bastará
prover-se de um escudo ou de qualquer outra arma para se
tornar, de um dia para o outro, bom guerreiro, ao passo que
os instrumentos das outras artes, tomados nas mãos, nunca darão
origem a um artesão nem a um atleta e serão inúteis a
quem não tiver adquirido o seu conhecimento e não se tiver
treinado suficientemente?
Glauco Se assim fosse os instrumentos teriam um enorme
valor!
Sócrates Portanto, quanto mais importante é a função
de guardião do Estado, mais tempo livre exige e também mais
arte e aplicação.
Glauco Acredito que sim
Sócrates E não são necessárias habilidades naturais para
exercer esta profissão?
Glauco Claro que sim.
Sócrates Logo, parece que a nossa tarefa consistirá em
escolher, se formos capazes, os que são habilitados por natureza
a defender a cidade.
Glauco Com certeza, será essa a nossa tarefa.
Sócrates Mas é uma tarefa bastante difícil! No entanto,
não devemos perder a coragem, pelo menos enquanto tivermos
forças.
Glauco É verdade, não devemos perder a coragem.
Sócrates Muito bem! Pensas que o caráter de um cachorro
de boa raça difere, no que concerne à guarda, do de um
jovem e valoroso guerreiro?
Glauco Que estás querendo dizer com isso?
Sócrates Que tanto um quanto o outro precisam ter
um sentido apurado para descobrir o inimigo, velocidade para
persegui-lo e força para combatê-lo, se for preciso, quando
o alcançam.
Glauco Certamente, todas essas qualidades são exigidas.
Sócrates E também coragem para lutar bem.
Glauco Com certeza.
Sócrates Mas será corajoso aquele que não estiver enraivecido,
seja cavalo, cachorro ou outro animal qualquer? Já
percebeste que a cólera é algo indomável e invencível e que o
espírito que a possui não pode temer nem ceder?
Glauco Percebi.
Sócrates São estas, pois, as qualidades que deve ter o
guardião no que concerne ao corpo?
Glauco Sim.
Sócnates E no que concerne ao espírito, deve ser de
temperamento irascível?
Glauco Sim, também.
Sócrates Mas então, Glauco, não serão ferozes uns com
os outros e com o restante dos cidadãos que tiverem os mesmos
temperamentos?
Glauco Por Zeus! Só poderá ser dessa maneira!
Sócrates Entretanto, é preciso sejam mansos com os seus
e rudes com os inimigos; caso contrário, não esperarão que outros
destruam a cidade: eles mesmos a destruirão.
Glauco E o que receio.
Sócrates Que fazer, então? Onde encontraremos um temperamento
ao mesmo tempo manso e irascível? Pois um temperamento
manso é o oposto de um temperamento irascível.
Glauco E o que parece.
Sócrates Contudo, se faltar uma destas qualidades, não
teremos um bom guardião. Tê-las a ambas é impossíveL de
onde se conclui que um bom guerreiro não se encontra em
parte alguma.
Glauco Receio que estás com a razao.
Hesitei por alguns instantes, refletindo no que acabávamos
de dizer, e depois continuei:
Sócrates Bem que merecemos estar em embaraço, meu
amigo, por termos abandonado a comparação que havíamos
proposto.
Glauco Que queres dizer?
Sócrates Não afirmamos que existem naturezas que julgávamos
impossíveis e que reúnem estas qualidades contrárias.
Glauco Onde?
Sócrates Podemos perèebê-las em diversos animais, mas
principalmente naquele que comparávamos ao guardião. Sem
dúvida, tu sabes que os cães de boa raça são, por natureza, tão
mansos quanto possível para as pessoas da casa e para os que
eles conhecem, mas o contrário para aqueles que não conhecem.
Glauco Claro que eu sei.
Sócrates Logo, a coisa é perfeitamente possível, e não
iremos ao arrepio da natureza se procurarmos um guardião
com este temperamento.
Glauco Penso que não.
Sócrates Então, não julgas que ainda falta unta qualidade
ao nosso futuro guarda? Além do temperamento irascível, deve
ter também uma natureza filosófica.
Glauco Como assim? Não estou entendendo.
Sócrates Perceberás esta qualidade no cão, e ela é digna
de admiração num animal.
Glauco Que qualidade?
Sócrates Que faz com que ele ladre para um desconhecido,
embora não tenha sofrido nenhum mal, e agrade aquele
que conhece, mesmo que não tenha recebido dele nenhum bem.
Isto nunca te espantou?
Glauco Nunca prestei muita atenção até agora, mas e
evidente que o cão age dessa forma.
Sócrates E manifesta assim uma bonita e fflosófica maneira
de sentir.
Glauco Como assim?
Sócmtes Pelo simples fato que conhece um e não conhece
o outro, sabe distinguir um rosto amigo de um rosto inimigo.
Ora, quem não desejaria saber distinguir, pelo conhecimento e
pela ignorância, p amigo do estranho?
Glauco E impossível ser de outra maneira.
Sócrates Mas a natureza ávida por aprender é o mesmo
que natureza filosófica?
Glauco E.
Sócrates Por conseguinte, não podemos admitir também
que o homem, para ser manso com os seus amigos e conhecidos,
deve, por natureza, ser filósofo e ávido por aprender?
Glauco Que seja.
Sócrates Sendo assim, filósofo, irascível, ágil e forte será
aquele que destinamos a tornar-se um bom guardião da cidade.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Tal será, então, o caráter do nosso guerreiro.
Mas como educá-lo e instruí-lo? O exame desta questão pode
ajudar-nos a descobrir o objeto de todas as nossas pesquisas,
isto é, como surgem a justiça e a injustiça numa cidade. Preci-
Samos sabê-lo, porque não queremos nem omitir um ponto importante
nem perder-nos em divagações inúteis.
Adirnanto Eu penso que esse exame nos será útil para
atingirmos o nosso objetivo.
abandoná-la, por muito longa que possa ser!
Adimanto Lógico que não!
Sócrates Então, como se contássemos uma fábula para
nos entreter, façamos com palavras a educação desses homens.
Adimanto E o que precisamos fazer.
Sócrates Mas que educação lhes proporcionaremos? Será
possível encontrar uma melhor do que aquela que foi descoberta
ao longo dos tempos? Ora, para o corpo temos a ginástica e
para a alma, a música.
Adimanto Certamente.
Sócrates Não convém começarmos a sua educação pela
musica em lugar da ginástica?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Tu admites que os discursos fazem parte da
música ou não?
Adimanto Admito.
Sócrates E existem dois tipos de discursos, os verdadeiros
e os falsos?
Adimanto Sim, existem.
Sócrates Ambos entrarão na nossa educação ou começaremos
pelos falsos?
Adimanto Não estou entendendo.
Sócrates Nós não começamos contando fábulas às crianças?
Geralmente são falsas, embora encerrem algumas verdades.
Utilizamos essas fábulas para a educação das crianças antes de
levá-las ao ginásio.
Adimanto É verdade.
Sócrates Este é o motivo por que eu dizia que a música
deve preceder a ginástica.
Adimanto E tens razão.
Sócrates E não sabes que o começo, em todas as coisas,
é sempre o mais importante, mormente para os jovens? Com
efeito, é sobretudo nessa época que os modelamos e que eles
recebem a marca que pretendemos imprimir-lhes.
Adimanto Com certeza.
Sócrates Sendo assim, vamos permitir, por negligência,
que as crianças ouçam as primeiras fábulas que lhes apareçam,
criadas por indivíduos quaisquer, e recebam em seus espíritos
entender, quando forem adultos?
Adimanto De forma alguma permitiremos.
Sócrates Portanto, parece-me que precisamos começar
por vigiar os criadores de fábulas, separar as suas composições
boas das más. Em seguida, convenceremos as amas e as mães
a contarem aos filhos as que tivermos escolhido e a modelarem-
lhes a alma com as suas fábulas muito mais do que o corpo
com as suas mãos.1 Mas a maior parte das que elas contam
atualmente devem ser condenadas.
Adimanto Quais?
Sócrates Julgaremos as pequenas pelas grandes, porquanto
umas e outras devem ser calcadas nos mesmos moldes
e produzir o mesmo efeito; concordas?
Adimanto Concordo. Mas não sei quais são essas grandes
fábulas de que falas.
Sócrates São as de Hesíodo, Homero e de outros poetas.
Eles compuseram fábulas mentirosas que foram e continuam
sendo contadas aos homens.
Adimanto Quais são essas fábulas e o que há nelas de
condenável?
Sócrates O que antes e acima de tudo deve ser condenado,
mormente quando a mentira não possui beleza.
Adimanto E quando não possui?
Sócrates Quando os deuses e os heróis são mal representados,
como um pintor que pinta objetos sem nenhuma semelhança
com os que pretendia representar.
Adimanto E com razão que se condenem tais coisas.
Mas como dizemos isso e a que estamos nos referindo?
Sócrates Em primeiro lugar, aquele que criou a maior
das mentiras a respeito dos maiores dos seres criou-a sem beleza,
quando disse que Urano fez o que relata Hesíodo e como Cronos
se vingou. Mesmo que o comportamento de Cronos e a maneira
como foi tratado pelo filho fossem verdadeiros, penso que não
deviam ser narrados com tanta leviandade a seres desprovidos
de razão e às crianças, mas que seria preferível enterrá-los no
[1 - Naquela época, costumava-se massagear as crianças, para que adquirissem uma
boa conformação. ]
silêncio; e, se é necessário falar nisso, deve-se fazê-lo em segredo,
diante do menor número possível de ouvintes, depois de ter
imolado, não um porco, mas uma vítima grande e difícil de
conseguir, para que haja muito poucos iniciados.
Adimanto De fato, essas histórias são abomináveis.
Sócrates E não devem ser contadas na nossa cidade.
Não se deve dizer diante de uni jovem ouvinte que, cometendo
os piores crimes e castigando um pai injusto da forma mais
cruel, não faz nada de extraordinário e age como os primeiros
e os maiores dos deuses.
Adnnanto Não, por Zeus! A mim também parece que
tais coisas não se devam dizer!
Sócrates Deve-se também evitar contar que os deuses
fazem guerra entre si e que armam ciladas recíprocas, porque
não é verdade, se quisermos que os futuros guardiães da nossa
cidade considerem o cúmulo da vergonha discutir levianamente.
E ainda menos se lhes deve contar ou representar em tapeçarias
as lutas dos gigantes e esses ódios de toda a espécie que armaram
os deuses e os heróis contra os seus parentes e amigos.
Ao contrário, se quisermos convencê-los de que jamais a discórdia
reinou entre os cidadãos e que tal coisa é ímpia, devemos
fazer com que os adultos lhes digam isto desde a infância. Cumpre
ainda cuidar para que poetas componham para eles fábulas
que tendam para o mesmo objetivo. Que jamais se lhes conte
a história de Hera acorrentada pelo filho, de Hefesto precipitado
do céu pelo pai, por ter defendido a mãe, que aquele maltratava,
e os combates de deuses que Homero imaginou, quer essas
ficções sejam alegóricas, quer não. Pois uma criança não pode
diferenciar uma alegoria do que não é, e as opiniões que recebe
nessa idade tornam-se indeléveis e inabaláveis. E devido a isso
que se deve fazer todo o possível para que as primeiras fábulas
que ela ouve sejam as mais belas e as mais adequadas a ensinar-
lhe a virtude.
Adimanto Tudo que dizes é profundamente sensato.
Porém, se alguém nos indagasse o que entendemos por isso e
que fábulas são essas, que responderíamos?
Sócrates Mas, Adimanto, nem tu nem eu somos poetas,
mas fundadores de cidade. Compete aos fundadores conhecer
os modelos que devem seguir os poetas nas suas histórias e
proibir que se afastem deles; mas não lhes compete criar fábulas.
Adimanto Está bem. Mas, ainda assim, gostaria de saber
quais são os modelos que se devem seguir nas histórias que se
referem aos deuses.
Sócrates Vou dizer-te. Deve-se representar Deus sempre
tal como é, quer seja representado na epopéia, na poesia
lírica ou na tragédia.
Adimanto Perfeitamente de acordo.
Sócrates Não é certo que Deus é essencialmente bom
e não é assim que se deve falar dele?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Mas nada do que é bom pode ser prejudicial,
não é mesmo?
Adimanto É o que penso.
Sócrates Pode prejudicar aquilo que em si não é
prejudicial?
Adimanto De modo algum.
Sócrates Pode fazer mal aquilo que não prejudica?
Adimanto Também não.
Sócrates E o que não faz mal pode ser causa de
algum mal?
Adimanto Impossível.
Sócrates E aquilo que é bom é benéfico? O bem é
benéfico?
Adimanto Sim.
Sócrates E, rr conseguinte, é a causa do êxito?
Adimanto E.
Sócrates Então, o bem não é a causa de todas as coisas;
é a causa do que é bom e não do que é mau.
Adimanto Necesariamente.
Sócrates Assim, Deus, dado que é bom, não é a causa
de tudo, como se pretende vulgarmente; é causa apenas de uma
pequena parte do que acontece aos homens, e não o é da maior,
já que os nossos bens são muito menos numerosos que os nossos
males e só devem ser atribuídos a Ele, enquanto para os nossos
males devemos procurar outra causa, mas não Deus.
Adimanto Nada mais certo, penso eu.
Sócrates E impossível, portanto, admitir, de Homero
ou de qualquer outro poeta, erros acerca dos deuses tão absurdos
como estes:
Dois tonéis se encontram no palácio de Zeus,
Um repleto de fados felizes, e outro, infelizes,
e aquele a quem Zeus concede dos dois
ora experimenta do mal, ora do bem;
mas o que só recebe do segundo, sem mistura,
a devoradora fome persegue-o sobre a terra divina;
e ainda que Zeus é para nós
dispensador tanto dos bens como dos males.
E, se algum poeta nos disser, a respeito da violação dos
juramentos e dos tratados de que Pandaro se tomou culpado,
que foi cometida por instigação de Atena e de Zeus, não o
a,provaremos, assim como não aprovaremos aquele que tomou
Artemis e Zeus responsáveis pela querela e julgamento das deusas;
da mesma forma não permitiremos que ouçam os versos
de Ésquio onde se diz que
Deus engendra o crime entre os mortais
quando quer arruinar inteiramente uma casa.
Se alguém compõe um poema a respeito das desgraças de
Níobe, dos pelópidas, dos troianos ou acerca de qualquer outro
tema semelhante, não deve dizer que tais desgraças são obra
de Deus ou, se o disser, deve justificá-lo, mais ou menos como
nós, agora, tentamos fazer. Deve declarar que, com isso, Deus
só fez o que era justo e bom e que aqueles a quem castigou
tiraram proveito daí; mas nós não devemos dar ao poeta a li-
[1 Menção à pendéricia entre as três densas: Hera, Atena e Afrodite e ao iuleamento de
Páris a respeito. Tratava-se de saber qual das três densas era a mais bela, O prémio, um
pomo de ouro, foi atribuído a Afrodite, o qu provocou que as densas derrotadas
planejassem a perdiçio dos troianos, consumada por intermédio do rapto de Helena por
Pária. ]
berdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e
que Deus foi o autor dos seus males. Ao contrário, se ele disser
que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus
lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre. Portanto,
se disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de
alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças
e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens
ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que
deve ter boas leis, porque seria pecaminoso, abusivo e absurdo.
Adimanto Tal regra me agrada.
Sócrates Assim, esta é a primeira regra e o primeiro modelo
a que devemos obedecer nos discursos e nas composições poéticas:
Deus não é a causa de tudo, mas tão-somente do bem.
Adimanto Isso basta.
Sócrates Vejamos agora a segunda regra. Acreditas que
Deus seja um mágico capaz de assumir, perfidamente, formas
variadas, ora de fato presente e transformando a sua imagem
numa infinidade de figuras diferentes, ora enganando-nos e
mostrando de si mesmo apenas simulacros sem realidade? Não
será antes um ser simples, de todo incapaz de deixar a forma
que lhe é própria?
Adimanto Não sei o que responder-te.
Sócrates Não concordas, ao menos, em que, se um ser
deixa sua forma que lhe é própria, tal transformação deve, forçosamente,
provir de si mesmo ou de outro ser?
Adimanto Sim, sem dúvida.
Sócrates Pois bem, as coisas melhor constituídas não
são as menos sujeitas a ser alteradas e movidas por uma iiifluência
estranha? Pensa, por exemplo, nas alterações causadas
no corpo pelo alimento, pela bebida, pela fadiga, ou na planta
pelo calor do Sol, pelo vento e por outros acidentes que tais; o
indivíduo mais são e vigoroso não é o menos atingido?
Adimanto Sim.
Sócrates E, da mesma maneira, não é a alma mais corajosa
e sábia a que menos é perturbada e alterada pelos acidentes
exteriores?
Adimanto Por certo.
Sócrates Pelo mesmo motivo, de todos os objetos produzidos
pelo trabalho humano, edifícios, vestuário, os bem traagentes
de destruição alteram menos.
Adimanto E exato.
Sócrates Em geral, todo o ser perfeito, que tira a sua
perfeição da natureza, da arte ou das duas, está menos sujeito
às transformações vindas de fora.
Adimanto Assim é.
Sócrates Mas se Deus é perfeito, tudo que se refere à
sua natureza é em todos os aspectos perfeito?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Assim, pois, Deus é o menos sujeito a receber
formas diferentes.
Adimanto Certamente.
Sócrates Seria, então, por si mesmo que Ele mudaria e
se transformaria?
Adimanto Evidentemente, seria por si mesmo, se é certo
que Ele sofre tais mudanças.
Sócrates Mas Ele toma uma forma melhor e mais bela
ou pior e mais feia?
Adimanto Forçosamente, toma uma forma pior, porque
não seria apropriado dizer que falta a Deus algum grau de
beleza ou de virtude.
Sócrates Muito bem. Mas, se assim é, acreditas, Adünanto,
que um ser se torna voluntariamente pior em qualquer aspecto
que seja quer se trate de um deus, quer de um homem?
Adimanto E impossível.
Sócrates Então, também é impossível que um deus concorde
em transformar-se; sendo cada um dos deuses o mais
belo e o melhor possível, permanece sempre na forma que lhe
é própria.
Adimanto Parece-me que é necessário que seja assim.
Sócrates Que nenhum poeta, pois, meu bom amigo, nos
diga que
os deuses sob o aspecto de remotos estrangeiros,
e assumindo todas as frrmas, percorrem as cidades...
e que nos venha impingir muitas outras mentiras desta natureza.
Que as mães, convencidas pelos poetas, não assustem os filhos
contando-lhes que certos deuses vagueiam de noite disfarçados
blasfemar contra os deuses e tornar as crianças mais medrosas
e covardes.
Adimanto Sou do mesmo parecer.
Sócrates Entretanto, poderiam os deuses, incapazes de
mudança por si mesmos, fazer-nos crer que assumem formas
diversas, usando de impostura e encantamento?
Adimanto Talvez.
Sócrates Como assim?! Poderia um deus nos mentir,
por palavras ou atos, apresentando-nos um fantasma como se
fosse ele mesmo?
Adimanto Não sei.
Sócrates Por ventura ignoras que a verdadeira mentira,
se assim me posso expressar, é igualmente abominada pelos
deuses e pelos homens?
Adimanto Que queres dizer?
Sócrates Que ninguém aceita de bom grado ser enganado,
na parte soberana do seu ser, no que diz respeito aos
assuntos mais importantes; ao contrário, a mentira é a coisa
mais temida.
Adimanto Ainda não te compreendo
Sócrates Crês, com certeza, que exprimo um oráculo;
ora, eu digo que ser enganado na alma sobre a natureza das
coisas, continuar a sê-lo e ignorá-lo, aceitar e manter o erro é
o que se suporta menos; e é principalmente neste caso que a
mentira é detestada.
Adimanto Tens bastante razão.
Sócrates Pois pode-se denominar verdadeira mentira o
que acabo de mencionar: a ignorância em que, na sua alma, se
encontra a pessoa enganada; porque a mentira nos discursos
nada mais é que uma imitação do estado da alma, uma imagem
que se produz mais tarde, e não uma mentira absolutamente
pura. Não é verdade?
Adimanto Certamente.
Sócrates Assim, a verdadeira mentira é igualmente execrada
pelos deuses e pelos homens.
Adimanto Assim penso.
Sócrates Mas, às vezes, a mentira nos discursos é útil
a alguns, de maneira a não merecer o ódio? No que diz respeito
aos inimigos e àqueles a quem chamamos de amigos, quando
impelidos pelo ódio ou pelo desatino, realizam alguma ação má,
a mentira não é útil como remédio para os desviar disso? E nessas
histórias de que falávamos há pouco, quando, não sabendo a verdade
sobre os acontecimentos do passado, damos a maior verossmli]
hança possível à mentira, não a tornamos útil?
Adimanto Com certeza.
sócrates Mas por qual destas razões a mentira seria útil
a Deus? Será a ignorância dos acontecimentos do passado que
coxnpele a Deus dar verossimilhança à mentira?
Adimanto Seria ridículo crer nisso.
Sócrates Não é, então, Deus um poeta mentiroso?
Adimanto Também não creio nisso.
Sócrates Será então o temor dos seus inimigos que o
obriga a mentir?
Adimanto Longe disso.
Sócrates Ou Ele mentiria para aplacar o ódio ou o desatino
dos seus amigos?
Adimanto Mas Deus não conta com amigos entre os
odientos e os insensatos.
sócrates Logo, não há razão para que Deus minta?
Adimanto Não há, absolutamente.
Sócrates Assim, pois, a natureza demoníaca e divina é
completamente estranha à mentira.
Adimanto Completamente.
Sócrates E Deus é essenciahnente simples É verdadeiro,
em atos e palavras. Deus não muda de forma e não engana os
outros, nem por simulacros nem por discursos nem pelo envio
de sinais, no estado de vigília ou nos sonhos.
Adimanto Convenci-me disso depois de ouvir o que
disseste.
Sócrates Aceitas, então, que é esta a segunda regra que
se deve seguir nos discursos e nas composições poéticas a respeito
dos deuses: não são mágicos que mudam de forma e não
no~ confundem com mentiras, palavras ou atos.
Adimanto Aceito.
Sócrates Assim, pois, embora louvando muitas coisas
eni Homero, não louvaremos a passagem em que diz que Zeus
enviou um sonho a Agamenon, nem a passagem de Esquilo
em que Tétis relata que Apoio, que cantava nas suas núpcias,
insistiu na sua felicidade de mãe cujos filhos seriam
isentos de doença e favorecidos por longa existência.
Ele disse tudo isso e anunciou-me divinos encontro
em seu canto, enchendo o meu coração de alegria.
E eu esperava que não fosse mentirosa
a boca sarada de Febo, de onde brotavam
mas ele, o cantor, o conviva deste festim
e o autor destes louvores, ele é o assassino
do meu filho...
Quando um poeta falar assim dos deuses, ficaremos irritados,
não faremos coro tom ele e não permitiremos que os
mestres se sirvam das suas fábulas para a educação da juventude,
se quisermos que os nossos guardiães sejam piedosos e
semelhantes aos deuses, no maior grau em que os homens o
possam ser.
Adimanto São muito sábias essas regras e eu estou de
acordo contigo. E de meu parecer que, a partir delas, se devem
extrair outras tantas leis.
LIVRO III
SÓCRATES A propósito dos deuses, temos aqui aquilo
que, em minha opinião, devem ouvir desde crianças, e aquilo
que não devem, aqueles que haverão de honrar as divindades
e os pais, e que haverão de ter em grande conta a amizade
entre as pessoas.
Adimanto E eu julgo correta a nossa opiniao.
Sócrates E para que eles sejam corajosos, por acaso não
lhes devemos dizer palavras que façam com que receiem o menos
possível a morte? Ou crês que nunca será corajoso alguém
que abrigue esse medo dentro de si?
Adimanto Não, por Zeus!
Sócrates Crés, então, que aquele que acredita no Hades
e em seus horrores não receia a morte e que, em combate, prefere
ser derrotado a se tomar escravo?
Adimanto De forma alguma.
Sócrates Conseqüentemente, precisamos ser vigilantes
também a respeito daqueles que contam essas histórias e pedir-
lhes que não lancem calúnias contra o Hades, mas sim que
o elogiem, pois suas histórias não são verdadeiras nem úteis
àqueles que irão combater.
Adimanto E o que devemos fazer.
Sócrates Portanto, devemos expurgar, iniciando com
estes versos, todas as asserções deste tipo:
Antes queria ser servo da gleba, em casa
de um homem pobre, que ndo tivesse recursos,
do que ser agora rei de quantos mortos pereceram...
E deste:
que aparecesse ante mortais e imortais
a pavorosa manado bolorenta que os deuses abominam.
E mais:
Ah! É então verdade que existe na mansão do Hades
uma alma e uma imagem, que não tem contudo espírito algum?
Palavras iguais a estas e outras do mesmo tipo, pediremos
licença a Homero e aos demais poetas para que não se ofendam
se as eliminarmos. Não que a maioria não as considere poéticas
e suaves, porém, quanto mais poéticas, menos devem chegar
aos ouvidos de crianças e de homens que devem ser livres e
recear a escravidão bem mais que a morte.
Adimanto Estás com razao.
Sócrates Devemos também rejeitar todos os nomes odiosos
e medonhos a respeito destes lugares: Cocito3, Estígio4,
habitantes do inferno, espectros e outros da mesma espécie
que causam arrepios a quem os ouve. Talvez sejam úteis para
outras finalidades, mas nós tememos que os nossos guardiões,
por causa de tais arrepios, fiquem com febre e enfraquecidos
além da conta.
Adimanto E esse temor é legítimo.
Sócrates Em conseqüência, os nomes devem ser dos?
Adimanto Certamente que sim.
Sócrates E teremos um modelo contrário a este, nas
conversações ou nas poesias?
Adimanto Com certeza.
Sócrates Portanto, eliminaremos também lamentações
e lástimas de homens famosos?
Adimanto Evidentemente que sim, como no caso
anterior.
Sócrates Analisa se agiremos com acerto em eliminá-las
[3 Um dos rios do Hades ]
[4 Outro rio do Hades. ]
ou não. Nós declaramos que um homem probo não julga terrível
o falecimento de outro homem probo de quem é amigo.
Adimanto De fato, declaramos.
Sócrates Portanto, não lamentaria como se Lhe houvesse
acontecido uma desgraça?
Adimanto Certamente que não.
Sócrates Mas afirmaremos também que um homem assim
se basta a si mesmo para ser feliz e que, ao contrário dos
outros, necessita bem pouco de outras pessoas.
Adimanto É verdade.
Sócrates Então, é para ele menos terrível perder um
filho, ou um irmão, ou dinheiro, ou quaisquer outros bens desta
espécie.
Adimanto Sim, menos que qualquer outro.
Sócrates Portanto, irá lamentar-se menos, e suportará
com mais serenidade uma dessas desventuras, ao ser por ela
atingido.
Adimanto Com muito mais, de fato.
Sócrates Logo, teremos razão em arrancar as lamentações
aos homens famosos, deixá-las às mulheres, e mesmo assim
apenas àquelas que forem desprovidas de mérito, e aos homens
covardes, para que não suportem um procedimento semelhante
aqueles que estão destinados à defesa do país.
Adimanto Sim, teremos razão.
Sócrates Então, de novo pediremos a Homero e aos
outros poetas que não apresentem Aquiles, que era filho de
uma deusa,
ora deitado de lado, ora de costas,
ora de cabeça para baixo...
ou então a levantar-se, agitado, para vaguear ao Longo da
praia do pélago estéril, tampouco a erguer com ambas as
mãos o pó calcinado e a espalhá-lo pela cabeça, nem a verter
lágrimas e a lamentar-se tantas vezes e em tais termos, como
ele o imaginou; nem Príamo, próximo dos deuses por nascimento,
a suplicar e
a rolar-se na imundície,
e a chamar cada um dos guerreiros pelo seu nome.
E, muito mais ainda, pediremos a Homero que nao represente
os deuses lamentando-se e dizendo:
Ai de mim! Desgraçada! Ai! Mãe infeliz do mais
valente dos homens!
E, se é desta maneira que falam dos deuses, que ao menos
não ousem desfigurar o maior de todos, fazendo-o dizer:
Ah! É um guerreiro que eu estimo, que vejo com meus olhos
ser perseguido à volta da cidade, e o meu coração geme.2
E:
Ai de mim! Que é destino de Sarpédon, o mais caro
dos homens, ser derrubado por Pdtroclo, o filho de Menécio!
Sucede, meu caro Adimanto, que se os nossos jovens tomassem
a sério tais palavras, e não rissem delas, como indignas
dos seres a quem dizem respeito, dificilmente alguns deles, sendo
simpLes homens, se julgariam indignos de assim proceder
e censurariam a si próprios se lhes acontecesse também dizer
ou fazer algo semelhante; mas, ao menor infortúnio, se abandonariam,
sem a mínima vergonha, a queixas e lamentações.
Adimanto O que dizes é a pura verdade.
Sócrates Mas isso não deve ser assim, como nos prova
a argumentação. E precisamos acreditar nela, até que nos persuadam
da existência de outra melhor.
Adimanto De fato, não deve ser.
Sócrates Em verdade, porém, também não devem ser
muito propensos ao riso. Pois, na maioria das vezes em que
alguém se entrega a um riso excessivo, este lhe provoca uma
transformação da mesma forma excessiva.
Adimanto Parece-me que é assim.
Sócrates Em conseqüência, é inadmissível que se representem
homens dignos de estima sob o domínio do riso, e, pior
ainda, se se tratar de deuses.
Adimanto Muito pior.
[ 1 Ilíada Tétis lamenta a morte próxima de Aquiles. seu filho.
2 Ilíada Zeus vê Heitor ser perseguido por Aquiles ao redor das muralhas de Trúia.
3 Ilíada Zeus lamenta para Hera o destino de seu filho Sarpédon. ]
Sócrates Portanto, não poderemos admitir as palavras
de Homem a respeito dos deuses:
Um riso inextinguível se ergueu entre os deuses
bem-aventurados,
ao verem Hefesto afadigar-se pelo prado afora.
Não podemos aprovar esta passagem, de acordo com o
teu raciocinio.
Adimanto Concordo que seja reprovada.
Sócrates Mas, realmente, também devemos ter a verdade
em grande consideração. Se há pouco dissemos acertadamente
que a mentira é inútil aos deuses, porém útil aos homens sob
a forma de remédio, é evidente que seu emprego deve ser exclusivo
dos médicos e de mais ninguém.
Adimanto Evidentemente.
Sócrates Por conseguinte, se compete a alguém mentir,
é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade, em virtude
dos inimigos ou dos cidadãos; a todas as demais pessoas
não é lícito este recurso. Contudo, se um cidadão mentir a seus
chefes, afirmaremos que ele comete um erro da mesma natureza,
porém maior ainda do que se um doente não contasse a verdade
ao médico, ou se um aluno ocultasse ao professor de ginástica
seus sofrimentos físicos, ou se um marinheiro não revelasse
ao piloto a verdade sobre o estado do navio e da tripulação,
omitindo-lhe informações quanto à sua situação e à de seus
companheiros.
Adimanto Concordo plenamente.
Sócrates Por conseguinte, se o chefe surpreender alguém
mentindo na cidade, da classe dos artesãos, ou adivinho, ou médico que
cura os males, ou fabricante de lanças, irá castigá-lo, por esse alguém estar
introduzindo hábitos capazes de derrubar e arruinar uma cidade, como se s
tratasse de um navio.
Adimanto Isso, se suas palavras forem seguidas de ações.
Sócrates Como assim? Queres dizer que aos nossos jovens
não será necessária a temperança?
Adimanto Claro que será.
Sócrates Para a maioria das pessoas, os pontos básicos
da temperança não são obedecer aos chefes e manter o domínio
quanto aos prazeres da bebida, do amor e da mesa?
Adimanto Julgo que sim.
Sócrates Então, aprovaremos as palavras que Homero
faz Diomedes proferir:
Amigo, cala-te, senta-te, e obedece às minhas ordens,1
e em outra passagem:
Os Aqueus avançavam respirando força,
mostrando no silêncio o temor pelos chefes,
e todas as passagens semelhantes.
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates E agora este verso:
o vinho te pesa, tens olhos de cão, coração de cervo...
e os que vêm em seguida? Por acaso são belas as impertinências
que os escritores, em prosa ou em versos, disseram aos seus
chefes?
Adimanto Não possuem nada de belo.
Sócrates Em minha opinião, não são coisas apropriadas
para estimular os jovens à temperança. Mas não me admiro
que lhes proporcionem outro tipo de prazer. Que achas?
Adimanto Penso que sim.
Sócrates Muito bem! Fazer o mais sensato dos homens
dizer que a coisa mais bela do mundo é
...estar junto de mesas repletas
de pão e carnes, e o escansão haurir o vinho
das crateras, para o vir deitar nas taças.2
[1 Ilíada, IV (fala de Diomedes a Estenelo).]
[2 Homero Odisséia, IX (fala de Ulisses ao rei dos feaces). ]
Parece-te isto adequado para estimular um jovem ao domínio
de si mesmo? Ou ainda ouvir
que o mais cruel é morrer de fome, cumprindo
assim o seu destino
ou que Zeus, estando acordado, enquanto os outros deuses e
homens dormiam, esqueceu-se dos seus desígnios, em virtude
do desejo amoroso, ficou tão atordoado à vista de Hera que
não quis entrar em seu palácio, mas decidiu unir-se a ela ali
mesmo, no chão, afirmando que jamais sentira tamanho desejo,
nem mesmo na ocasião em que haviam se encontrado pela primeira
vez, às escondidas de seus pais? Ou que Ares e Afrodite,
por semelhante motivo, foiam acorrentados por Hefasto?
Adimanto Por Zeus, claro que não me parece adequado.
Sócrates Porém, se se trata de exemplos de firmeza dados
por homens ilustres diante de perigos, devem então ser
ouvidos, como quando
batendo no peito, censurou seu coração:
resiste, meu coração, que já sofreste bem pior!
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates Também não se deve consentir que os guerreiros
recebam presentes, tampouco tenham ambição.
Adimanto De forma alguma.
Sócrates Nem convém que se cante na presença deles que
os presentes persuadem os deuses, os presentes persuadem
os venerdveis reis,
nem se deve louvar Fênix, pedagogo de Aquiles, como se ele
estivesse dando sábio conselho dizendo-lhe que, caso recebesse
presentes dos aqueus, deveria defendê-los, mas, se não recebesse,
não deveria renunciar à sua cólera; e nem aceitaremos
que Aquiles seja tão ambicioso a ponto de aceitar presentes de
Agamenon, e que devolva um cadáver somente após receber o
resgate.
Adimanto Não é correto, de fato, louvar tais atitudes.
[1 Homero Odisseia, XII.]
[2 Homero Ilíada, XIV.]
Sócrates Hesito, em consideração a Homero, em afirmar
que é impiedoso atribuir a Aquiles tais sentimentos e
dar crédito àqueles que os declaram; especialmente quando
se dirige a Apoio:
Prejudicaste-me, deus que acertas ao longe,
o mais funesto de todos!
Bem me vingava eu de ti, se tal poder me fosse dado!
E que desobedecesse ao rio, que era um deus, e estivesse
propenso a lutar contra ele; e depois, que quisesse oferecer seu
cabelo consagrado a outro rio, o Esperqueio, ao herói Pátroclo,
que morrera, e a maneira como o fez, são todas atitudes inacreditáveis.
E quanto a arrastar Heitor ao redor do túmulo de
Pátroclo e a imolar os prisioneiros da sua pira, sustentaremos
que todas estas histórias são falsas e não permitiremos que os
nossos homens acreditem que Aquiles, sendo filho de uma deu-
! sa, e de Peieu, que era tão judicioso, e tendo sido educado pelo
sapientíssimo Quiron, possuísse um espírito de tal forma desvagado,
que abrigasse em seu íntimo dois defeitos contrários
um ao outro: uma desmedida ambição e um arrogante desprezo
pelos deuses e pelos homens.
Adimanto Estás com razão.
Sócrates Por conseguinte, não devemos acreditar nem
permitir que se diga que Teseu, filho de Poseidon, e Pinto, filho
de Zeus, praticaram tão hediondos raptos, nem que outro qualquer
filho de deus e herói tenha cometido os atos horríveis e
ímpios de que são acusados. Ao contrário, obriguemos os poetas
a dizer que não tiveram tais atitudes ou que não foram os filhos
dos deuses, mas que não afirmem ambas as coisas ao mesmo
tempo, tampouco que procurem convencer os nossos jovens de
que os deuses realizam coisas más, e de que os heróis não são
em nada melhores do que os homens. Conforme já dissemos,
estas não passam de idéias ímpias e falsas, pois demonstramos
que o mal não pode ser oriundo dos deuses.
Adimanto E evidente que nao.
Sócrates Ademais, tais idéias prejudicam aqueles que
as ouvem. Pois que homem não perdoará sua própria iniqüidade
se estiver convencido de que faz apenas o que praticam
e praticaram
os descendentes dos deuses,
parentes de Zeus, a quem pertence o altar
de Zeus ancestral no monte Ida, nas alturas
e que
conservam ainda nas veias um sangue divino.1
Motivos estes que nos induzem a rejeitar semelhantes
histórias, por receio de que instiguem nossos jovens a praticar
com leviandade as piores ações.
Adimanto Com toda a certeza.
Sócrates Que outro tipo de idéias devemos examinar,
entre as que podemos ou não divulgar? Já analisamos como se
deve falar a respeito dos deuses, dos demônios, dos heróis e
dos habitantes do Hades.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Logo, estaria faltando o que se refere aos
homens?
Adimanto Precisamente.
Sócrates Mas, meu amigo, é impossível abordarmos esse
assunto nas atuais circunstâncias.
Adimanto Por quê?
Sócrates Porque seríamos obrigados a dizer que os poetas
e os prosadores proferem os maiores disparates acerca dos
homens, quando afirmam que, em sua maioria, as pessoas más
sao felizes e as boas, mal-aventuradas; que a injustiça, quando
praticada às escondidas, é útil; que a justiça é um bem para os
outros, porém nociva para quem a pratica. Pediríamos que se
abstivessem de tais opiniões, e exigiríamos que cantassem em
versos e narrassem em prosa exatamente o contrário. Pensas
também assim?
Adimanto Certamente.
Sócrates Então, se reconheces que tenho razão, posso
concluir que concordas também a respeito daquilo que há muito
procuramos?
Adimanto Tua conclusão é perfeita.
Sócrates Adiemos, então, a discussão a respeito do que
[1 Ambos são acertos da Níobe, de Ésquilo.]
é lícito dizer sobre os homens, até que tenhamos concluído o
que é a justiça, se é útil a quem a pratica, quer este pareça
justo, quer não.
Adimanto Concordo plenamente.
Sócrates Já falamos muito a respeito dos discursos. Falemos
agora do estilo, e então teremos analisado completamente
tanto os temas quanto as formas.
Adimanto Não entendo o que queres dizer.
Sócrates Contudo, é necessário que entendas. Explicarei
de forma diferente. Tudo o que dizem os poetas e prosadores
não se refere a acontecimentos passados, presentes ou futuros?
Adimanto Não poderia ser diferente.
Sócrates E para isso não se servem de simples narrativa,
por intermédio da imitação, ou por meio de ambas?
Adimanto Ainda preciso entender com maior clareza.
Sócrates Parece que sou um mestre confuso e obscuro.
Sendo assim, tal qual aqueles que são incapazes de se explicar
claramente, tentarei demonstrar o que quero dizer não em seu
conjunto, mas por partes. Sabes o começo da fItada, quando o
poeta relata que Crises pediu a Agamenon que lhe devolvesse
a filha, mas este lhe foi hostil, e aquele, não tendo conseguido
seu objetivo, invocou a divindade contra os aqueus?
Adimanto Sei.
Sócrates Então, sabes que até este ponto da epopéia:
Ele dirigiu súplicas a todos os aqueus,
especialmente aos dois atridas, comandantes dos povos,
é o próprio poeta que fala, e ele não tenta fazer-nos crer que
aquelas palavras fossem ditas por outra pessoa. Porém, em seguida,
fala como se Crises fosse ele mesmo e tenta fazer com
que suponhamos que não é Homero que fala, mas o sacerdote,
que é um ancião, sacerdote de Apoio. E quase todo o restante
da narrativa foi feita do mesmo modo, a respeito dos acontecimentos
em Tróia, em Itaca e os sofrimentos em toda a OdissJia.
Adimanto Com certeza.
Sócrates Existe, então, narrativa, seja quando se refere
aos discursos de ambas as partes, seja quando se trata do intervalo
entre eles?
Adimanto E como poderia ser diferente?
Sócrates Mas, quando ele faz um discurso como se se
tratasse de outra pessoa, não dizemos que aproxima o máximo
possível seu estilo àquele da pessoa que fala?
Adimanto Sim, dizemos.
Sócrates Aproximar-se de alguém na voz e na aparência
não significa imitar aquela pessoa com quem queremos
nos assemelhar?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Portanto, tenho a impressão de que tanto este
quanto os outros poetas realizam sua narrativa por intermédio
da imitação.
Adimanto Exatamente.
Sócrates Contudo; se o poeta jamais se ocultasse, seus
versos e suas narrativas seriam criados sem imitações. Não me
digas de novo que não entendes; explico-te como isso poderia
acontecer. Se Homero, após ter dito que Crises trouxe o resgate
da filha, como suplicante dos aqueus, principalmente dos reis,
em seguida falasse, não como se fosse o próprio Crises, mas
ainda como Homero, não se trataria de imitação, porém de mera
narrativa. Seria aproximadamente desta maneira (exprimo-me
sem metro porque não sou poeta): O sacerdote chegou e pediu
aos deuses que permitissem aos gregos conquistar Tróia e regressar
sãos e salvos, mas que libertassem sua filha mediante
resgate, por temor aos deuses. Ouvindo estas palavras, os outros
concordaram. Contudo, Agamenon, irado, ordenou-lhe que se
retirasse e não voltasse, sob pena de nada lhe valer sua condição
de sacerdote. Antes que sua fflha lhe fosse devolvida, ela haveria
de envelhecer em Argos, junto com ele. E mandou que se retirasse
e não o irritasse mais, se quisesse voltar para casa a
salvo. Ao ouvir estas palavras, o ancião teve medo e se retirou
do acampamento; em seguida dirigiu numerosas preces a Apoio,
invocando os atributos do deus, conjurando-o a recordar-se e
a recompensar o seu sacerdote, que sempre, quer construindo
templos, quer sacrificando vítimas, o honrara com presentes
agradáveis; como retribuição, pediu-lhe ardentemente que fizesse
pagar os aqueus, com suas flechas divinas, as lágrimas
que agora ele vertia. E desta maneira, amigo, que se faz uma
narrativa simples, sem imitação.
Adimanto Compreendo.
Sócrates Compreende, então, que existe também uma
espécie de narrativa oposta a esta, quando se retiram as palavras
do poeta no meio das falas, e permanece apenas o diálogo.
Adimanto Também compreendo que se trata da forma
própria da tragédia.
Sócrates A tua observação é corretíssima, e creio que
agora vês com clareza aquilo que não pude demonstrar-te
antes: que na poesia e na prosa existem três gêneros de narrativas.
Uma, inteiramente imitativa, que, como tu dizes, é
adequada à tragédia e à comédia; outra, de narração pelo
próprio poeta, encontrada principalmente nos ditirambos; e,
finalmente, uma terceira, formada da combinação das duas
precedentes, utilizada na epopéia e em muitos outros gêneros.
Estás me compreendendo?
Adimanto Sim, agora compreendo o que querias dizerme
há pouco.
Sócrates Lembra-te também de que dissemos antes disso,
quando afirmamos que já havíamos abordado o tema, que
tínhamos tratado do fundo do discurso, mas ainda nos faltava
examinar a forma.
Adimanto Sim, lembro-me.
Sócrates Eu te dizia que devíamos decidir se iríamos
permitir que os poetas compusessem narrativas puramente imitativas
ou se apenas imitariam uma coisa, e não outra, ou se,
simplesmente, lhes proibiríamos a imitação.
Adimanto Percebo que tu irás examinar se convém ou
não que admitamos a tragédia e a comédia em nossa cidade.
Sócrates Talvez mais do que isso, pois eu ainda não sei
ao certo. Contudo, para onde a razão, como uma brisa, nos
levar, para lá devemos seguir.
Adimanto Dizes bem.
Sócrates Agora, Adimanto, analise se os nossos guardiões
devem ser imitadores ou não. Do que dissemos anteriormente,
não resulta que cada um só pode exibir talento em uma
profissão, não em várias, e que quem tentasse exercer muitas
falharia em todas, a ponto de não se tomar famoso em nenhuma?
Adimanto Não poderia ser diferente.
Sócrates Então, este raciocínio não é válido também a
respeito da imitação? É possível que um mesmo homem possa
imitar várias coisas com perfeição?
Adimanto Evidente que não.
Sócrates Portanto, difidilmente exercerá ao mesmo tempo
uma profissão importante e imitará muitas coisas e será imitador,
uma vez que as mesmas pessoas não podem executar
bem dois tipos de imitação que parecem próximos um do outro,
como a tragédia e a comédia. Tu não dizias que eram ambas
imitações?
Adimanto Sim, e dizes a verdade: as mesmas pessoas
não podem triunfar nos dois gêneros.
Sócrates Nem é possível ser, simultaneamente, rapsodo
e ator.
Adimanto Estou de acordo.
Sócrates E os atores não são os mesmos nas comédias
e nas tragédias; mas ambas são imitações, ou não?
Adimanto Claro que são.
Sócrates No meu entender, Adimanto, a natureza humana
divide-se em partes ainda menores, de forma que o homem
não consegue imitar bem muitas coisas ou executar bem
as coisas de que as imitações são cópia.
Adimanto E a pura verdade.
Sócrates Conseqüentemente, se nos ativermos ao nosso
primeiro princípio, de que os nossos guardiões, eximidos de
quaisquer outros ofícios, devem se dedicar a defender a independência
da cidade e desprezar o que estiver fora disso, é
necessário que não façam nem imitem outras coisas. Se imitarem,
que imitem as virtudes que lhes convém adquirir desde
a infância: a coragem, a sensatez, a pureza, a liberalidade e as
outras virtudes da mesma espécie. Porém, não devem imitar a
baixeza nem ser capazes de imitá-la, igualmente a nenhum dos
outros vícios, pelo perigo de que, a partir da imitação, usufruam
o prazer da realidade. Tu não percebeste que quando se cultiva
a imitação desde a infância, ela se transforma em hábito e natureza
para o corpo, a voz e a mente?
Adimanto Com toda a certeza.
Sócrates Sendo assim, não permitiremos que aqueles
de quem pretendemos ocupar-nos e que necessitam tomar-se
homens superiores, imitem, eles que são homens, uma mulher,
jovem ou velha, ou injuriando o marido, ou rivalizando com
os deuses, ou se vangloriando da felicidade, ou deixando-se
dominar pela desgraça, pelo desgosto e pelas lamentações; com
mais razão ainda, não podemos admitir que a imitem se está
doente, apaixonada ou sofrendo as dores do parto.
Adimanto De forma alguma.
Sócrates Tampouco que imitem escravos ou escravas,
agindo como estes.
Adimanto Isso também não.
Sócrates E nem homens perversos e covardes, que agem
contrariamente ao que dizíamos agora há pouco, que falam mal,
zombam uns dos outros e dizem coisas indecentes, quer na
embriaguez, quer estando sóbrios, e toda espécie de erros de
que se tornam culpadas tais pessoas, em ações e palavras, contra
si mesmas e contra os outros. Creio também que não devem
imitar a linguagem e o comportamento dos dementes, pois é
mister conhecer os dementes e os perversos, tanto homens como
mulheres, mas não fazer nem imitar nada que seja próprio deles.
Adimanto Claro que não.
Sócrates Mas, por acaso, poderão eles imitar os ferreiros
ou quaisquer outros artesãos, os remadores das trirremes, os
capitães de navios e tudo o que se refere a estas profissões?
Adimanto E como poderia ser, se não terão o direito
de exercer qualquer uma dessas profissões?
Sócrates E o relinchar dos cavalos, o mugir dos touros,
o murmurar dos rios, o bramir do mar, o trovão e todos os
ruídos da mesma espécie, poderão eles imitá-los?
Adimanto Não, pois lhes foi proibido serem loucos e
imitar os loucos.
Sócrates Logo, se estou te entendendo, há uma maneira
de falar e narrar própria do verdadeiro homem de bem, quando
ele tem algo a dizer; e há uma outra, distinta desta, à qual estão
ligados os homens malnascidos e mal-ensinados.
Adimanto Quais são essas maneiras?
Sócrates O homem moderado, ao que me parece, quando
tiver de relatar, em uma narrativa, uma frase ou um ato de
uma pessoa de bem, tentará expressar-se como se fosse essa
pessoa e não se envergonhará de imitá-la, principalmente se
tiver de reproduzir atos de firmeza e de sabedoria. Contudo,
irá imitar menos vezes e com menor talento, quando essa pessoa
tiver falhado, por causa de doença, de paixão, de embriaguez
ou de qualquer outra situação deprimente. Porém, se tiver de
se referir a um homem indigno dele, não irá querer imitá-lo
seriamente, a não ser de leve, quando esse homem tiver realizado
algo digno; e, ainda assim, sentirá vergonha, ao mesmo
tempo porque não possui prática de imitar homens dessa espécie
e porque lhe repugna modelar-se pelo tipo de pessoas que lhe
são inferiores, desprezando-as em seu íntimo e considerando a
imitação um mero entretenimento.
Adimanto E natural.
Sócrates Por conseguinte, utilizará uma modalidade de
narrativa semelhante àquela de que falávamos há pouco, a respeito
dos versos de Homero, e o seu estilo participará de ambos
os processos, a imitação e a narração simples; porém, num discurso
extenso, só haverá uma pequena parte de imitação. Não
achas que tenho razão?
Adimanto Tens. É assim que deve ser essa espécie de
orador.
Sócrates Portanto, o orador que não for dessa espécie,
quanto maior for sua mediocridade, imitará tudo e não considerará
nada indiguo dele, de modo que tentará imitar seriamente,
diante de grandes auditórios, aquilo que dizíamos há
instantes: os trovões, o barulho do vento e do granizo, dos eixos
de carros, das roldanas; os sons da trombeta, da flauta, de todos
os instrumentos e também dos cães, dos carneiros e dos pássaros;
todo o seu discurso será de imitação, com vozes e gestos,
e terá pouca narrativa.
Adimanto É forçoso que seja assim.
Sócrates São estas as duas espécies de narração a que
eu me referia.
Adimanto De fato, elas existem.
Sócrates Portanto, a primeira experimenta pequenas variações
e, quando se tiver dado à narrativa a harmonia e o ritmo
convenientes, será fácil para o orador conservar essa mesma e
única harmonia pois são poucas as mudanças e um ritmo
que, da mesma forma, não se modifica.
Adimanto E assim mesmo como dizes.
Sócrates E a respeito da outra espécie? Ela não necessita
do contrário, isto é, de todas as harmonias, de todos os ritmos,
para se exprimir de maneira apropriada, pelo fato de comportar
todas as formas de variações?
Adimanto Certamente que sim.
Sócrates Mas todos os poetas, e em geral os que narram,
não utilizam uma ou outra destas formas de dicção ou uma
mistura de ambas?
Adimanto Necessariamente.
Sócrates Então, que faremos? Vamos admitir na nossa
cidade todas essas formas, uma ou outra das formas puras ou
a sua mistura?
Adimanto Em minha opinião, devemos permitir apenas
a forma pura que imita o homem de bem.
Sócrates Mas a forma mista é muito bem aceita; e a
forma mais agradável às crianças, aos seus preceptores e à multidão
é a contrária da que tu preferes.
Adimanto Realmente, é a mais agradável.
Sócrates Porém, talvez me digas que não convém ao
nosso governo, porque não há entre nós homem duplo nem
múltiplo e cada um só faz uma única coisa.
Adimanto De fato, não convém.
Sócrates Não é, então, por causa disso que na nossa
cidade se encontrará apenas o sapateiro sapateiro, e não o piloto
e sapateiro ao mesmo tempo, o lavrador lavrador, e não o juiz
e ao mesmo tempo lavrador, o guerreiro guerreiro, e não o
comerciante e ao mesmo tempo guerreiro, e assim por diante?
Adimanto É verdade.
Sócrates Assim, pois, se um homem perito na arte de
tudo imitar viesse à nossa cidade para exibir-se com os seus
poemas, nós o saudaríamos como a um ser sagrado, extraordinário,
agradável; porém, lhe diríamos que não existe homem
como ele na nossa cidade e que não pode existir; em seguida
manda-lo-íamos para outra cidade, depois de lhe termos derramado
mirra na cabeça e o termos coroado com fitas. Por nossa
conta, visando à utilidade, recorreremos ao poeta e ao narrador
mais austero e menos agradável, que imitará para nós o tom
do homem honrado e obedecerá, na sua linguagem, às regras
que estabelecemos logo de início, quando empreendíamos a
educação dos nossos guerreiros.
Adimanto Sim, agiremos desse modo, se isso depender
de nós.
Sócrates Agora, meu amigo, parece-me que acabamos
com esta parte da música que se refere aos discursos e às fábulas,
porque tratamos tanto do conteúdo quanto da forma.
Adimanto Também me parece.
Sócrates Resta-nos tratar do caráter do canto e da melodia,
concordas?
Adimanto Sim, evidentemente.
Sócrates Haveria alguém que não dissesse, de pronto,
o que devemos dizer acerca deles e o que devem ser, se nos
quisermos manter de acordo com as idéias precedentes?
Então, Glauco, sorrindo, disse:
Por mim, Sócrates, corro o risco de ser a exceção, porque
não estou muito em condições de inferir, neste momento, o que
devem ser essas coisas; no entanto, suspeito-o.
Sócrates Estás ao menos em condições de fazer esta
primeira observação, que a melodia se compõe de três elementos:
as palavras, a harmonia e o ritmo.
Glauco Quanto a isso, sim.
Sócrates Quanto às palavras, diferem das que não são
cantadas? Não devem ser compostas segundo as regras que
enunciamos há pouco e de forma semelhante?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E a harmonia e o ritmo devem corresponder
às palavras?
Glauco Sim.
Sócrates Já dissemos que não deveriam existir queixas
e lamentações nos nossos discursos.
Glauco Com efeito, por serem desnecessárias.
Sócrates Quais são as harmonias plangentes? Diz-nos,
visto que és músico.
Glauco São a lídia mista, a aguda e outras semelhantes.
Sócrates Convém, pois, suprimi-las, não é verdade? Porque
são inúteis para as mulheres honradas e, com maior razão,
para os homens.
Glauco Certamente.
Sócrates Nada há mais inconveniente para os guardiães
do que a embriaguez, a moleza e a indolência.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Quais são harmonias efeminadas usadas nos
banquetes?
Glauco A jânica e a lídia que se denominam harmonias
lassas.
Sócrates De tais harmonias, meu amigo, tu te servirás
para formar guerreiros?
Glauco De maneira nenhuma. Receio que não te restem
senão a dórica e a frígia.
Sócrates Não conheço todas as harmonias, mas deixanos
aquela que imita os tons e as entonações de um valente
empenhado em batalha ou em qualquer outra ação violenta,
quando, por infortúnio, corre ao encontro dos ferimentos, da
morte ou é atingido por outra infelicidade, e, em todas essas
circunstâncias, firme no seu posto e resoluto, repele os ataques
do destino. Deixa-nos outra harmonia para imitar o homem
empenhado numa ação pacffica, não violenta mas voluntária,
que procura persuadir, para obter o que pede, quer um deus
por intermédio de suas preces, quer um homem por intermédio
das suas lições e conselhos, ou, ao contrário, solicitado, ensinado,
convencido, se submete a outro e, tendo por estes meios sido
bem-sucedido, não se enche de orgulho, mas se comporta em
todas as circunstâncias com sabedoria e moderação, feliz com
o que lhe acontece. Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária,
que imitarão com mais beleza as entonações dos infelizes,
dos felizes, dos sábios e dos valentes, estas deixa-as ficar.
Glauco As harmonias que me pedes para deixar não
são senão aquelas que mencionei há pouco.
Sócrates Não precisaremos pois, para os nossos cantos
e as nossas melodias, de instrumentos com muitas cordas, que
reproduzem todas as harmonias.
Glauco Não, por certo.
Sócrates Nem tampouco precisaremos de fabricantes
de triângulos, pedis e outros instrumentos de muitas cordas e
harmonias.
Glauco Não, aparentemente.
Sócrates Admitirás em nossa cidade os fabricantes e os
tocadores de flauta? Não é este instrumento que pode emitir
mais sons, e os instrumentos que reproduzem todas as harmonias
não são imitações da flauta?
Glauco E evidente.
Sócrates Assim, restam a lira e a citara, úteis à cidade;
nos campos, os pastores terão o pífaro.
Glauco E o que se infere do nosso raciocínio.
Sócrates De resto, meu amigo, não inovamos ao preferirmos
Apolo e os instrumentos de Apoio a Mársias e seus
instrumentos.
Glauco Não, por Zeus! Não creio que estejamos inovando.
Sócrates Mas, pelo cão! Sem nos darmos conta disso,
purificamos a cidade que ainda há pouco dizíamos mergulhada
na languidez.
Glauco E o fizemos sabiamente.
Sócrates Vamos concluir nossa reforma. Depois das harmonias,
resta-nos examinar os ritmos; não devemos procurá-los
variados, nem formando cadências de toda a espécie, mas diferenciar
os que exprimem uma vida regulada e corajosa; quando
os tivermos diferenciado, obrigaremos a cadência e a melodia
a adequarem-se às palavras, e não as palavras à cadência e à
melodia. Que ritmos são esses, compete a ti indicá-los como
fizeste para as harmonias.
Glauco Em verdade, não posso satisfazer-te. Que existem
três espécies com as quais se entrelaçam todas as cadências,
como existem quatro espécies de tons de onde se tiram todas
as harmonias, posso afirmá-lo, visto que o estudei; mas quais
são aqueles que imitem tal gênero de vida eu não sei.
Sócrates Consultaremos depois Damoni e perguntarlhe-
emos quais são as cadências que convêm à baixeza, à insolência,
à loucura e aos outros vícios, e que ritmos se devem
deixar para os seus contrários. Creio tê-lo vagamente ouvido
pronunciar os nomes de enópiio composto, dáctilo, heróico, mas
não sei que arranjo dava a este último ritmo, em que igualava
os tempos fracos e os tempos fortes e que terminava com uma
breve ou uma longa. Também chamava, creio eu, a um pé
iambo, a outro troqueu e os marcava com longas e breves.
E, em alguns desses metros, censurava ou louvava, se bem me
lembro, o movimento da cadência, não menos que os próprios
ritmos ou algo que participava dos dois , porquanto não
o sei ao certo; mas, como dizia, coloquemos estas questões a
Damorr discuti-las exigiria muito tempo. Que dizes?
Glauco Penso do mesmo modo.
Sócrates Mas, ao menos, poderás convir em que a graça
e a falta de graça dependem da perfeição ou da imperfeição
do ritmo.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Mas o bom e o mau ritmo seguem e imitam,
um, o bom estilo, o outro, o mau, e o mesmo acontece com a
boa e má harmonia, quando o ritmo e a harmonia se harmonizam
com as palavras, como dizíamos há pouco, e não as palavras
com o ritmo e a harmonia.
Glauco É claro que ambos devem harmonizar-se com
as palavras.
Sócrates Mas a maneira de dizer e o próprio discurso
não dependem do caráter da alma?
Glauco Como não?
Sócrates E todo o resto não depende do discurso?
Glauco Depende.
Sócrates Assim, o bom discurso, a boa harmonia, a
graça e a euritmia dependem da simplicidade do caráter, não
dessa tolice a que denominamos amavelmente simplicidade,
mas da simplicidade autêntica de um espírito que alie a bondade
à beleza.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Não devem, pois, os nossos jovens procurar
em tudo essas qualidades, se quiserem realizar a tarefa que
lhes é própria?
Glauco Sim.
Sócrates Também a pintura está repleta dessas qualidades,
assim como todas as artes da mesma natureza. Está repleta
delas a arte do tecelão, do bordador, do arquiteto, do
fabricante dos outros objetos, e até a natureza dos corpos e das
plantas; em tudo isto, com efeito, há graça ou feiúra. E a feiúra,
a arritmia, a desarmonia são irmãs da má linguagem e do maucaráter,
ao passo que as qualidades opostas são irmãs e imitações
do caráter oposto, da sabedoria e da bondade da alma.
Glauco Certamente.
Sócrates Mas bastará velar sobre os poetas e obrigá-los
a não introduzirem nas suas criações senão a imagem do bom
caráter? Não devemos vigiar também os outros artesãos e impedi-
los de introduzirem o vício, a incontinência, a baixeza e a
feiúra na pintura dos seres vivos, na arquitetura ou em qualquer
outra arte? E, se não puderem conformar-se a esta regra, não
devemos proibi-los de trabalharem em nossa casa, com receio
de que os nossos guardiães, criados no meio das imagens do
vício como numa má pastagem, colham e pastem aí, um pouco
cada dia, muita erva daninha e desta maneira reúnam, sem se
darem conta, um grande mal na alma? Não devemos, ao contrário,
procurar artistas de mérito, capazes de seguirem a natureza
do belo e do gracioso, a fim de que os nossos jovens, a
semelhança dos habitantes de uma terra sadia, tirem proveito
de tudo que os rodela, de qualquer lado que chegue aos seus
olhos ou ouvidos uma emanação das obras belas, tal como uma
brisa transporta a saúde de regiões salubres, e predispondo-os
insensivelmente, desde a infância, a imitar e a amar o que é
reto e razoável?
Glauco Seria uma excelente educação.
Sócrates E, decerto, por esta razão, meu caro Glauco,
que a educação musical é a parte principal da educação, porque
o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma
e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a,
quando se foi bem-educado. E também porque o jovem a quem
é dada como convém sente muito vivamente a imperfeição e a
feiúra nas obras da arte ou da natureza e experimenta justamente
desagrado. Louva as coisas belas, recebe-as alegremente no espírito,
para fazer delas o seu alimento, e torna-se assim nobre
e bom; ao contrário, censura justamente as coisas feias, odeia-as
logo na infância, antes de estar de posse da razão, e, quando
adquire esta, acolhe-a com ternura e reconhece-a como um parente,
tanto melhor quanto mais tiver sido preparado para isso
pela educação.
Glauco Tais são as vantagens que se esperam da educação
pela música.
Sócrates Quando aprendíamos as letras, só considerávamos
que as conhecíamos suficientemente ao nos darmos conta
de que os seus elementos, em pequeno número, mas dispersos
em todas as palavras, já não nos escapavam e, nem numa palavra
curta nem numa comprida, não os desprezávamos, como inúteis
de serem notados; então, ao contrário, esforçávamo-nos por distingui-
los, convencidos de que não existia outra maneira de
aprender a ler.
Glauco É verdade.
Sócrates E também verdade que não reconheceremos
as imagens das letras, refletidas na água ou num espelho, antes
de conhecermos as próprias letras, porquanto tudo isto é objeto
da mesma arte e do mesmo estudo.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Assim também, pelos deuses, afirmo que não
seremos músicos, nós e os guardiães que pretendemos educar,
antes de sabennos reconhecer as formas da moderação, da coragem,
da generosidade, da grandeza de alma, das virtudes
suas irmãs e dos vícios contrários, onde quer que apareçam
dispersos; antes de descobrirmos a sua presença, onde quer que
se encontrem, elas ou as suas imagens, sem desprezarmos nenhuma,
nem nas pequenas coisas nem nas grandes, convencidos
de que elas são objeto da mesma arte e do mesmo estudo.
Glauco Não pode ser de outra forma.
Sócrates E, porventura, não seria o mais belo espetáculo,
para quem o pudesse contemplar, o homem que reúne ao mesmo
tempo boas disposições na sua alma e, no exterior, caracteres
que se assemelham e harmonizam com essas disposições, porque
participam do mesmo modelo?
Glauco Sim, o mais belo.
Sócrates O mais belo é também o mais digno de ser
amado?
Glauco Como não?
Sócrates Assim sendo, o músico amará esses homens
tanto quanto possível; mas não amará o homem desprovido de
harmonia.
Glauco Convenho em que isso aconteça, pelo menos se
for a alma a ter algum defeito; porém, se for o corpo, tomará
o seu partido e consentirá em amar.
Sócrates Sei que tens amado ou amas, e eu te aprovo.
Mas diz-me: o prazer excessivo harmoniza-se com a temperança?
Glauco Como poderia isso acontecer, visto que o excessivo
prazer não perturba a alma menos que a excessiva dor?
Sócrates E com as outras virtudes?
Glauco Tampouco.
Sócrates E com a insolência e a incontinência?
Glauco Muitíssimas vezes.
Sócrates Sabes de um prazer maior e mais vivo do que
o do amor sensual?
Glauco Não, não há nenhum mais violento.
Sócrates Por outro lado, o amor autêntico ama com
sabedoria e medida a ordem e a beleza?
Glauco Por certo.
Sócrates Logo, nada de violento nem de parecido com
a incontinência deve aproximar-se do amor autêntico.
Glauco Nada.
Sócrates Portanto, a volúpia não se deve aproximar dele;
não deve entrar no comércio do amante e da criança que se
amam com amor verdadeiro.
Glauco Não, por Zeus, Sócrates, não deve se aproximar!
Sócrates Por isso mesmo, tu decretarias como lei, na
cidade cujo plano estamos a traçar, que o amante possa adorar,
visitar, abraçar o jovem como se fora um filho, objetivando um
fim nobre, se conseguir convencê-lo; mas, quanto ao resto, deve
ter com o objeto dos seus cuidados relações tais que nunca seja
acusado de ir demasiadamente longe, se não quiser incorrer na
censura de homem sem educação nem sentimento do belo.
Glauco Sim.
Sócrates Parece-te agora, como a mim parece, que a nossa
discussão sobre a música chegou ao fim? Acabou onde devia acabar;
com efeito, a música deve culminar no amor ao belo.
Glauco Sou da mesma opinião.
Sócrates Depois da música, é pela ginástica que é preciso
educar os jovens.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E preciso que por ela se exercitem desde a
infância e ao longo da vida. Eis a minha idéia a este respeito:
analisa-a comigo. Para mim, não é o corpo, por muito bem constituído
que seja, que, por virtude própria, toma pura a alma
boa, mas, ao contrário, é a alma que, quando é boa, dá ao corpo,
pela sua própria virtude, toda a perfeição de que ele é capaz.
Que te parece?
Glauco O mesmo que te parece.
Sócrates Se, depois de termos dado à alma todo o cuidado
necessário, lhe confiássemos a tarefa de precisar o que se
refere ao corpo, limitando-nos a indicar os modelos gerais, a
fim de evitarmos longos discursos, não faríamos bem?
Glauco Certamente.
Sócrates Proibiremos a embriaguez aos nossos guerreiros,
porque a um defensor da cidade, mais do que a qualquer
outro, não é possível, estando embriagado, exercer seu mister.
Glauco Seria ridículo que um guerreiro tivesse necessidade
de ser defendido!
Sócrates E que diremos a respeito da alimentação? Os
nossos homens são os atletas da maior das disputas, não é assim?
Glauco Sim.
Sócrates É adequado para eles o regime dos atletas comuns?
Glauco Talvez.
Sócrates Mas é um regime que dá demasiada margem
ao sono e expõe a saúde a muitos perigos. Não vês que esses
atletas passam a vida a dormir e que, sempre que se afastam
um pouco do regime que lhes foi prescrito, contraem graves
doenças?
Glauco Sim.
Sócrates E necessário um regime mais apurado para os
nossos atletas guerreiros, para que se mantenham, como os cães,
sempre alerta, vejam e ouçam com a maior acuidade e, embora
mudando freqüentemente de bebida e comida, conservem uma
excelente saúde.
Glauco Sou da mesma opinião.
Sócrates Pois a melhor ginástica não é irmã da música
simples de que falávamos há pouco?
Glauco Que queres dizer?
Sócrates Que uma boa ginástica é simples, principalmente
quando se destina a guerreiros.
Glauco E em que consiste ela?
Sócrates Pode-se aprendê-lo em Homero. Sabes que,
quando faz os seus soldados comerem em campanha, não os
farta de peixes, apesar de estarem próximos do mar, junto ao
Helesponto, nem de carnes preparadas, mas apenas de carnes
assadas, de preparação muito simples para os seus soldados;
com efeito, é mais fácil assar diretamente no fogo do que levar
consigo utensílios de cozinha.
Glauco Sim, com certeza.
Sócrates Não parece também que Homero se refira a
temperos. Os outros atletas não sabem que para se manter em
boa forma devem evitar tudo isso?
Glauco Sabem e evitam.
Sócrates Se consideras os nossos preceitos acertados,
com certeza não aprovas a mesa siracusana e os variados pratos
da Sicflia.
Glauco Não.
Sócrates Também não aprovarás que homens que devem
manter-se em boa forma tenham por amante uma jovem de
Corinto?
Glauco Não, por certo.
Sócrates Nem que se entreguem às famosas delicias da
pastelaria ática?
Glauco Naturalmente.
Sócrates Se comparássemos uma tal alimentação e um
tal regime à melopéia e ao canto em que entram todos os tons
e todos os ritmos, julgo que faríamos uma comparação correta.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Aqui, a variedade gera a desordem e o desregramento;
ali, provoca a doença. Ao contrário, a simplicidade
na música torna a alma moderada e na ginástica, o corpo
saudável.
Glauco Nada de mais certo.
Sócrates Porém, se o desregramento e as doenças se
multiplicarem numa cidade, não se abrirão muitos tribunais e
clínicas? A justiça e a medicina serão apreciados quando os
homens livres a eles se entregarem em grande número e com
entusiasmo.
Glauco Não poderia ser de outro modo.
Sócrates E haverá para uma cidade maior prova do
vício e da baixeza da educação do que a necessidade de médicos
e juizes hábeis, não só para as pessoas rudes e os artesãos, mas
também para os que se vangloriam de ter recebido uma educação
liberal? Ou vês que não é uma vergonha e uma grande
prova de falta de educação ser forçado a recorrer a uma justiça
fictícia e tornar os outros senhores e juizes do seu próprio direito,
na falta de justiça pessoal?
Glauco Nada mais vergonhoso.
Sócrates E não te parece ainda mais vergonhoso quando,
não contentes com passarem a maior parte da vida nos tribunais
a defender ou a propor processos, as pessoas se vangloriam,
por vulgaridade, de ser hábeis em cometer a injustiça, em poder
usar todos os subterfúgios, escapar de todas as maneiras e dobrar-
se como o vime, para evitar o castigo? E isso por interesses
mesquinhos e desprezíveis, porque não sabem quanto é mais
belo e melhor ordenar a vida de modo a não ter necessidade
de um juiz?
Glauco Isso, isso é ainda mais vergonhoso.
Sócrates E acaso será menos vergonhoso recorrer à arte
do médico, não para feridas ou para alguma dessas doenças
próprias das estações, mas porque, devido à preguiça e ao regiine
que descrevemos, fica-se cheio de emanações e vapores
como um pântano, obrigando os discípulos de Esculápio a dar
a essas doenças os novos nomes de flatulênciasecatarros?
Glauco Esses são, de fato, nomes de doenças novas e
estranhas.
Sócrates E desconhecidas, ao que parece, no tempo de
Esculápio. O que me leva a supor que os seus fflhos, em Tróia,
não censuraram a mulher que, para curar os ferimentos de Eurípio,
obrigou-o a beber vinho pramniano misturado com farinha
de cevada e queijo ralado, o que parece inflamatório, assim
como não desaprovaram o remédio de Pátrodo.
Glauco Estranho, entretanto, que se desse uma beberagem
tão inusitada para um homem naquele estado.
Sócrates Não acharás estranho se refletires que a
medicina atual, que segue as enfermidades passo a passo,
não foi praticada pelos discípulos de Esculápio antes da
época de Heródico. Heródico era pedótrofo; tendo se tornado
valetudinário, criou uma mescla de ginástica com medicina,
que serviu primeiro para atormentá-lo e, depois
dele, a muitos outros.
Glauco Como assim?
Sócrates Procurando para si uma morte lenta. Porque,
como a sua moléstia era mortal, seguiu-a passo a passo, sem
conseguir, julgo eu, curá-la; renunciando a qualquer outra
ocupação, passou a vida a tratar-se, devorado de inquietação
sempre que se afastava um pouco do regime habitual; deste
modo, levando uma vida langorosa, chegou à velhice à força
de engenho.
Glauco Belo serviço prestou-lhe a sua arte!
Sócrates Bem o merecia ele por não ter compreendido
que, se Esculápio não ensinou esta espécie de medicina aos seus
descendentes, não foi nem por ignorância nem por inexperiência,
mas porque sabia que, numa cidade bem governada, cada
um tem uma tarefa fixada que é obrigado a desempenhar e
ninguém tem tempo para passar a vida doente e a tratar-se.
Sentimos o ridículo deste abuso nos artesãos, mas não o sentimos
nos ricos e nos que se consideram felizes.
Glauco Como?
Sócrates Quando um carpinteiro fica doente, pede ao
médico que lhe dê um remédio que, por vomitório ou purga,
evacue a sua doença ou então que lhe faça uma cauterização
ou uma incisão que o liberte dela. Mas, se alguém lhe prescrever
um longo regime, com ligaduras em volta da cabeça e o que
se segue, diz logo que não tem tempo para estar doente, que
não vê nenhuma vantagem em viver assim, ocupando-se unicamente
da sua doença e desprezando o trabalho que tem diante
de si. Em seguida, manda embora o médico e, retomando o
regime habitual, recupera a saúde e vive exercendo o seu oficio;
ou então, se o seu corpo não resiste à enfermidade, vem a morte
libertá-lo.
Glauco E essa a medicina que parece convir a tal homem.
Sócrates Não é porque tem um oficio e, se não o exercer,
Não encontra nenhuma vantagem em viver?
Glauco Evidentemente.
Sócrates Ao passo que o rico, conforme dizemos, não
tem trabalho de que não possa abster-se sem que a vida lhe
seja insuportável.
Glauco Assim é, de fato.
Sócrates Não conheces a máxima de Focilides: deve-se
praticar a virtude quando se tem com que viver?
Glauco Penso que também se deve praticá-la mesmo
antes de ter com que viver.
Sócrates Não discutimos a verdade desta máxima; mas
vejamos por nós mesmos se o rico deve praticar a virtude e se
lhe é impossível viver sem ela ou se a mania de alimentar as
doenças, que impede o carpinteiro e os outros artesãos de se
entregarem ao seu ofício, não impede também o rico de cumprir
o preceito de Fodilides.
Glauco Não há dúvida de que o impede, por Zeus! E
nada talvez o impeça tanto como esse cuidado excessivo do
corpo, que vai além do que admite a ginástica; com efeito, é
incômodo nos assuntos domésticos, nas expedições militares e
nos empregos sedentários da cidade.
Sócrates Mas o seu principal inconveniente está em tornar
difícil qualquer estudo, qualquer reflexão ou meditação intenor.
Com efeito, temem-se sempre dores de cabeça e vertigens,
que se imputam à fflosofia; assim, esse cuidado, onde quer que
se encontre, entrava o exercício e a provação da virtude, porque
faz que as pessoas continuem a julgar que estão doentes e não
cessem de queixar-se da sua saúde.
Glauco Isso é muito comum.
Sócrates Esculápio o sabia e foi para os homens que
têm, pela natureza e o regime que seguem, uma boa constituição,
mas sofrem de uma doença localizada, que ele inventou a medicina.
Libertou-os das doenças mediante remédios e indicações,
ordenando-lhes ao mesmo tempo que não mudassem em nada
o seu regime habitual, a fim de não prejudicarem os negócios
da cidade. Quanto aos indivíduos inteiramente minados pela
doença, não tentou prolongar-lhes a miserável vida por meio
de um lento tratamento de infusões e purgas e pó-los em condições
de engendrar filhos destinados, provavelmente, a parecer-
se com eles; não pensou que fosse necessário tratar um homem
incapaz de viver no círculo de deveres que lhe é fixado,
porque daí não é vantajoso nem para o doente nem para a
cidade.
Glauco Fazes de Esculápio um político.
Sócrates Era-o evidentemente. Não vês que os seus lilhos,
ao mesmo tempo que combatiam valentemente diante de
Tróia, exerciam a medicina como eu digo? Não te lembras que,
quando Menelau foi atingido por uma flecha de Pandaro, sugaram
o sangue da ferida e verteram-lhe em cima remédios calmantes,
sem lhe prescreverem, tal como a Eurípio, o que devia beber
ou comer depois? Sabiam que estes remédios bastavam para
curar homens que, antes dos seus ferimentos, estavam sãos e
cumpriam o seu regime, ainda que tivessem bebido naquele
mesmo instante a beberagem de que falamos; quanto ao indivíduo
enfermiço por natureza e incontinente, não pensavam
que houvesse vantagem, para ele ou para os outros, em prolongar-
lhe a vida, nem que a arte médica fosse feita em sua
intenção, nem que fossem obrigados a tratá-los, ainda que fosse
mais rico do que Midas.
Glauco Coisas maravilhosas dizes dos filhos de Esculápio!
Sócrates E não digo que não deva ser assim. Contudo,
os poetas trágicos e Píndaro não compartilham da nossa opinião.
Pretendem que Esculápio era filho de Apoio e que se deixou
persuadir, a peso de ouro, a curar um homem rico atingido
por uma doença mortal, pelo que foi ferido pelo raio. Quanto
a nós, de acordo com o que dissemos atrás, não acreditamos
simultaneamente nestas duas asserções: se Esculápio era filho
de um deus, não podia ser ávido de lucros vergonhosos; e, se
era ávido de um lucro sórdido, não era filho de um deus.
Glauco Tens toda a razão, Sócrates. Mas devemos ter
bons médicos na cidade? Ora, os bons médicos são, principalmente,
os que trataram o maior número de indivíduos saudáveis
e não saudáveis; da mesma maneira, os bons juizes são os que
têm convivido com homens de todos os caracteres?
Sócrates Sem dúvida que são necessários bons juizes e
bons médicos. Mas sabes quais são os que considero como tais?
Glauco Sabe-lo-ei se me disseres.
Sócrates E o que vou fazer; mas incluíste na mesma
pergunta duas coisas diferentes.
Glauco Como assim?
Sócrates Os médicos mais hábeis seriam os que, começando
logo na infância a aprender a sua arte, tivessem tratado
o maior número de corpos e os mais doentes, e que, não sendo
eles próprios de uma compleição saudável, tivessem sofrido
todas as doenças. Pois, não curam, penso eu, o corpo pelo corpo
caso contrário, não conviria que fossem ou viessem a ser
doentes , mas o corpo pela alma, e a alma que foi ou está doente
não pode ela própria tratar bem um mal, seja ele qual for.
Glauco É verdade.
Sócrates Mas o juiz, meu amigo, ainda que tenha de
governar a alma de outrem pela sua, não tem necessidade de
andar na companhia das almas perversas, nem que tenha percorrido
a série de todos os crimes, com o único fim de poder,
com acuidade, conjeturar por si mesma os crimes dos outros,
como o médico conjetura as doenças do corpo; ao contrário, é
preciso que se tenha mantido ignorante e pura do vício, se se
quer que julgue corretamente o que é justo. Eis por que motivo
as pessoas honradas se mostram simples na sua juventude e
são facilmente enganadas pelos maus, visto que não há nelas
modelos de sentimentos semelhantes aos dos perversos.
Glauco A verdade é que se deixam seduzir amiúde.
Sócrates Assim sendo, não convém que um juiz seja
jovem, mas velho; é preciso que tenha aprendido tarde o que
e a injustiça, que a tenha conhecido sem alojá-la em sua alma,
mas estudando-a longamente, como uma estranha, na alma dos
outros, e que a ciência, e não a sua própria experiência, lhe faça
sentir claramente o mal que ela constitui.
Glauco Um homem assim seria o verdadeiro juiz.
Sócrates E mais: seria o bom juiz tal como tu o pedias,
dado que quem tem a alma boa é bom. Quanto ao homem hábil
e desconfiado, que cometeu muitas injustiças e se julga esperto
e sábio, dá provas, certamente, de consumada prudência quando
trata com os seus semelhantes, porque se refere aos modelos
dos vícios que alojava dentro de si; mas, quando se encontra
com gente já muito avançada em idade, revela-se tolo, incrédulo
a despropósito, ignorante do que é um caráter são, porque não
possui este modelo dentro de si. Contudo, como trata mais com
os perversos do que com os honestos, passa mais por sábio do
que por ignorante aos seus olhos e aos dos outros.
Glauco É verdade.
Sócrates Não é, pois, neste homem que devemos procurar
o juiz bom e sábio, mas no primeiro. Com efeito, a perversidade
não poderia conhecer-se a si mesma e conhecer a
virtude, ao passo que a virtude de uma natureza cultivada pela
educação conseguirá, com o tempo. conhecer-se a si mesma e
conhecer o vício. Em minha opinião, pois, a verdadeira prudência
é própria do homem virtuoso e não do mau.
Glauco Sou do teu parecer.
Sócrates Por conseqüência, estabelecerás em nossa cidade
médicos e juizes tais como os descrevemos, para tratarem
os cidadãos que são bem constituídos de corpo e alma; quanto
aos outros, deixaremos morrer os que têm o corpo enfermiço;
os que têm a alma perversa por natureza e incorrigível serão
condenados à morte.
Glauco E o que de melhor há a fazer com tais pessoas
para o bem da cidade.
Sócrates E também evidente que os nossos jovens se
precaverão de ter necessidade de juízes se cultivarem essa música
simples que, dizíamos nós, engendra a temperança.
Glauco Não há dúvida.
Sócrates E, se seguir as mesmas regras da ginástica, o
músico que a pratica conseguirá dispensar o médico, exceto
nos casos de urgência?
Glauco Creio que sim.
Sócrates Nos exercícios e trabalhos, propor-se-á estiinular
a parte generosa da sua alma, de preferência a aumentar a
sua força, e, como os outros atletas, não regulará a sua alimentação
e os seus esforços com vista ao vigor corporal.
Glauco Muito bem.
Sócrates Acreditarias, meu caro Glauco, que os que fundamentaram
a educação na música e na ginástica fizeram-no para
formar o corpo por meio de uma e a alma por meio de outra?
Glauco Por que me fazes essa pergunta?
Sócrates E que me parece que tanto uma como a outra
foram criadas principalmente para a alma.
Glauco Como assim?
Sócrates Já notaste, certamente, qual é a disposição de
espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e
não se interessam pela música? Ou dos que fazem o contrário?
Glauco De que disposição falas?
Sócrates Da rudeza e dureza de uns, da moleza e brandura
dos outros.
GlaucoJá notei que aqueles que se entregam unicamente
à ginástica contraem demasiada rudeza e que os que cultivam os
omitiria a decência.
Sócrates Entretanto, é o elemento generoso da sua natureza
que provoca a rudeza; bem dirigido, tornar-se-ia coragem,
mas, demasiado tenso, degenera em dureza e mau humor,
como é natural.
Glauco Assim me parece.
Sócrates E a brandura não faz parte do caráter do filósofo?
Demasiado frouxa, amolece-o mais do que o permitido,
mas, dirigida, abranda-o e ordena-o.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates E nós queremos que os nossos guerreiros reúnam
estas duas características.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Não devemos, então, colocá-las em harmonia
uma com a outra?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E a sua harmonia não toma a alma ao mesmo
tempo moderada e corajosa?
Glauco Certamente.
Sócrates Ao passo que a sua desarmonia a torna covarde
e grosseira?
Glauco Sim.
Sócrates Logo, quando um homem permite que a música
o encante com o som da flauta e lhe derrame na alma, pelos ouvidos,
essas harmonias suaves, moles e plangentes de que falávarinos
há pouco, passa a vida distraído, exultante de alegria pela
beleza do canto: em primeiro lugar, suaviza o elemento irascível
da sua a]ma, como o fogo amolece o ferro e o torna útil, de inútil
e dum que era antes; mas, se continua a entregar-se ao encantamento,
a sua coragem não tarda a dissolver-se e a fundir-se, até
se reduzir a nada, até ser extraída, como um nervo, da sua alma,
tornando-o um guerreiro sem vigor.
Glauco Tens razão.
Sócrates E, se recebeu da natureza uma alma debil e
frouxa, este resultado não se faz esperar; mas se, ao contrário,
nasceu ardente, o seu coração enfraquece-se, toma-se impressionável
e predisposto a irritar-se e a acalmar-se. Em vez de
corajoso, ei-lo irritável, colérico e cheio de mau humor.
Sócrates Porém, e se este homem se entrega inteiramente
à ginástica e à boa mesa, sem se importar com a música e a
filosofia? Em primeiro lugar, o sentimento das suas forças não
o enche de orgulho e coragem e não se toma mais intrépido
do que era?
Glauco Não há dúvida.
Sócrates Mas, se não fizer outra coisa e não mantiver
contato com a musa? Ainda que tivesse na alma um certo desejo
de aprender, como não participa em nenhuma ciência, em nenhuma
pesquisa, em nenhuma discussão nem em nenhum exercício
da música, esse desejo toma-se fraco, surdo e cego: não é despertado,
nem cultivado, nem liberto dos grilhões das sensações.
Glauco Assim e.
Sócrates Ei-lo, pois, já feito inimigo da razão e das musas;
já não se serve do discurso para persuadir; alcança em tudo
os seus fins pela violência e a selvageria, como um animal feroz,
e vive no seio da ignorância e da grosseria, sem harmonia e
sem graça.
Glauco E perfeitamente exato.
Sócrates Existem na alma dois elementos: a coragem e
a sabedoria; um deus, direi eu, deu aos homens duas artes, a
música e a ginástica; não as deu para a alma e para o corpo,
a não ser addentalmente, mas para aqueles dois elementos, a
fim de que se harmonizem entre si, sendo estendidos ou soltos
até ao ponto conveniente.
Glauco Assim parece.
Sócrates Aquele, pois, que associa com mais beleza a
ginástica à música e, com mais tato, as aplica à sua alma, é
músico perfeito e possui a ciência da harmonia muito mais do
que aquele que afina entre si as cordas de um instrumento.
Glauco E com toda a justiça, Sócrates.
Sócrates Portanto, Glauco, precisaremos também na nossa
cidade de um líder capaz de regular esta associação, se quisermos
salvar a nossa constituição.
Glauco Por certo que precisaremos, e muito.
Sócrates Tal é o nosso plano geral de educação e disciplina
da juventude. Seria inútil nos estendermos a respeito
das danças dos nossos jovens, as suas caças com ou sem cães
as suas competições de ginástica e hípicas. É suficientemente
claro que as regras a seguir nisso dependem das que já estabelecemos
e não é difícil descobri-las.
Glauco Certo que não.
Sócrates E agora, que nos falta determinar? Não é a
escolha dos cidadãos que devem mandar ou obedecer?
Glauco Nada mais.
Sócrates E claro também que os velhos deverão mandar
e os jovens obedecer.
Glauco Evidentemente.
Sócrates E daro também que entre os velhos devemos
escolher os melhores.
Glauco Certamente.
Sc5crates Quais são os melhores lavradores, senão os
que mais entendem de agricultura?
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Portanto, não é forçoso que os nossos chefes,
visto que devem ser os melhores entre os guardiães da cidade,
sejam os mais aptos a defendê-la?
Glauco Sim.
Sócrates Para tanto, não se exige inteligência, autoridade
e dedicação à coisa pública?
Glauco Com certeza.
Sócrates Mas, em geral, cada qual não é dedicado
àquilo que ama?
Glauco Necessariamente.
Sócrates Ora, um homem ama principalmente aquilo
que julga ser do seu interesse, cujo êxito ou fracasso considera
como seus.
Glauco É verdade.
Sócrates Escolhamos, pois, entre os guardas os que, após
um exame, nos parecerem que poderão fazer, durante toda a
sua vida e com toda a boa vontade, o que considerarem proveitoso
à cidade, sem nunca consentirem em agir em detrimento
do Estado.
Glauco São estes, com certeza, os que nos convem.
Sócrates Sou da opinião que é preciso observá-los em
todas as idades, para ver se se mantêm fiéis a esta máxima e se,
fascinados ou constrangidos, não abandonam nem esquecem a
opinião que lhes impõe que trabalhem para o maior bem da cidade.
Glauco Que entendes por isto?
Sócrates Vou explicar-te. Creio que uma opinião sai do
espírito voluntária ou involuntariamente; sai voluntariamente
a opinião falsa, quando se é iludido, involuntariamente toda a
opinião verdadeira.
Glauco Quanto à saída voluntária, compreendo; mas,
quanto à involuntária, preciso de explicações.
Sócrates Mas não percebes que os homens são involuntariamente
privados dos bens e voluntariamente dos males?
Ora, iludir-se quanto à yerdade não é um mal, firmar-se na
verdade não será um bem?
Glauco Tens razão. Creio que é involuntariamente que
se é privado da opinião verdadeira.
Sócrates Por isso mesmo, só se é privado dela por roubo,
alucinação ou violência.
Glauco Mas ainda não te entendo!
Sócrates E que, decerto, estou me expnxmndo à maneira
dos trágicos. Digo que se é roubado quando se é dissuadido ou
se esquece, porque o tempo, num caso, e a razão, no outro, nos
furtam a opinião sem que nos demos conta. Compreendes agora?
Glauco Compreendo.
Sócrates Afirmo que se é vítima quando o desgosto ou
a dor forçam a mudança de opinião.
Glauco Também compreendo isso e é exato.
Sciaates Portanto, acredito que se fica iludido quando se
muda de opinião sob o encanto do prazer ou a opressão do medo.
Glauco De fato, tudo o que nos engana parece seduzir-nos.
Sócrates A nós, pois, cumpre procurar os guardas mais
fiéis à máxima que prescreve que trabalhemos no que consideramos
o maior bem da cidade. E preciso treiná-los desde a infância,
lançando-os nas ações em que se pode esquecê-la e ser
enganado. Depois escolheremos aqueles que se lembram dela,
que são difíceis de seduzir, e excluiremos os outros. Não é assim?
Glauco Sim, por certo.
Sócrates E também é preciso impor-lhes trabalhos, dores,
combates, para que tenhamos certeza da sua constância.
Glauco É verdade,.
Sócrates Por último, devemos fazê-los enfrentar uma
terceira prova, a da sedução, e observá-los: assim como se conduzem
os potros no meio dos ruídos e tumultos para ver se
são medrosos, é necessário, durante a sua juventude, transportar
os guerreiros ao meio dos objetos assustadores, depois reconduzi-
los aos prazeres, para descobrir com muito mais cuidado
do que se experimenta o ouro pelo fogo se resistem ao encanto
e se mostram decentes em todas essas circunstâncias, se permanecem
bons guardas de si mesmos e da música que aprenderam,
se se conduzem sempre com ritmo e harmonia e são,
por último, capazes de se tomar eminentemente úteis a si mesmas
e à cidade. E aquele que tiver sofrido as provas da infância,
da adolescência e da idade viril e delas tiver saído puro será
nomeado chefe e guarda da cidade, honrá-lo-emos em vida e,
depois de morto, concedendo-lhe a insigne recompensa de túmulos
e monumentos à sua memória; mas aquele que assim
não for será excluído. Aqui tens, Glauco, como deve ser feita,
na minha opinião, a escolha dos chefes e guardas, o que foi
descrito de uma forma geral e sem entrar em pormenores.
Glauco Sou do mesmo parecer.
Sócrates Portanto, para sermos tão precisos quanto possível,
não convirá chamar, por um lado, guardas perfeitos aos
que velam pelos inimigos de fora e os falsos amigos de dentro,
a fim de tirarem a estes o desejo, àqueles o poder de fazer mal,
e dar, por outro lado, aos jovens a que há pouco chamávamos
guardas o nome de auxiliares e defensores da idéia dos chefes?
Glauco Também assim penso.
Sócrates De que arte nos valeremos agora para fazer
acreditar numa nobre mentira uma daquelas que qualificamos
de necessárias , principalmente aos chefes ou, pelo menos,
aos outros cidadãos?
Glauco Que mentira?
Sócrates Não é nenhuma novidade e teve início na Fenícia.
Refere-se a algo que já se passou em muitos Lugares, como
dizem os poetas e fizeram acreditar, mas que não aconteceu
nos nossos dias, que talvez nunca venha a acontecer, e que
exige muita eloqüência persuasiva.
Glauco Parece que hesitas em falar!
Sócrates Quando eu tiver falado, compreenderás que
tenho motivos para hesitar.
Glauco Mas fala sem temor.
Sócrates Vou fazê-lo, apesar de não saber que audácia
e que expressão usarei para isso. Começarei por tentar convencer
os chefes e os soldados, em seguida os outros cidadãos, de que
tudo o que lhes ensinamos, educando-os e instruindo-os, tudo
aquilo de que julgamos ter o conhecimento e a experiência, não
passava, por assim dizer, de sonho; que, na realidade, eram
então formados e criados no seio da terra, eles, as suas armas
e tudo o que lhes pertence; que, depois de os ter formado iiiteiramente,
a terra, a sua mãe, lhes deu â luz; que, por isso,
devem considerar a região que habitam como a sua mãe e ama,
defendê-la contra quem a atacar e tratar os outros cidadãos
como irmãos, filhos da terra como eles.
Glauco Não era sem razão que hesitavas em dizer tal
mentira!
Sócrates Concordo contigo que eu tinha muitos bons
motivos; mas ouve o resto da fábula: Na cidade sois todos
irmãos, dir-lhe-emos, prosseguindo nesta ficção, mas o deus
que vos formou misturou ouro na composição daqueles de entre
vós que são capazes de comandar: por isso são os mais preciosos.
Misturou prata na composição dos auxiliares; ferro e bronze na
dos Lavradores e na dos outros artesãos. Em geraL procriareis
filhos semelhantes a vós; mas, visto que sois todos parentes,
pode suceder que do ouro nasça um rebento de prata, da prata
um rebento de ouro e que as mesmas transmutações se produzam
entre os outros metais. Por isso, acima de tudo e principalmente,
o deus ordena aos magistrados que zelem atentamente
pelas crianças, que atentem no metal que se encontra
misturado à sua alma e, se nos seus próprios filhos houver
mistura de bronze ou feno, que sejam impiedosos para com
eles e lhes reservem o tipo de honra devida à sua natureza,
relegando-os para a dasse dos artesãos e lavradores; mas, se
destes últimos nascer uma criança cuja alma contenha ouro ou
prata, o deus quer que seja honrada, elevando-a à categoria de
guarda ou à de auxiliar, porque um oráculo afirma que a cidade
perecerá quando for guardada pelo feno ou o bronze. Conheces
algum meio de persuadi-los da verdade desta fábula.
Glauco Nenhum para persuadir à geração de que falas;
mas poder-se-á persuadir os seus filhos, os seus descendentes
e as gerações futuras.
Sócrates E isso servirá para lhes inspirar ainda maior
dedicação à pátria e aos seus concidadãos, dado que julgo compreender
o que queres dizer. Portanto, a nossa invenção seguirá
o caminho que a fama lhe indicar. Quanto a nós, armemos estes
filhos da terra e faça-mo-los avançar sob o comando dos seus
líderes. Que se aproximem e escolham o ponto da cidade mais
favorável para acampar, aquele em que estarão mais aptos a
conter os cidadãos do interior, se houver alguns que recusem
obedecer às Leis, e repelir os ataques do exterior, se o inimigo,
como o Lobo, vier precipitar-se sobre o rebanho. Depois de terem
erguido o acampamento e sacrificado a quem devem, que montem
as tendas. Não é assim?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates De tal maneira que possam protegê-los do frio
e do calor?
Glauco Sim, se falas, como creio, das suas habitações.
Sócrates Sim, mas de habitações de soldados, e não de
homens de negocios.
Glauco Que diferença fazes entre umas e outras?
Sócrates É o que vou explicar-te. A coisa mais terrível
e vergonhosa que os pastores podem fazer é treinar, para os
ajudarem a cuidar do rebanho, cães que a intemperança, a fome
ou qualquer habito vicioso levariam a fazer mal aos carneiros
e a se tornarem iguais aos lobos dos quais os deveriam proteger.
Glauco Nada mais terrível.
Sócrates Não devemos tomar todos os cuidados possíveis
para que os nossos auxiliares não se comportem deste modo
com os cidadãos, dado que são mais fortes do que eles, e não
se tomem iguais aos senhores selvagens, em vez de permanecerem
aliados protetores e defensores?
Glauco E essencial prevenir esses fatos.
Sócrates E o melhor dos cuidados não consiste em darlhes
uma boa educação?
Glauco Mas eles já a receberam.
Sócrates Isto eu não me atreveria a afirmar, meu caro
Glauco. Mas podemos dizer, como eu fazia há pouco, que devem
receber a boa educação, qualquer que seja, se quiserem possuir
o que, melhor do que qualquer outra coisa, os tomará brandos
entre si e para com aqueles sob sua guarda.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Além de tal educação, todo homem sensato
reconhecerá que é preciso dar-lhes habitações e bens que nao
os impeçam de serem guardas tão perfeitos quanto possível e
não os incitem a fazer mal aos seus concidadãos.
Glauco E com razão.
Sócrates Vê, pois, se, para serem assim, devem viver e
instalar-se da maneira que vou dizer: primeiramente, nenhum
deles possuirá nada em exclusivo, exceto os objetos de primeira
necessidade; em seguida, nenhum terá habitação nem loja onde
toda a gente possa entrar. Quanto à alimentação necessária a
atletas guerreiros sóbrios e corajosos, recebê-la-ão dos outros
cidadãos, como salário da guarda que asseguram, em quantidade
suficiente para um ano, de modo a não sobrar e a nao
faltar; tomarão as refeições juntos e viverão em comum como
soldados em campanha. Quanto ao ouro e à prata, dir-lhes-emos
que têm sempre na alma os metais que receberam dos deuses,
que não têm necessidade dos homens e que é ímpio macular
a posse do ouro divino acrescentando-lhe o ouro mortal, porque
muitos crimes foram cometidos pelo metal em forma de moeda
do vulgo, ao passo que o deles é puro; que só a eles, entre os
habitantes da cidade, não é permitido manipular e tocar ouro,
nem ir a uma casa onde ele exista, nem usá-lo, nem beber em
taças de prata ou ouro; que assim se salvarão e salvarão a cidade.
Ao contrário, logo que sejam proprietários de terra, casas e dinheiro,
de guardas que eram transformar-se-ão em mercadores
e lavradores e, de aliados, em déspotas inimigos dos outros
cidadãos; passarão a vida a odiar e a ser odiados, a conspirar
e a ser alvo de conspirações, receando muito mais os adversários
de dentro do que os de fora e correndo a passos largos para a
ruína, eles e o resto da cidade. Por todas estas razões, diremos
que é preciso garantir aos guardas habitação e bens, como mdiquei.
Converteremos isto em lei ou não?
Glauco Sim, com toda certeza.
LIVRO IV
AQUI FOI Adimanto que tomou a palavra.
Que dirias, Sócrates, se te objetassem que não tornas
esses homens muito felizes, e isso por culpa deles? Na verdade,
a cidade pertence-lhes e não desfrutam de nenhum de seus
bens, como outros que possuem terras, constroem belas e grandes
casas, mobiliando-as com magnificência, oferecem aos deuses
sacrifícios domésticos, dão hospitalidade e, voltando ao que
dizias há pouco, têm na sua posse ouro, prata e tudo o que,
na opinião corrente, assegura a felicidade. Dir-se-ia que os
teus guerreiros foram instalados na cidade apenas como auxiliares
assalariados, sem outra ocupação que não seja a de
estar de guarda.
Sócrates Deves acrescentar que apenas ganham o sustento
e não recebem soldos a mais, com os guerreiros vulgares, de modo
que não poderiam viajar à sua custa, se o desejassem, nem dar
dinheiro a cortesãs, nem àzer nenhuma dessas despesas que fazem
os homens se considerarem felizes. Eis alguns pontos que tu omites,
com muitos outros semelhantes, na tua acusação.
Adimantn Acrescenta-os, pois, ao que eu disse, se te parece!
Sócrates Queres, pois, que te responda para a minha defesa?
Adimanto Por certo.
Sócrates Sem nos afastarmos do caminho que escolhemos,
descobriremos, creio eu, o que convém responder. Diremos
que não haveria nada de extraordinário no fato de os nossos
guerreiros serem felicíssimos assim, que, aliás, ao fundarmos a
cidade, não tínhamos em vista tornar uma única classe eminentemente
feliz, mas, tanto quanto possível, toda a cidade. De
fato, pensávamos que só numa cidade assim encontraríamos a
justiça e na cidade pior constituída, a injustiça: examinando uma
e outra, poderíamos pronunciar-nos sobre o que procuramos
há muito tempo. Agora julgamos modelar a cidade feliz, não
pondo à parte um pequeno número dos seus habitantes para
torná-los felizes, mas considerando-a como um todo; imediatamente
depois examinaremos a cidade oposta. Se estivéssemos
ocupados a pintar uma estátua e alguém viesse censurar-nos
por não aplicarmos as mais belas cores nas partes mais belas
do corpo com efeito, os olhos, que são o que há de mais
belo no corpo, teriam sido revestidos não de púrpura, mas de
negro , defender-nos-íamos com este discurso: O espantosa
personagem, não imagines que devíamos pintar olhos tão belos
que deixassem de parecer olhos e fazer a mesma coisa para as
outras partes do corpo, mas considera se, dando a cada parte
a cor que lhe convém, criamos um belo conjunto. E, no caso
presente, não nos forces a acrescentar à condição dos guardas
uma felicidade que fará deles tudo menos guardas. Pois poderíamos
cobrir os nossas lavradores de roupas suntuosas, coroalos
de ouro e não os obrigar a trabalhar a terra, exceto para o
seu prazer; poderíamos deitar os oleiros em fila junto do lume,
fazer que, bebendo e banqueteando-se, não fizessem girar a roda
senão quando desejassem ocupar-se da sua obra e, da mesma
forma, tomar felizes todos os outros cidadãos, a fim de que a
cidade inteira vivesse em alegria. Mas não nos dês esse conselho,
porque, se te escutássemos, o lavrador deixaria de ser lavrador,
o oleiro de ser oleiro e todas as profissões, cujo conjunto forma
a cidade, desapareceriam. Além de que a importância destas
profissões é menor: que sapateiros se tornem medíocres e se
desacreditem, que se façam passar por aquilo que não são, nada
acarreta de terrível para a cidade. Contudo, quando os guardiâes
das leis e da cidade são guardiães apenas na aparência, vês que
a arruinam de alto a baixo, enquanto, por outro lado, são os
únicos a ter o poder de administrá-la bem e torná-la feliz. Portanto,
se somos nós que formamos verdadeiros guardiães. absolutamente
incapazes de prejudicarem a cidade, quem faz deles
lavradores e como que convivas felizes num panegírico fala de
algo diferente de unia cidade. De sorte que precisamos examinar
se, ao instalarmos os nossos guardas, nos propomos torná-los
tão felizes quanto possível ou se consideramos a felicidade de
toda a cidade, caso em que devemos obrigar os auxiliares e os
guardas a assegurá.la e convencê-Ios, assim como a todos os
outros cidadãos, a desentpenài.~r~o melhor possível as funções
de que são incumbidos; e, quando a cidade se tiver desenvolvido
e estiver bem organizada, deixaremos que cada classe participe,
de acordo com a sua natureza, da felicidade
Adimanto Parece-me que tens razão.
Sócrates Acreditas ser sensato comparar a seguinte observação
com as precedentes?
Adimanto Qual?
Sócrates Pensa nos outros artesãos e vê se não é isso
que os desacredita e corrompe também.
Adin7tanto Que é que OS desacredita e corrompe?
Sócrates A riqueza e a pobreza.
Adimanto De que maneira?
Sócrates Ouve. Achas que o oleiro, tendo enriquecido,
irá querer continuar a ocupar-se do seu ofício?
Adrmanto Acho que não.
Sócrates Não se tornará, dia após dia, mais Preguiçoso
e negligente?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates E, por conseguinte, pior oleiro?
Adinianto Com certeza.
Sócrates Se a pobrezao impede de arranjar ferramentas,
ou qualquer outro dos objetos necessários à sua arte, o seu trabalho
não sofrerá com isso? Não fará dos seus filhos e aprendizes
maus Operários?
Adimanto É inevitável
Sócrates Assim sendo, tanto a pobreza quanto a riqueza
prejudicam as artes e os artesâos
Adimanto Parece que sint
Soaates São, pois, duas outras coisas sobre as quais os
guardas devem velar muito atentamente a fim de não penetrarem
na cidade sem o seu conJlecimento
Adimanto Quais são?
Sócrates A riqueza e a pobreza, pois uma engendra o
luxo, a preguiça e o gosto pelas novidades; a outra, a baixeza
e a maldade e, da mesma forma, o gosto pelas novidades.
Adimanto Sem dúvida. Contudo, Sócrates, considera
isto: como é que a nossa cidade, não possuindo riquezas, estará
em condições de fazer a guerra, mormente se for obrigada a
lutar contra uma cidade rica e poderosa?
Sócrates Claro que a luta contra uma cidade assim é
difícil, mas é mais fácil contra duas de igual força.
Adimanto Que queres dizer com isso? perguntou.
Sócrates Em primeiro lugar, se houver luta corporal,
os nossos atletas guerreiros não terão de combater homens ricos?
Adimanto Sim.
Sócrates Mas, Adirnanto, não crês que um lutador treinado
da melhor maneira possível é capaz de enfrentar facilmente
dois lutadores ricos e demasiadamente alimentados?
Adimanto Talvez não, se tiver de lutar contra os dois
ao mesmo tempo.
Sócrates Nem mesmo se ele conseguisse fugir do primeiro,
e depois, virando-se, atacar o que o persegue e repetir
muitas vezes esta manobra, debaixo de sol e grande calor? Um
homem assim não venceria até mais de dois adversários?
Adixnanto Não seria muito de admirar se o fizesse.
Sócrates E não crés que os ricos conhecem melhor a
ciência e a prática da luta do que as da guerra?
Adimanto Não duvido.
Sócrates Logo, acredito que os nossos atletas lutarão
facilmente contra homens duas e três vezes mais numerosos.
Adimanto Parece-me que tens razão.
Sócrates Imagina agora que mandassem uma embaixada
a outra cidade para dizer, o que seria verdade: O ouro e a
prata não são usados entre nós; não temos o direito de possuílos,
mas vós tendes esse direito. Combatei conosco e tereis os
bens do inimigo. Acreditas que haveria pessoas que, depois
de ouvirem estas palavras, preferissem fazer a guerra a cães
sólidos e vigorosos, em vez de a fazerem, aliando-se a esses
cães, a ovelhas gordas e delicadas?
Adimanto Penso que não. Mas, se numa única cidade
se acumulam as riquezas das outras, é de temer que isso constitua
um perigo para a cidade que não é rica.
Sócrates Que ingênuo que és em acreditar que outra
cidade diferente da que fundamos merece tal nome!
Adimanto E por que não?
Sócrates Às outras cidades é necessário dar nomes e
significação mais amplas, porque cada uma delas é múltipla, e
não uma. Cada cidade encerra, pelo menos, duas cidades inimigas
uma da outra: a dos pobres e a dos ricos, e cada uma
delas subdinde-se em várias outras. Se as considerares como
formando uma só, ficarás decepcionado mas se as tratares como
múltiplas, dando a umas as nquezas, os poderes ou mesmo as
pessoas das outras, terás sempre muitos aliados e poucos liiixnigos.
E, enquanto a tua cidade for sabiamente administrada,
como acabamos de estabelecer, será a maior de todas, não digo
em fama, mas a maior na realidade, ainda que composta apenas
por mil guerreiros; pois não encontrarás facilmente uma cidade
tão grande nem entre os gregos nem entre os bárbaros, embora
existam muitas que parecem ultrapassá-la várias vezes em tamanho.
Pensas o contrário?
Adimanto Certo que nãol
Sócrates Porventura, não seria este o limite que os nossos
magistrados podem dar ao desenvolvimento da cidade, além
do qual não deveria estender-se?
Adimanto Qual é esse limite?
Sócrates A meu ver, é este: até o ponto em que, aumentada,
conserva a sua unidade, a cidade pode estender-se,
mas não para além disso.
Adimanto Muito bem.
Sócrates Assim, recomendaremos também aos guardas
que zelem com o maior cuidado para que a cidade não seja
nem pequena nem grande, mas para que seja de proporções
suficientes, conservando ao mesmo tempo a sua unidade.
Adiznanto E com isto não lhes recomendar~os nada
muito difícil.
Sócrates Menos difícil ainda é a recomendação que mencionamos
há pouco, quando dissemos que era preciso relegar para
as outras classes a criança medíocre nascida dos guardas e elevar
à condição de guarda a criança bem-dotada nascida nas outras
classes. Isto tinha o propósito de mostrar que também se deve
confiar aos outros cidadãos a função pan a qual estão naturalmente
aptos, e só essa, a fim de que cada um, ocupando-se da
sua tarefa própria, seja uno e não múltiplo, e assim a cidade se
desenvolva, permanecendo una, e não tornando-se múltipla.
Adimanto Com efeito, trata-se de uma questão menos
importar~ que aquela!
Sócktes As nossas prescrições, caro Adimanto, não são,
Como poderia julgar, numerosas e importantes; são todas simples
com a condição de se observar apenas um ponto, único e
importância ou, melhor, o único suficiente.
Adimanto Qual é?
Sócrates A educação da infância e da juventude. Porque,
se os jovens forem convenientemente educados e se tornarem
homens esclarecidos, compreenderão facilmente tudo
isto e o que de momento deixamos de lado, a propriedade das
mulheres os casamentos e a procriação dos filhos, coisas que,
segundo o provérbio, devem ser tão comuns quanto possível
entre
~4manto Será ótimo.
5~krates Logo que a nossa cidade se tenha desenvolvido,
inaun~ntando como um círculo. Um bom sistema de educação
e ii ção, quando preservados de toda e qualquer alteração,
cria b% caracteres e, por outro lado, os caracteres honestos
que r%beram essa educação tomam-se melhores do que aqueles
qu~ os precederam, sob diversos aspectos e, entre outros,
sob o tia procriação, como se verifica com os outros animais.
Adimanto E lógico.
Sócrates Finalmente, resumindo, faz-se necessário que os
responsáveis pela cidade se esforcem por que a educação não se
~em seu conhecimento, que velem por ela a todo o momento
e, corr~ todo o cuidado possível, evitem que nada de novo, no que diz
respeito à ginástica e à música, se introduza contra as regras
estabrlrcidas com receio de que, se alguém disser
os homens apreciam mais
os cantos mais novos,
Vá Se imaginar talvez que o poeta se refere não a árias novas,
mas a uma nova maneira de cantar, e que disso se faça o elogio.
Ora, hão se deve nem louvar nem admitir semelhante interpretaçãç
porque é de recear que a passagem a um novo gênero
musical ponha tudo em perigo. Com efeito, nunca se atacam
as formas da música sem abalar as maiores leis das cidades,
como diz Damon, e eu concordo com ele.
Adimanto lnclui-me também entre os que assim pensam.
Sócrates Pois é nela, na música, segundo parece, que
OS magistrados devem edificar o seu corpo de guarda.
Adimanto . Sem dúvida, o desprezo das leis insinua-se
aí facilmente sem que se dê conta.
Sócrates Sim, sob a forma de jogo e como se não causasse
nenhum mal.
Adimanto A princípio, não faz senão introduzir~ pouco
a pouco e infiltrar-se suavemente nos usos e costumes, daí,
sai mais forte e passa às relações sociais; em seguida, das relações
sociais marcha sobre as leis e as constituições com muita insolência,
Sócrates, até que, finalmente, haja consumado a ruína
total dos cidadãos e do Estado.
Sócrates . É realmente assim?
Adimanto É o que me parece.
Sócrates Mais uma razão, pois, como dizíamos no começo,
para que os nossos jovens devam participar de jogos mais
legítimos? Seos seus jogos são desregrados eles tambémo serão
e não poderão tornar-se quando adultos, homens obedientes
às leis e virtuosos.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Ao passo que, quando as crianças jogam honestamente
desde o começo, a ordem, por meio da música, penetra
nelas e, ao contrário do que acontece no caso que citavas,
acompaniwos por toda a parte, aumenta-lhes a força e revigora
na cidade o que nela estiver em declínio.
Adimanto É a pura verdade.
Sócrates E também descobrem essas regras que parecem
de pouca importância e que os seus predecessores deixaram
cair em desuso.
Adimanto Quais são elas?
Socrates Por exemplo, as que ordenam aos jovens que
respeitem o silêncio, quando convém, em presença dos anciãos;
que os ajudem a sentar-se, que se levantem para lhes cederem
o lugar, que rodeiem os pais de cuidados e as que respeitam
ao corte dos cabelos, às roupas, ao calçado, ao aspecto exterior
do corpo e outras coisas semelhantes. Não a-és que descobrirão
estas regras?
Adimanto Creio que sim.
Sáaates Tolice seria, pois, legislar sobre estas matérias,
dado que os decretos promulgados, orais ou escritos, não teriam
efeito e não poderiam ser cumpridos.
Adimanto E como o poderiam ser, então?
Sócrates O impulso dado pela educação, Adimanto, determina
tudo o que se segue. Por isso, o semelhante não apela
sempre para o seu semelhante?
Adimanto Sim.
Sócrates Poderíamos dizer que, no fim, este impulso
conduz a um grande e perfeito resultado, seja para o bem ou
para o mal.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Tal a razão pela qual não irei mais longe e
não empreenderei legislar acerca disso.
Adinianto Tens razão.
Sócrates Mas agora, em nome dos deuses, que faremos
no que concerne aos negócios da ágora, aos contratos que os
cidadãos das diversas classes aí celebram entre si e, se quiseres,
aos contratos de mão-de-obra? Que faremos no que concerne
às injúrias, às violências, à apresentação das solicitações, à organização
dos juízes, à instituição e ao pagamento das taxas
que poderiam ser necessárias sobre os mercados e nos portos
e, em geral, à regulamentação do mercado, da cidade, do porto
e do resto? Ousaremos legislar sobre tudo isto?
Adimanto Não convém fazer tais prescrições a pessoas
honradas; elas mesmas descobrirão facilmente a maior parte
das regras que é preciso estabelecer nessas matérias.
Sócrates Sim, meu amigo, se Deus lhes conceder manter
intactas as leis que enumeramos mais acima.
Adimanto Do contrário, todos passarão a vida a fazer
um grande número de tais regras e a reformá-las, na suposição
de que chegarão à melhor.
Sócrates Equivale a dizer que viverão como esses doentes
que a intemperança impede de abandonar um mau regime.
Adimanto Exatamente.
Sócrates Essas pessoas passam o tempo de forma encantadora:
tratando-se, não chegam a nada, exceto a complicar
e a agravar as suas doenças; e esperam, sempre que se lhes
aconselha um remédio, que graças a ele se tornarão saudáveis.
Adimanto E a doença desses doentes.
Sócrates E não é um traço engraçado deles o fato de
considerarem seu pior inimigo aquele que lhes diz a verdade,
isto é, que, enquanto não renunciarem a embriagar-se, a encher-
se de comida, a entregar-se à libertinagem e à preguiça,
nem remedios, nem cautérios, nem simpatias, nem amuletos,
nem outras coisas do mesmo gênero lhes servirão de nada?
Adimanto Na verdade, esse traço não me parece nada
engraçado, dado que não existe graça em irritar-se contra quem
dá bons conselhos.
Sócrates Pelo que vejo, não és um admirador de tais
homens.
Adimanto Juro que não, por Zeus!
Sócrates Logo, nem tampouco aprovarás toda a cidade
que se comporta como acabamos de dizer. Com efeito, não te
parece que fazem a mesma coisa que esses doentes as cidades
mal governadas que proibem os cidadãos, sob pena de morte,
de tocar no conjunto da sua constituição, ao passo que aquele
que serve esses cidadãos da maneira mais agradável e os lisonjeia,
empenhado em antecipar-se, em prever os seus desejos, e
hábil a satisfazê-los, é tratado como homem virtuoso, sábio profundo
e honrado por elas?
Adimanto Sim, elas fazem precisamente o mesmo e de
modo algum as aprovo.
Sócrates Que dizer, então, dos que consentem, que se
apressam até a servir tais cidades? Não admira a sua coragem
e complacência?
Adimanto Sim, decerto, exceto os que se deixam enganar
e se julgam políticos autênticos porque são louvados pela multidão.
Sócrates Que me dizes? Não desculpas esses homens?
Achas que uma pessoa que não sabe medir, a quem outras
pessoas no mesmo caso diriam que tem quatro côvados, poderia
evitar pensar que é essa a sua medida?
Adimanto Não o creio.
Sócrates Não te indignes pois, contra eles; com efeito,
esses homens são os mais encantadores do mundo! Fazem leis
sobre os assuntos que enumeramos há pouco e reformam-nas,
supondo que conseguirão pôr fim às fraudes que se cometem
nos contratos e nos negócios de que ainda agora falávamos:
não sabem que, na realidade, cortam as cabeças de uma hidra.
Adimanto De fato, não fazem outra coisa.
Sócrates Eu não creio que, numa cidade mal ou bem
governada, o verdadeiro legislador devesse se preocupar com
este tipo de leis: no primeiro caso, porque são inúteis e de nenhum
efeito; no segundo, porque qualquer pessoa descobrirá
uma parte e a outra derivará das instituições já estabelecidas.
Adimanto Que outras leis, pois, nos falta estabelecer?
Sócrates A mis, nenhuma. Mas a Apoio, ao deus de Delfos,
falta fazer as maiores, as mais belas e as primeiras das leis.
Adimanto Quais?
Sócrates As que se referem à construção dos templos, aos
sacrifícios dos deuses e heníis, ao enterro dos mortos e às cerimônias
que nos tornam as suas almas propícias. Com efeito, não
possuímos esta ciência; por isso, ao fundarmos a cidade, não devemos
obedecer a mais ninguém, se formos prudentes, nem aceitar
outro guia além da nossa pátria. Ora, este deus, em tais assuntos,
é o guia nacional de todos os homens, pois distribui os seus oráculos
assentado sobre a Onfale, no centro da Terra.
Adimanto Dizes bem, e assim faremos.
Sócrates Suportamos, pois, filho de Arfston, já fundada
a tua cidade. Agora, arranja onde quiseres uma luz suficiente,
chama o teu irmão, Polemairo, e os outros e considera se nos é
possível ver onde reside nela a justiça, onde a injustiça, em que
diferem uma da outra e qual das duas deve possuir quem quiser
ser feliz, quer escape ou não aos olhos dos deuses e dos homens.
Glauco E como se não dissesses nada! Com efeito, prometeste-
nos que serias tu a fazer essa pesquisa, pretendendo
que seria ímpio para ti não ajudar a justiça por todos os meios
ao teu alcance.
Sócrates É verdade que fiz a promessa a que aludiste;
portanto, devo cumpri-la, mas precisais me auxiliar.
Glauco Assim o faremos.
Sócrates Espero que deste modo encontremos o que
procuramos. Se a nossa cidade foi bem fundada, creio que nosso
Estado é perfeito.
Glauco Necessariamente.
Sócrates Claro, pois é evidente que é sábia, corajosa,
ponderada e justa.
Glauco Evidente.
Sócrates Logo, qualquer que seja a virtude que encontrarmos
nela, as virtudes restantes serão as que nos falta descobrir.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Se de quatro coisas procurássemos uma, seja
em que assunto for, e esta se nos apresentasse no começo, saberíamos
o suficiente acerca dela; mas, se tivéssemos primeiramente
conhecimento das outras três, por isso mesmo conheceríamos
a coisa procurada, porque é evidente que não seria senão
a coisa restante.
Glauco Tens razao.
Sócrates Logo, visto que os objetos da nossa pesquisa
são em número de quatro, não devemos adotar este método?
Glauco De pleno acordo.
Sócrates Evidentemente, no caso que nos ocupa, creio
que é a sabedoria a primeira que se vê; mas noto que a seu
respeito surge um fato singular.
Glauco Qual?
Sócrates A cidade que fundamos parece-me de fato sábia,
sendo que é prudente nas suas deliberações. Não achas?
Glauco Sim.
Sócrates E, evidentemente, a prudência nas deliberações
é uma espécie de ciência; de fato, não é por ignorancia, mas
por ciência, que se delibera bem.
Glauco Claro.
Sócrates Mas há em nossa cidade ciência de toda espécie.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates É pela ciência dos carpinteiros que se pode
dizer que a cidade é sábia e prudente nas suas deliberações?
Glauco De modo algum. Tal ciência fará dizer que ela
é hábil na arte da carpintaria.
Sócrates Logo, não é porque delibera com sabedoria
sobre a melhor maneira de realizar as obras de carpintaria que
a cidade deve ser considerada sábia?
Glauco Por certo que não!
Sócrates Será pela sua ciência em obras de bronze ou
outros metais?
Glauco Por nenhuma dessas ciências.
Sócrates E também não pela da produção dos frutos
da terra, porque isto corresponde à agricultura?
Glauco Assim também me parece.
Sócrates Há, porventura, na cidade que acabamos de
fundar, uma ciência que reside em certos cidadãos, pela qual
essa cidade delibera não sobre uma das partes que a compõem,
mas sobre o seu próprio conjunto, para conhecer a melhor maneira
de se comportar em relação a si mesma e às outras cidades?
Glauco Sem dúvida que há.
Sócrates Qual é a ciência? E em que cidadãos se encontra?
Glauco É a que tem por objeto a conservação do Estado
e encontra-se nos magistrados a que há pouco chamávamos de
guardiães perfeitos.
Sócrates E, em virtude dessa ciência, como consideras
a cidade?
Glauco Considero-a prudente nas suas deliberações e
verdadeiramente sábia.
Sócrates Mas quais são os que, na tua opinião, se encontram
em maior número na cidade: os ferreiros ou os verdadeiros
guardiães?
Glauco Os ferreiros.
Sócrates Logo, de todos os organrsmos que tiram o
nome da profissão que exercem, o dos magistrados será o
menos numeroso?
Glauco Sim.
Sócrates Por isso, é na classe menos numerosa e na
ciência que nela reside, é naqueles que estão à cabeça e governam
que toda a cidade, fundada segundo a natureza, deve ser
sábia; e os homens desta raça são naturalmente muito raros e
a eles compete participar na ciência que, única entre as ciências,
merece o nome de sabedoria.
Glauco Não há dúvida.
Sócrates Descobrimos assim uma das quatro virtudes
procuradas e a parte da cidade em que reside.
Glauco A mim, pelo menos, parece que a descobrimos
de maneira satisfatória.
Sócrates Quanto à coragem e à parte da cidade em que
reside, parte por causa da qual a cidade é considerada corajosa,
não é difícil vê-las.
Glauco Como assim?
Sócrates Há um meio de verificar se unia cidade é covarde
ou corajosa levando em consideração outra coisa que não essa
parte da cidade que faz a guerra e pega em armas por ela?
Glauco Nenhum.
Sócrates Por isso, não pensei que os outros cidadãos,
covardes ou corajosos, tenham o poder de dar à cidade um
outro desses caracteres.
Glauco Com efeito, não o têm.
Sócrates Portanto, nossa cidade será corajosa por uma
parte dela própria e porque possui nessa parte a força de conservar
constantemente intacta a sua opinião sobre as coisas a
temer, isto é: as que, em número e natureza, o legislador designou
na educação. Ou não é a isto que chamas coragem?
Glauco Não compreendi muito bem o que disseste; explica-
te melhor.
Sócrates Eu disse que a coragem é uma espécie de
salvaguarda.
Glauco Que espécie de salvaguarda?
Sócrates A da opinião que a lei fez nascer em nós, por
intermédio da educação, a respeito das coisas a temer, o seu
número e a sua natureza. E eu entendia por salvaguarda constante
desta opinião o fato de alguém a manter a salvo no meio
das dores e prazeres, dos desejos e temores, e de não abandoná-
la. Vou-te explicar isto com uma comparação, se quiseres.
Glauco Claro que quero.
Sócrates Sabes que os tintureiros, quando querem tingir
a lã de púrpura, começam por escolher uma só espécie de lã,
a branca; em seguida, preparam-na, sujeitam-na a um longo
tratamento, para que adquira o melhor possível o brilho da cor;
por último, mergulham-na na tinta. E o que se tinge desta maneira
é indelével: a lavagem, feita com ou sem dissolventes,
não lhe desbota a cor; ao contrário, bem sabes o que acontece
quando não se procede assim, quando se fingem lãs de outra
cor ou mesmo lã branca sem prepará-la.
Glauco Sei que a cor desbota e se torna feia.
Sócrates Concorda, então, que procedemos, na medida
das nossas forças, a uma operação semelhante, ao escolhermos
os guerreiros e ao educá-los na música e na ginástica. Não penses
que foi outra a nossa intenção: estávamos empenhados em que
tivessem o melhor conhecimento possível das leis, a fim de que,
graças à sua natureza e a uma educação apropriada, tivessem,
sobre as coisas a temer e o resto, uma opinião indelével, que
não pudesse ser apagada por esses dissolventes terríveis que
são o prazer mais poderoso na sua ação do que qualquer
álcali ou lixívia , a dor, o medo e o desejo mais poderosos
que qualquer dissolvente. E esta força que salvaguarda a opinião
reta e legítima, no que diz respeito às coisas que são ou não
são de recear, que eu invoco, que eu considero coragem, se
nada tens a objetar.
Glauco Eu não sei o que dizer, pois me parece que, se
a opinião sobre essas mesmas coisas não foro fruto da educação,
se for selvagem ou servil, não a considerarás estável e dar-lhe-ás
Outro nome.
Sócrates Tens muita razão.
Glauco Aceito, então, a tua definição da coragem.
Sócrates Ao menos aceita-a como a da coragem política,
e terás razão. Mas sobre este ponto, se quiseres, discutiremos
melhor em outra oportunidade; agora, não é a coragem que
procuramos, mas a justiça. Por isso, creio que não devemos
tYiaiS falar sobre este assunto.
Glauco Está certo.
Sócrates Ainda nos falta descobrir duas virtudes na cidade,
a temperança e o objeto de toda a nossa pesquisa, a justiça.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Que faríamos para encontrar a justiça sem nos
ocuparmos da temperança?
Glauco Não sei, mas gostaria que ela não se apresentasse
antes de examinarmos a temperança. Se queres me agradar,
começa por analisar esta última.
Sócrates Seria um erro recusar te agradar.
Glauco Examina, pois.
Sócrates E o que passo a fazer. Em verdade, ela se assemelha,
mais do que as virtudes precedentes, a um acordo e
a uma harmonia.
Glauco Como assim?
Sócrates A temperança outra coisa não é que um domínio
que se exerce sobre certos prazeres e paixões, como o
indica de uma forma que não considero exagerada a expressão
comum senhor de si mesmo e outras semelhantes,
que são, por assim dizer, vestígios desta virtude. Não te parece?
Glauco Certamente.
Sócrates Mas a expressão senhor de si mesmo não é
ridícula? Aquele que é senhor de si mesmo é também, acredito,
escravo de si mesmo, e aquele que é escravo, é também senhor,
porque ambas as expressões se referem à mesma pessoa.
Glauco Não há dúvida.
Sócrates Esta expressão parece-me querer dizer que existem
duas partes na alma humana: uma superior em qualidade
e outra inferior; quando a superior comanda a inferior, diz-se
que é o homem senhor de si mesmo o que é, sem dúvida,
um elogio; mas quando, devido a uma má educação ou a uma
má freqüência, a parte superior, que é menor, é dominada pela
massa dos elementos que compõem a inferior, censura-se este
domínio como vergonhoso e diz-se que o homem em semelhante
estado é escravo de si mesmo e corrupto.
Glauco Parece-me sensata essa explicação.
Sócrates Atenta agora para a nossa jovem cidade; verás
uma dessas condições realizada e dirás que é com razão que
se lhe chama senhora de si mesma, admitindo que se deve chamar
moderado e senhor de si mesmo a tudo aquilo em que a
parte superior comanda a inferior.
Glauco Atento e vejo que falas verdade.
Sócrates É claro que também descobrirás nela, em grande
número e feitio, paixões, prazeres e dores, sobretudo nas
crianças, nas mulheres, nos escravos e na turba de homens de
baixa condição que são considerados livres.
Glauco Sim, sem dúvida.
Sócrates Porém, quanto aos sentimentos simples e moderados
que o raciocínio dirige e que acompanham a inteligência
e a reta opinião, só os encontrarás em raras pessoas, aquelas
que, dotadas de excelente caráter, foram formadas por urna excelente
educação.
Glauco É verdade.
Sócrates Não percebes também que, na tua cidade, os desejos
da turba dos homens de baixa condição são dominados pelos desejos
e pela sabedoria do número menor dos homens virtuosos?
Glauco Percebo.
Sócrates Se é possível dizer de uma cidade que é senhora
dos seus prazeres, das suas paixães e de si mesma, é desta que
é preciso dizê-lo.
Glauco Não há dúvida.
Sócrates E, por isso mesmo, pode-se concluir que ela
possui temperança, não?
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates E se, em qualquer outra cidade, os governantes
têm a mesma opinião a respeito dos que devem mandar, na
nossa cidade também residirá esse acordo, não é assim?
Glauco Claro.
Sócrates Otimo! E quando os cidadãos alojam tais disposições,
em quem dirias que se encontra a moderação: nos
governantes ou nos governados?
Glauco Em uns e em outros.
Sócrates Vês que era bem fundada nossa conjectura, quando
dizíamos que a moderação se assemelha a uma harmonia.
Glauco Por que razão?
Sócrates Porque não se dá com ela o mesmo que com
a coragem e a sabedoria, que, residindo respectivamente numa
parte da cidade, tornam esta corajosa e sábia. A moderação não
atua assim: espalhada no conjunto do Estado, põe em uníssono
da oitava os mais fracos, os mais fortes e os intermédios, sob
a relação da sabedoria, se quiseres, da força, se também quiseres,
do número, das riquezas ou de qualquer outra coisa semelhantes.
De sorte que podemos dizer, com toda a razão, que a moderação
consiste nessa concórdia, harmonia natural entre o superior
e o inferior quanto à questão de saber quem deve mandar,
tanto na cidade como no indivíduo.
Glauco Estou de pleno acordo contigo.
Sócrates Temos assim três virtudes que foram descobertas
na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para
os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação
para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade
também participa na virtude, que poderá ser? E evidente que
é a justiça. -
Glauco É evidente.
Sócrates Agora, Glauco, como caçadores, precisamos
nos colocar em círculo em volta do matagal e evitar que a justiça
fuja e se esvaia diante dos nossos olhos. Não tem dúvida que
ela está aqui, em qualquer parte. Portanto, olha, esforça-te por
procurá-la; talvez sejas o primeiro a vê-la e então avise-me.
Glauco Bem que gostaria! Mas, se me tomares como
seguidor, capaz de descobrir o que se lhe assinala, poderás utilizar
muito melhor as minhas forças.
Sócrates Segue-me pois. Mas, antes, invoca comigo a
ajuda dos deuses.
Glauco E o que vou fazer. Só te peço que me sirvas
de guia.
Sócrates Claro que sim. O local está oculto e é de difícil
acesso; é escuro e cheio de obstáculos, mas precisamos avançar.
Glauco Sim, precisamos avançar.
Sócrates Depois de ter observado por algum tempo, e
provável que estejamos na boa pista, Glauco; creio que a caça
não nos escapará.
Glauco Boa noticia!
Sócrates Na verdade, eu e tu somos bem pouco perspicazes!
Glauco Por que o dizes?
Sócrates Porque já faz muito tempo, desde o início desta
conversa, que o objeto da nossa pesquisa parece rolar aos nossos
pés e nós, grandes tolos, não o vimos! Como as pessoas que
procuram às vezes o que têm nas mãos, em vez de olharmos
para o que estava adiante de nós, examinávamos um ponto
distante; foi talvez por isso que o nosso objeto fugiu de nós.
Glauco Que queres dizer?
Sócrates Digo que há muito que falamos da justiça sem
disso nos darmos conta.
Glauco Longo preâmbulo para quem anseia escutar!
Sócrates Agora, pois, vê se tenho razão. O princípio
que estabelecemos de início, ao fundarmos a cidade, e que devia
ser sempre observado, esse princípio ou uma das suas formas
é, creio, a justiça. Nós estabelecemos, e repeti-moIo muitas vezes,
que cada um deve ocupar-se na cidade apenas de uma
tarefa, aquela para a qual é mais apto por natureza.
Glauco Foi o que estabelecemos.
Sóctates Mais ainda: que a justiça consiste em fazer o
seu próprio trabalho e não interferir no dos outros. Muitos disseram
is*o e nós próprios o dissemos muitas vezes.
Glauco Efetivamente, dissemos.
S(k~rates Assim, esse princípio que ordena a cada um
que des~mpenhe a sua função própria poderia ser, de certo
modo, a justiça. Sabes o que me leva a pensar assim?
Glaua, Dize-o.
SóCtrates Parece-me que, na cidade, o complemento das
virtudes que examinamos, moderação, coragem e sabedoria, é
esse elerhento que deu a todas o poder de nascerem e, após o
nascime~to, as preserva na medida em que está presente. Ora,
dissemo~ que a justiça seria o complemento das virtudes procuradas,
se descobríssemos as outras três.
Glauco Assim deve ser.
SóCmtes Se fosse necessário decidir qual dessas virtudes
é a que, pela sua presença, contribui em maior dose para a
perfelça% da cidade, seria difícil dizer se é a conformidade de
opinião entre os governantes e os governados; ou, nos guerreiros,
a sakvaguarda da opinião legítima a respeito das coisas que
se dever4~ ou não temer; ou a sabedoria e a vigilância entre os
que gov~.~~ ou se o que contribui, sobretudo, para essa perfeição
é % presença, na criança, na mulher, no escravo, no homem
livre, no artesão, no governante e no governado, dessa virtude
pela qua2~ cada um se ocupa da sua tarefa própria e não interfere
na dos C~uttos
Glarnco Difícil, por certo, decidir tal questão.
SÓC)rates Assim, ao que me parece, a virtude que mantém
cada cid adão nos limites da sua própria tarefa concorre, para
a virtud~e de uma cidade, com a sabedoria, a moderação e a
coragem1 dessa cidade.
Glfiiuw Não há dúvida.
569rates Mas não dirás que é a justiça essa força que
concorra~ com as outras para a virtude de uma cidade?
Glaiuco Sim, por certo.
Sócrates Examina ainda a questão da seguinte maneira,
para veres se a tua opinião continua a ser a mesma: encarregaras
os magistrados de julgar os processos?
Glauco Certamente.
Sócrates E procurarão eles, ao fazê-lo, outra felicidade
que não seja esta: impedir que cada parte fique com os bens
da outra ou seja privada dos seus?
Glauco Não, nenhuma outra finalidade.
Sócrates E isso é justo?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Mais uma prova, pois, de que a justiça significa
guardar apenas os bens que nos pertencem e em exercer umcamente
a função que nos é própria.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Nesse caso, vejamos se pensas igual a mim.
Se um carpinteiro resolver exercer o oficio de sapateiro ou um
sapateiro o de carpinteiro e trocarem entre si as ferramentas
ou os respectivos salários ou se um mesmo homem exercesse
a um só tempo estes dois ofícios e se todas as mudanças possíveis,
exceto aquela que vou dizer, se produzirem , crês que
com isto possam advir muitos danos à cidade?
Glauco Não, por certo.
Sócrates Se, por outro lado, um homem que a natureza
predispôs para ser artesão ou a exercer qualquer outra atividade
lucrativa, orgulhoso de sua riqueza, do grande número das suas
relações, da força ou de outra vantagem semelhante, tenta elevar-
se à categoria de guerreiro, ou um guerreiro à categoria de
magistrado, sem que ambos possuam aptidão para tal, ou se
um mesmo homem procura desempenhar todas estas funções
ao mesmo tempo, crês, como eu, que estas mudanças e esta
confusão provocam a ruína da cidade?
Glauco Infalivelmente.
Sócrates A confusão entre essas três classes acarreta
para a cidade o máximo da deterioração e, com toda a razão,
pode-se considerar esta desordem o maior dos malefícios.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Então, não é a injustiça o maior malefício que
se pode cometer contra a cidade?
Glauco Sim, é.
Sócrates Logo, é nisso que consiste a injustiça. Ao contrário,
quando a classe dos homens de negócios, a dos guerreiros
e a dos magistrados exercem a sua função própria e só se ocupam
dessa função, não é o inverso da injustiça e o que torna
a cidade justa?
Glauco Acredito que não pode ser de outra maneira.
Sócrates Não o afirmemos ainda categoricamente; porém,
se reconhecermos que esta concepção, se aplicada a cada
homem em particular, é também a justiça, então receberá a nossa
aprovação. Do contrário, dirigiremos a nossa análise para outra
direção. Agora, completemos esta investigação que, conforme
pensávamos, nos devia permitir divisar mais facilmente a justiça
do homem, se tentássemos primeiramente descobri-la em algum
modelo mais amplo que a contivesse. Pareceu-nos que esse indivíduo
era a cidade; por isso, fundamos uma tão perfeita quanto
possível, sabendo muito bem que a justiça se encontraria
numa cidade bem governada. Vamos transladar agora para o
indivíduo o que encontramos na cidade e, se concluirmos que
a justiça é isso, tanto melhor. Contudo, se descobrirmos que a
justiça é outra coisa no indivíduo, voltaremos a atenção para a
cidade. Pode ser que, comparando estas concepções e pondo-as
em contato uma com a outra, façamos brotar a justiça como o
fogo de uma pederneira; em seguida, quando ela se tiver tornado
evidente, fixá-la-emos em nossas almas.
Glauco É o que se denomina proceder com método. É
assim que é preciso agir.
Sócrates Quando duas coisas, uma maior, outra menor,
possuem o mesmo nome, são elas diferentes, enquanto possuem
o mesmo nome, ou semelhantes?
Glauco Semelhantes.
Sócrates Assim sendo, o homem justo, enquanto justo,
não será diferente da cidade justa, mas semelhante a ela.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Ora, a cidade foi por nós considerada justa
quando cada uma de suas classes se ocupava de sua tarefa específica;
por outro lado, nós a consideramos moderada, corajosa
e sábia pelas disposições e as qualidades dessas mesmas classes.
Glauco É verdade.
Sócrates Portanto, meu amigo, consideraremos da mesma
forma o indivíduo, quando a sua alma encerra essas mesmas
partes que correspondem às três classes do Estado.
Glauco E absolutamente necessano.
Sócrates Estamos, então, meu amigo, às voltas com uma
questão embaraçosa em relação à alma: saber se ela tem ou não
em si mesma estas três partes.
Glauco A mim não parece embaraçosa. Talvez, Sócrates,
o provérbio tenha razão ao afirmar que as coisas belas são difíceis.
Sócrates Sou do mesmo parecer. Mas quero que conheças
perfeitamente, Glauco, a minha opinião: pelos métodos que
empregamos nesta discussão nunca atingiríamos o objetivo da
nossa pesquisa, pois o caminho é outro, mais longo e complicado.
Contudo, talvez cheguemos a resultados a respeito do
que dissemos e analisamos até agora.
Glauco Não devemos contentar-nos com isso? Quanto
a mim, é o que basta.
Sócrates Também a mim basta.
Glauco Não desanimes, então, e continua em tua análise.
Sócrates E preciso convir que, em cada um de nós, se
encontram as mesmas formas e os mesmos caracteres que na
cidade. Pois é a partir daí que passam para ela. De fato, seria
ridículo acreditar que o caráter irascível de certas cidades não
se origina nos cidadãos com fama de o possuírem, como os
trácios, os citas e quase todos os povos do norte; ou que nao
acontece a mesma coisa com o amor ao conhecimento, que se
poderia atribuir especialmente aos habitantes do nosso país, ou
com o amor às riquezas, que se atribui sobretudo aos fenícios
e aos egípcios.
Glauco Não há dúvida.
Sócrates E assim que as coisas acontecem e não é
difícil entender.
Glauco Claro que não.
Sócrates Difícil, sim, será decidir se é pelo mesmo elemento
que realizamos cada uma das nossas ações ou determinada
ação por um dos três elementos; se julgamos por um, nos
irritamos por outro, desejamos por um terceiro os prazeres da
comida, da reprodução e todos os da nossa família, ou então,
se a alma inteira intervém em cada uma dessas operações, quando
somos chamados a realizá-las. Isto é que será difícil de determinar
satisiatoriamente.
Glauco Também creio.
Sócrates Procuremos determinar desta maneira se esses
elementos são idênticos entre si ou diferentes.
Glauco De que maneira?
Sócrates E evidente que o mesmo sujeito, ao mesmo tempo
e a respeito do mesmo objeto, não é capaz de produzir ou experimentar
efritos contrários. De maneira que, se descobrirmos aqui
contrários, saberemos que há, não um, mas vários elementos.
Glauco Que seja.
Sócrates Ouve, pois, o que vou dizer.
Glauco Fala.
Sócrates E possível que a mesma coisa esteja ao mesmo
tempo imóvel e em movimento, na mesma das suas partes?
Glauco De jeito nenhum.
Sócrates Certifique-monos ainda mais, para que não
surjam dúvidas à medida que avançamos. Se alguém afirmasse
que um homem que só consegue mexer os braços e a cabeça
está ao mesmo tempo imóvel e em movimento, julgo que diriamos
que não devemos exprimir-nos assim, mas dizer que
uma parte do seu corpo está imóvel e a outra em movimento.
Não é assim?
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Mas, se o nosso interlocutor afirmasse que o pião
está completamente imóvel e em movimento quando gira retido
no mesmo lugar por sua ponta, ou que se dá o mesmo com qualquer
outro objeto que se move em círculo em tomo de um ponto
fixo, por certo que não o admitiríamos. Diríamos que não é nas
mesmas partes que tais objetos estão em repouso e em movimento;
diríamos que têm um eixo e uma circunferência, que em relação
ao eixo estão imóveis pois o eixo não se inclina para nenhum
dos lados e que relativamente à circunferência se movem circularmente;
mas quando o corpo em movimento inclina com ele
a linha de eixo para a direita ou para a esquerda, para a frente
ou para trás, então não está absolutamente imóvel.
Glauco Seria uma resposta perfeita.
Sócrates Então, não nos deixaremos perturbar por tais
objeções, assim como não deixaremos que nos convençam de
que o mesmo sujeito, nas mesmas partes e relativamente ao
mesmo objeto, experimenta ou produz ao mesmo tempo duas
coisas opostas.
Glauco Quanto a mim, sem dúvida que não me deixarei
convencer.
Sócrates Entretanto, para não sermos obrigados a perder
tempo analisando todas as objeções semelhantes e certificandonos
da sua falsidade, consideremos o nosso princípio verdadeiro
e sigamos em frente, depois de termos admitido que, se alguma
vez ele se mostra falso, todas as conclusões a que tivermos chegado
serão nulas.
Glauco E isso mesmo o que devemos fazer.
Sócrates Dize-me agora: aprovar e desaprovar, desejar
uma coisa e recusá-la, chamar a si e repelir, são ações contrárias
entre si, quer se trate de atos, quer de estados, já que isso não
implica nenhuma diferença?
Glauco Obviamente que são contrárias.
Sócrates Colocarás a sede, a fome, os apetites em geral
e também o desejo e a vontade na primeira classe desses contrários
que acabamos de mencionar? Por exemplo, não dirás
que a alma daquele que deseja busca o objeto desejado ou atrai
a si o que gostaria de possuir, ou ainda, à medida que pretende
que uma coisa lhe seja dada, responde a si mesma, como se
alguém a interrogasse, que aprova essa coisa, devido ao desejo
que tem de obtê-la?
Glauco Direi.
Sócrates Mas, não consentir, não querer, não desejar,
não é o mesmo que repelir, afastar de si? E não são estes estados
da alma contrários aos precedentes?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Então, não diremos que temos certos desejos,
como a sede e a fome, que sao os mais fortes de todos?
Glauco Sim, diremos.
Sócrates Um objetiva a bebida e o outro, a comida.
Glauco Claro!
Sócrates A sede, como tal, pode ser algo mais do que
o mero desejo de beber? Por exemplo, é sede de bebida quente
ou fria, em grande ou pequena quantidade, enfim, de um determinado
tipo de bebida? Ou é o calor que, somado à sede,
provoca o desejo de beber frio; ou o frio, o de beber quente.
Mas a sede, em si mesma, é apenas o desejo do objeto natural,
a bebida, como a fome é o desejo de comida?
Glauco É verdade. Cada desejo considerado em si mesmo
não é senão desejo do objeto natural, correspondendo aquilo
que se lhe acrescenta a esta ou aquela qualidade desse objeto.
Sócrates E que não venham, pois, a nos objetar dizendo
que ninguém deseja a bebida, mas a boa bebida, nem a comida,
mas a boa comida, sendo que todos os homens desejam as boas
coisas; e se a sede é desejo, tem por objetivo uma boa coisa,
seja essa coisa qual for, bebida ou outra. O mesmo acontece
com os outros desejos.
Glauco Entretanto, essa objeção parece ter certa importância.
Sócrates Porém, com certeza, todo objeto relacionado
com outros, considerado numa das suas qualidades, está, julgo
eu, relacionado com esse objeto; considerado em si mesmo, está
relacionado somente consigo mesmo.
Glauco Não te compreendo.
Sócrates Não compreendes que o que é maior o é somente
em relação a outra coisa menor?
Glauco Isso eu compreendo.
Sócrates E o que é muito maior o é somente em relação
ao que é muito menor?
Glauco Sim.
Sócrates E que se é ou será maior, é porque tem relação
com algo que foi menor ou que o será?
Glauco Não há dúvida.
Sócrates Da mesma maneira, quanto ao mais em relação
ao menos, quanto ao dobro em relação à metade, ao mais pesado
em relação ao mais leve, ao mais rápido em relação ao mais
lento, ao quente em relação ao frio e quanto a todas as outras
coisas semelhantes, não se dá o mesmo?
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Eo mesmo princípio não vale para as ciências?
A ciência considerada em si mesma tem por objetivo o que é
passível de ser conhecido; mas uma determinada ciência tem
por objeto um conhecimento específico. Explico-me: quando
nasceu a ciência de construir casas, não foi diferenciada das
outras com a denominação de arquitetura?
Glauco É verdade.
Sócrates Foi diferenciada porque não era parecida com
nenhuma outra ciência?
Glauco Sim.
Sócrates E isso não aconteceu porque possui um objeto
determinado? E não ocorre a mesma coisa com todas as outras
artes e todas as outras ciências?
Glauco Ocorre.
Sócrates Se agora me compreendeste, reconhecerás que
era isso o que eu queria dizer: todo objeto relacionado com
outros, considerado em si mesmo, relaciona-se apenas consigo
mesmo, considerado numa das suas qualidades em relação a
esse objeto. Aliás, não afirmo que o que está relacionado com
esse objeto seja semelhante a esse objeto, que, por exemplo, a
ciência da saúde e da doença sejam sã ou malsã e a ciência do
bem e do mal, boa ou má. Mas, quando a ciência deixa de ser
ciência do conhecível em si mesma, porém de determinado objeto,
adquire uma determinação e, por isso, já não é denominada
simplesmente ciência, mas ciência médica, caracterizando-se
pelo seu objeto particular.
Glauco Compreendo o teu raciocínio e o considero exato.
Sócrates E não situarás a sede, pela sua natureza, na
classe das coisas relacionadas com outras?
Glauco Eu a situarei relacionada com a bebida.
Sócrates Assim, determinada sede relaciona-se com determinada
bebida; mas a sede em si mesma não se relaciona com
uma bebida em grande ou em pequena quantidade, boa ou má,
numa palavra, com uma espécie particular de bebida. A sede em
si mesma relaciona-se, por natureza, com a própria bebida.
Glauco Perfeito.
Sócrates Logo, a alma daquele que tem sede não quer
senão beber; é isso o que deseja e a que se predispõe.
Glauco Evidentemente.
Sócrates Quando, pois, alguém se predispõe a beber e
algo o faz retroceder, trata-se de um princípio diferente do que
provoca a sede e o impele cegamente a beber. Porque reconhecemos
que o mesmo princípio não pode provocar ao mesmo
tempo efeitos contrários.
Glauco Certamente que nao.
Sócrates De maneira semelhante, creio que seria errado
afirmar que as mãos do arqueiro esticam e largam o arco ao
mesmo tempo; mas pode-se dizer que uma das mãos o estica
e a outra o larga.
Glauco Com certeza.
Sócrates E às vezes não se encontram pessoas que, embora
tendo sede, se recusam a beber?
Glauco Sim, amiúde e em grande número.
Sócrates Que diremos de tais pessoas senão que existe
em sua alma um princípio que as manda beber e outro que as
proíbe, sendo este último mais forte que o primeiro?
Glauco É o que penso.
Sócrates O princípio que as inibe de beber se origina
da razão? Aquele que o impele e lhe governa a alma é provocado
por disposições doentias?
Glauco Evidentemente.
Sócrates Com razão, pois, não estaremos equivocados
ao considerar que se trata de dois elementos diferentes entre
si e ao denominar aquele pelo qual a alma raciocina seu elemento
racional e aquele por causa do qual ela ama, tem fome, tem
sede e se atira com ímpeto a todos os outros desejos o seu
elemento irracional, que desperta a concupiscência, amigo de
cedas satisfações e de certos prazeres.
Glauco Não estaremos equivocados ao pensar assim.
Sócrates Admitamos então que distinguimos estes dois
elementos na alma; mas a cólera, com o concurso da qual nos
indignamos, constitui um terceiro elemento ou é da mesma natureza
que um dos outros dois, e de qual deles?
Glauco Creio que da mesma natureza que o segundo,
o que desperta a concupiscência.
Sócrates Também creio, porque aconteceu-me de ouvir
contar que Leôncios, filho de Aglaion, ao voltar um dia do Pireu,
seguia pela parte exterior da muralha setentrional quando viu
cadáveres estendidos perto do carrasco; ao mesmo tempo que
um grande desejo de observá-los, sentiu repugnância e afastou-
se; durante alguns instantes lutou consigo e escondeu o rosto
com as maos; mas, por fim, dominado pelo desejo, arregalou
os olhos e, correndo na direção dos cadáveres, gritou: Aí tendes,
maus gênios, fartai-vos deste belo espetáculo!
Glauco Eu também ouvi contar isso.
Sócrates Esta história mostra que às vezes a cólera luta
contra os desejos e, por isso, diferencia-se deles.
Glauco Sim, é verdade.
Sócrates Observamos também, em muitas outras ocasiões,
que quando um homem é arrastado à força pelos desejos,
apesar da razão, se revolta contra o que lhe faz violência e que,
nesta batalha entre dois princípios, a cólera coloca-se como aliada
ao lado da razão. Jamais, eu acredito, a viste associada ao
desejo, em ti mesmo ou nos outros, quando a razão decide que
determinada ação não deve ir contra a sua decisão.
Glauco Certamente que não!
Sócrates Mas quando um homem admite estar errado,
não é menos capaz, quanto mais nobre for, de se exaltar, suportando
a fome, o frio ou qualquer outro desconforto, contra
aquele que, conforme acredita, o faz sofrer justamente? Por outras
palavras, não se recusa a descarregar a sua cólera sobre
aquele que o trata assim?
Glauco É a pura verdade.
Sócrates Quando, porém, se julga vítima de uma injustiça,
não é então que se inflama, se irrita, combate do lado que
lhe parece justo mesmo que sofra fome, frio e todas as provações
do gênero e, firme em suas convicções, triunfa, sem
se desviar desses sentimentos generosos antes de ter realizado
o seu propósito, até que se vingue ou sucumba ou que, à maneira
do pastor que acalma seu cão, a razão o acalme e sossegue?
Glauco Essa comparação é inteiramente exata. Por isso
é que decidimos que na nossa cidade os guerreiros ficariam
sujeitos aos magistrados como os cães aos seus pastores.
Sócrates Compreendes à perfeição o que quero dizer;
mas te peço que faças ainda outra reflexão.
Glauco Qual?
Sócrates E que, ao contrário do que pensávamos há
pouco, a cólera nos aparece agora bem diferente. Efetivamente,
há pouco pensávamos que ela se ligava a um elemento que
gera a concupiscência, ao passo que agora afirmamos que quando
uma sedição se ergue na alma, é a cólera que pega em armas
a favor da razão.
Glauco Com certeza.
Sócrates É, porém, diferente da razão ou de uma das
suas formas, de modo que não haveria três elementos na alma,
mas apenas dois: o racional e o concupiscível? Ou então, assim
como três classes compunham a cidade mercadores, guerreiros
e magistrados , assim também, na alma, o impulso
irascível constitui um terceiro elemento, aliado natural da razão,
a menos que uma má educação o tenha corrompido?
Glauco Existe necessariamente um terceiro elemento.
Sócrates Sim, sem dúvida, se se revela distinto do elemento
racional, como se revelou distinto do concupiscente.
Glauco Isso não é difícil de reconhecer. Com efeito,
pode-se observá-lo nas crianças: desde o nascimento estão sujeitas
à cólera, mas algumas parece que nunca recebem a razão
e a maioria recebe-a tarde.
Sócrates Tens razão. E isso também se passa com os
animais. E o verso de Homero testemunha-o:
Ulisses, batendo no peito, conteve o cora ção...
É evidente que Homero representa aqui dois princípios
distintos: um, a razão, que reprime a cólera depois de haver
raciocinado sobre o que é melhor ou pior fazer; outro, que se
exalta de forma insensata.
Glauco Muito bem dito.
Sc5crates Chegamos, afinaL através de inúmeros obstáculos
penosamente superados, a estabelecer que existem, na cidade
e na alma do indivíduo, princípios correspondentes e
iguais em número.
Glauco Cedo.
Sócrates Conseqüentemente, já não é necessário que o
indivíduo seja sábio do mesmo modo e pelo mesmo princípio
que a cidade?
Glauco Sim, sem dúvida.
Sócrates E que a cidade seja corajosa pelo mesmo princípio
e do mesmo modo que o indivíduo? Enfim, que tudo o que diz
respeito à virtude se encontre igualmente numa e noutro?
Glauco E necessário.
Sócrates Então, amigo Glauco, afirmaremos que a justiça
tem no indivíduo o mesmo caráter que na cidade.
Glauco Concordo também com isso.
Sócrates Mas não podemos nos esquecer de que a cidade
era justa pelo fato de cada uma das suas três dasses se ocupar
da sua própria tarefa.
Glauco Não creio que o tenhamos esquecido.
Sócrates Lembremo-nos então de que se cada um de
nós desempenhar a sua tarefa própria, será também justo e desempenhará
a tarefa que lhe é própria.
Glauco Sim, precisamos nos lembrar disso.
Sócrates Portanto, não compete à razão mandar, por
ser sábia e possuir a responsabilidade de velar pela alma, e à
cólera obedecer à razão e defendê-la?
Glauco Sim, com certeza.
Sócrates Mas não é, como afirmamos, um misto de música
e ginástica que conciliará estas partes, fortificando e alimentando
uma delas com belos discursos e com os conhecimentos
científicos, acalmando, abrandando a outra pela harmonia
e pelo ritmo?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E estas duas partes assim educadas, realmente
adestradas e instruídas para desempenhar o seu papel, dominarão
e conterão o elemento concupiscente, que ocupa o maior
espaço na alma e que, por natureza, é insaciável; irão vigiá-lo
para evitar que, saciando-se dos prazeres do corpo, se desenvolva,
revigore e, em vez de se ocupar da sua tarefa, busque
subjugá-los e dominá-los o que não convém a um elemento
da sua espécie e subverta toda a vida da alma.
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates E nos defenderão melhor dos inimigos externos,
com toda a alma e todo o corpo, a primeira decidindo, o
segundo lutando sob as ordens da primeira e executando corajosamente
os projetos elaborados por esta.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Denominamos corajoso, pois, um homem levando
em consideração o lado irascível de sua alma, quando
esta parte salvaguarda, através de sofrimentos e prazeres, as
deliberações a respeito do que se deve ou não recear.
Glauco É verdade.
Sócrates E por nós denominado sábio levando em consideração
essa pequena parte dele mesmo que governa e enuncia
estas deliberações, parte que possui também o conhecimento
do que é proveitoso a cada um dos três elementos da alma e
a todos em conjunto.
Glauco Estou de acordo.
Sócrates Mas nós não o denominamos moderado por
causa da amizade e harmonia que existe entre o elemento que
manda e os que lhe obedecem, quando estes últimos concordam
em que a razão deve governar e não há revolta contra ela?
Glauco Não há dúvida de que a moderação não é diferente
na cidade e no indivíduo.
Sócrates Portanto, o indivíduo será justo pelo motivo
e da maneira que tantas vezes afirmamos.
Glauco Necessariamente.
Sócrates Mas será que a justiça se enfraqueceu a ponto
de nos parecer diferente do que era na cidade?
Glauco Não acredito.
Sócrates Se ainda subsistisse alguma dúvida em nossa
alma, poderíamos suprimi-la totalmente comparando a nossa
definição da justiça com as noções comuns.
Glauco Quais?
Sócrates Suponhamos que precisássemos decidir a respeito
da nossa cidade e do homem que, por natureza e educação,
é semelhante a ela, será possível acreditar que este homem,
tendo recebido um depósito de ouro ou prata, o tenha desviado
em proveito próprio? E tu crês que alguém o julgaria mais capaz
de semelhante ação do que aqueles que não lhe são semelhantes?
Glauco Não creio.
Sócrates Mas esse homem não será igualmente incapaz
de cometer sacrilégio, furto e tmição, tanto particularmente, em
relação aos amigos, como publicamente, em relação à sua cidade?
Glauco Será incapaz.
Sócrates E, logicamente, de forma alguma faltará à sua
palavra, quer se trate de juramentos, quer de outras promessas.
Glauco Por certo.
Sócrates E quanto ao adultério, ao desrespeito aos pais
e à falta de piedade em relação aos deuses, combinam mais
com os outros do que com ele?
Glauco Mais aos outros, naturalmente.
Sócrates E a causa de tudo isso não teside no fato de
que cada elemento de sua alma desempenha a sua tarefa especifica,
tanto para mandar, quanto para obedecer?
Glauco Não pode ser outra coisa.
Sócrates E ainda te perguntas se a justiça é algo diferente
do poder que produz homens e cidades assim?
Glauco Certamente que não.
Sócrates Aqui está, portanto, perfeitamente realizado o
nosso sonho, a respeito do qual declarávamos ter dúvidas, a
saber, que seria bastante provável que, logo que iniciássemos
a fundação da cidade, nos depararíamos com determinado princípio
e modelo da justiça.
Glauco Assim é, de fato.
Sócrates Portanto) meu amado Glauco, quando exigiamos
que o sapateiro, o carpinteiro ou qualquer outro artesão
exercesse bem seu oficio sem intrometer-se em outras atividades,
estávamos estabelecendo sem querer uma imagem da justiça.
Glauco Aparentemente.
Sócrates Com efeito, a justiça se parece perfeitamente
com esta imagem, com a única diferença de que ela não governa
os assuntos externos do homem, mas apenas seus assuntos internos,
seu ser verdadeiro, não deixando que nenhum dos elementos
da alma exerça uma tarefa que não lhe é específica,
nem que os outros elementos usurpem mutuamente suas respectivas
funções. Ela pretende que o homem coloque em perfeita
ordem os seus reais problemas domésticos, que assuma o comando
de si mesmo, se discipline e conquiste a sua própria
amizade; que institua um acordo perfeito entre os três elementos
da sua alma, assim como entre os três tons extremos de uma
harmonia o mais agudo, o mais grave, o médio, e os intermédios,
se os houver , e que, ligando-os uns aos outros, se
transforme, de múltiplo que era, em uno, moderado e harmonioso;
que somente então se preocupe, se precisar se preocupar,
em obter riquezas, em cuidar do corpo, em exercer sua atividade
na política ou nos assuntos privados, e que em todas essas ocasiões
considere justa e honesta a ação que salvaguarda e contribui
para completar a ordem que implantou em si mesmo, e
sábia a ciência que governa essa ação; que, ao contrário, considere
injusta a ação que destrói essa ordem, e ignorante a opinião
que governa esta última ação.
Glauco Tudo isso é a mais pura verdade, meu caro
Sócrates.
Sócrates Que seja. Agora, se afirmássemos que descobrimos
o que é o homem justo, a cidade justa, e em que consiste
a justiça em um e na outra, creio que não nos enganaríamos
em demasia.
Glauco Por certo que não.
Sócrates Vamos, então, afirmá-lo?
Glauco Sim.
Sócrates Certo. Resta-nos, julgo eu, analisar a injustiça.
Glauco Claro que sim.
Sócrates Pode a injustiça ser outra coisa que não uma
sublevação dos três elementos da alma, uma confusão, uma
usurpação das suas respectivas tarefas, a revolta de uma parte
contra o todo para conquistar uma autoridade à qual não tem
direito, visto que a sua natureza a destina a obedecer àquela
que foi gerada para governar? E daí, afirmamos nós, é dessa
perturbação e dessa desordem que se origina a injustiça, a intemperança,
a covardia, a ignorância, enfim, todos os vícios.
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates E dado que conhecemos a natureza da injustiça
e da justiça, já percebemos com clareza em que consistem a
ação injusta e a ação justa.
Glauco Como assim?
Sócrates Porque elas não diferem das coisas sãs e das
nocivas; o que estas significam para o corpo, elas significam
para a alma.
Glauco Em que sentido?
Sócrates As coisas sãs engendram a saúde e as nocivas,
a enfermidade.
Glauco Assim é.
Sócrates Da mesma forma, as ações justas não originam
a justiça e as injustas, a injustiça?
Glauco Sim.
Sócrates Engendrar a saúde é estabelecer, conforme a natureza,
as relações de comando e submissão entre os diferentes
elementos do corpo; engendrar a doença é pennitir-llies comandar
ou ser comandados um pelo outro ao arrepio da natureza.
Glauco Isso está claro.
Sócrates Pela mesma razão, engendrar a justiça não significa
estabelecer, conforme a natureza, as relações de comando
e submissão entre os diferentes elementos da alma? E engendrar
a injustiça não significa permitir-lhes comandar ou ser comandados
um pelo outro ao arrepio da natureza?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Conseqüentemente, a virtude significa, julgo
eu, saúde, beleza, boa disposição de ânimo; e o vício, ao contrário,
signffica doença, feiúra, fraqueza.
Glauco Assim é.
Sócrates Mas as boas ações não levam à virtude e as
más, ao vício?
Glauco Necessariamente.
Sócrates Agora, só nos resta analisar se é conveniente
agirmos com justiça, dedicarmo-nos ao que é honesto e justo,
sejamos ou não reconhecidos como tais, ou praticarmos a injustiça
e sermos injustos, mesmo que não sejamos castigados e
o castigo não nos tome melhores.
Glauco Mas, Sócrates, julgo essa análise ridícula. Se a
vida parece insuportável quando acontece a ruína do corpo,
mesmo com todos os prazeres da mesa, com toda a riqueza e
todo o poder possíveis, com maior razão o é quando o seu
princípio é alterado e corrompido, mesmo que se tenha o poder
de fazer tudo o que se quer, salvo evitar o vício e a injustiça e
praticar a justiça e a virtude. Isto é, se as coisas forem exatamente
da maneira como as descrevemos.
Sócrates Esta análise seria de fato ridícula. No entanto,
uma vez que alcançamos um ponto de onde podemos divisar
com a maior clareza que é essa a verdade, não devemos desanimar.
Glauco Não, por Zeus, jamais devemos desanimar!
Sócrates Aproxima-te, pois, para descobrires sob quantas
formas se apresenta o vício. Ao menos, aquelas que, em
meu julgamento, merecem a nossa atenção.
Glauco Estou a seguir-te, mostre-as.
Sócrates Muito bem! Olhando as coisas do ponto de
observação em que nos encontramos, pois foi aqui que a discussão
nos trouxe, parece-me que existe uma única forma da
virtude e que as formas do vício são numerosas, embora apenas
quatro mereçam ser aqui analisadas.
Glauco Que queres dizer?
Sócrates Que talvez existam tantas espécies de almas
quantas forem as diversas formas de governo.
Glauco E quantas são?
Sócrates Cinco espécies de formas de governo e cinco
espécies de almas.
Glauco Indica-as, então.
Sócrates A forma de governo que nós expusemos é uma
delas, apesar de que seja possível designá-la por dois nomes.
Pois, se entre os magistrados há um homem que se sobrepõe
aos outros, chamamos esta forma de monarquia; se a autoridade
é compartilhada por vários homens, chamamos de aristocracia.
Glauco Exatamente.
Sócrates Mesmo assim, afirmo que se trata de uma única
espécie de constituição. Pois, quer o mando esteja nas mãos de
um só homem, quer nas de vários, isto não altera as leis fundamentais
da cidade, se estiverem vigorando os princípios de
educação e de instrução que nós descrevemos.
Glauco Totalmente coerente.
LIVRO V
SÓCRATES Repnto, pois, uma tal forma de governo
boa e correta, tanto para a cidade como para o homem, e julgo
as outras más e defeituosas, se aquela for correta, quer objetivem
a administração das cidades, quer a organização do caráter no
indivíduo. Estas formas de governo são representativas de quatro
modalidades de vícios.
Glauco De quais?
Eu ia apresentá-las pela ordem em que acredito que se
formam umas das outras, quando Polemarco, que se encontrava
sentado atrás de Adimantó, agarrou este último pelo ombro,
puxou-o pela túnica e, inclinando-se, falou-lhe em voz baixa
algumas palavras das quais só foi possível ouvir o seguinte:
Polemarco Vamos permitir que ele prossiga?
Adimanto De jeito nenhum!
Sócrates A quem vós não quereis permitir que prossiga?
Adimanto Só pode ser a ti.
Sócrates E por que motivo?
Adimanto Porque está a nos parecer que tu perdes o
ânimo, ocultando-nos uma parte importante do assunto, para
não seres obrigado a estudá-la, e que imaginas poder escaparnos
dizendo levianamente que, a respeito das mulheres e das
crianças, todos julgariam evidente que houvesse comunidade
entre os amigos.
Sócrates Por acaso eu não o disse, e com razão, Adimanto?
Adimanto Sim, certamente. Mas essa razão, como todo
o resto, necessita de explicações. Que caráter terá essa comunidade?
Pois há muitas possíveis. E necessário esclarecer qual
é aquela a que te queres referir. Faz muito tempo que aguardamos
que nos fales acerca da procriação dos filhos como
se processará e como, após o nascimento, eles deverão ser educados
e que expliques sobre a comunidade das mulheres e
das crianças a que te referes. Porque estamos convencidos de
que a resolução que será tomada a esse respeito acarretará importantes
conseqüências. Agora, que passas a examinar outra
forma de governo sem nos teres esclarecido satisfatoriamente
sobre estas questões, decidimos não te deixar prosseguir antes
que tenhas explicado tudo isto, da mesma forma que procedeste
com os outros assuntos.
Glauco Eu também estou de acordo com eles.
Trasímaco Como vês, Sócrates, é uma decisão unamme.
Sócrates Que discussão pretendeis levantar novamente
a respeito do governo d , como se ainda estivéssemos
no início?! Considerava-me satisfeito por havê-la terminado, feliz
por vós estardes satisfeitos com o que eu disse há pouco.
Ao levantardes essas questões, desconheceis que grande número
de discussões incitais! Eu percebi isso e o evitei há instantes,
temendo que fosse causar grandes embaraços.
Trasímaco Crês, então, que estes jovens vieram aqui
para derreter ouro1 e não para discutir assuntos relevantes?
Sócrates Certamente que para discutirem assuntos relevantes,
mas de duração limitada.
Glauco Para homens sensatos, tais discussões podem
durar a vida inteira. Mas não te preocupes conosco, nem te
canses de responder às nossas indagações, da forma que mais
te aprouver, e de nos dizer que gênero de comunidade será
estabelecido entre os nossos guardiães no que concerne às crianças
e às mulheres, e que educação será ministrada à infância
durante o período que vai do nascimento à educação propriamente
dita, tarefa esta que a mim parece a mais difícil de todas.
Procura mostrar-nos como é necessário agir.
Sócrates Eis aqui uma questão bastante difícil, meu bom
Glauco. Pois este assunto comporta muito mais inverossimilhanças
do que aquelas de que já tratamos. O nosso projeto
será por todos considerado irrealizável; e, mesmo supondo-se
[1 A expressão refere-se a um provérbio a respeito dos que negligenciavam um dever para
se dedicar a alguma ocupaçio inótil, porém atraente. ]
que venha a se realizar tão perfeitamente quanto possível, continuarão
a duvidar da sua superioridade. Por isso hesitei em
abordá-lo, meu caro amigo, temendo que o que eu dissesse pudesse
parecer uma vã aspiração.
Glauco Não hesites. Ouvir-te-ão pessoas que não são
nem tolas nem incrédulas, nem maldosas.
Sócrates O excelente amigo, falas assim para me
tranqüilizares?
Glauco Certamente.
Sócrates Pois tuas palavras me causam efeito diametralmente
oposto! Se eu falasse com conhecimento de causa, o
teu estímulo ser-meia útil; com efeito, abordar assuntos de tão
grande importância e qué nos preocupam, diante de pessoas
sensatas e amigas, só pode ser feito com segurança e confiança
quando se conhece a verdade; mas falar quando não se possui
tanta confiança, como acontece comigo neste instante, é assustador
e perigoso, não porque possa causar o riso em vós, este
temor seria infantil, mas porque, se eu me afastar da verdade,
arrastarei os amigos na queda, induzindo-vos a erro num caso
da mais alta importância. Por isso, inclino-me diante de Adrastéa,
1 Glauco, devido ao que vou dizer. Em minha opinião, aquele
que mata alguém acidentalmente comete um crime menor do
que aquele que induz alguém a erro a respeito de belas, boas
e justas leis. Além do mais, é preferível correr esse risco entre
inimigos do que entre amigos!
Glauco Se viermos a sofrer algum prejuízo por causa
da discussão, Sócrates, serás por nós absolvido do crime e
do engano de que formos vítimas! Por isso, arma-te de coragem
e fala.
Sócrates Não resta dúvida de que réu absolvido é inocente,
nos termos da lei. E então natural que, se assim é em tal
caso, também o seja neste.
Glauco Exatamente por isso, fala.
Sócrates Precisamos voltar atrás e dizer o que talvez
eu devesse ter dito na ocasião apropriada. Contudo, talvez seja
conveniente que, depois de havermos determinado com precisão
o papel dos homens, determinemos agora o das mulheres, principalmente
por ser isto que desejas. Para homens por natureza
e educação tais como os desaevemos, não existe, julgo eu, posse
e uso legítimos dos filhos e das mulheres senão pelo caminho
em que os orientamos no início. Pois, de certa maneira, procuramos
fazer deles os guardiães de um rebanho.
[1 Deusa grega da justiça]
Glauco Concordo.
Sócrates Prossigamos então com esta idéia; concedamos-
lhes, a respeito da procriação e da educação, regras especfficas
e, depois, vejamos se o resultado foi satisfatório ou não.
Glauco Como?
Sócrates Da seguinte maneira: somos da opinião de que
as fêmeas dos cães devem cooperar com os machos na atividade
da guarda, da caça e em todo o resto, ou que devem permanecer
no canil, incapazes de realizar outra coisa porque dão à luz e
alimentam os filhotes, enquanto os machos trabalham e assumem
toda a responsabilidade do rebanho?
Glauco Somos da opinião de que devem fazer tudo
em comum, com a ressalva de que, para as tarefas que deles
esperamos, consideremos as fêmeas mais fracas e os machos
mais fortes.
Sócrates Mas é possível exigir de um animal os mesmos
trabalhos exigidos de outro, se ele não tiver sido alimentado e
criado da mesma forma?
Glauco E impossível, naturalmente.
Sócrates Logo, se exigimos das mulheres os mesmos
serviços que dos homens, precisamos fornecer-lhes o mesmo
tipo de educação.
Glauco Com certeza.
Sócrates Nós ensinamos música e ginástica aos homens.
Glauco É verdade.
Sócrates Conseqüentemente, deve-se ensinar estas duas
artes às mulheres, e também o que concerne à guerra, e exigirlhes
os mesmos desempenhos.
Glauco Isso é decorrência do que estás dizendo.
Sócrates É possível, porém, que, no que diz respeito ao
uso transmitido, várias dessas coisas pareçam ridículas, se passarmos
da palavra à ação.
Glauco Certamente.
Sócrates E qual tu julgas mais ridícula? Com certeza,
1 é o fato de as mulheres se exercitarem nuas nos ginásios, junto
com os homens, e não apenas as jovens, mas também as velhas,
da mesma forma que esses velhos, enrugados e de aspecto pouco
agradável, que continuam com seus exercícios de ginástica.
Glauco Por Zeus! Seria por demais ridículo, ao menos
de acordo com os nossos costumes!
Sócrates No entanto, já que estamos discutindo isso,
não devemos temer o riso dos gracejadores, que falam mal de
tudo e todos, quando houver uma tal mudança no que concerne
aos exercícios do corpo, à música e, principalmente, ao porte
das armas e à equitação?
Glauco Tens razão.
Sócrates Então, visto que já entramos no assunto, precisamos
avançar até as dificuldades que a lei apresenta, após
termos pedido aos gracejadores que renunciem ao seu papel e
sejam sérios e lhes termos lembrado que não está distante o
tempo em que os gregos acreditavam, como ainda acredita a
maioria dos bárbaros, que a visão de um homem nu é um espetáculo
vergonhoso e ridículo; e que, quando os exercícios de
ginástica foram praticados pela primeira vez pelos aetenses,
depois pelos lacedemônios, os cidadãos de então tiveram a oportunidade
de zombar de tudo isso. Não crês?
Glauco Sim, creio.
Sócrates Mas quando lhes pareceu que era mais conveniente
estar nu do que vestido ao praticar todos esses exercícios,
o que lhes parecia ridículo na nudez foi eliminado pela
razão, que acabava de descobrir onde estava o melhor. E isso
provou como é insensato aquele que julga ridícula outra coisa
que não seja o mal, que tenta excitar o riso tomando para objeto
das suas zombarias outro espetáculo que não seja a loucura e
a perversidade ou que busque com seriedade um objetivo de
beleza que seja diferente do bem.
Glauco Nada mais certo.
Sócrates Mas não precisamos começar por reconhecer
a possibilidade ou não do nosso projeto e permitir a quem quiser,
homem zombeteiro ou sisudo, que ponha em discussão se,
na raça humana, a fêmea é capaz de realizar todos os trabalhos
do macho, ou nenhum, ou então alguns e não outros, e perguntar
a qual destas classes pertencem as atividades da guerra? Um
tão belo início não nos levaria à mais bela das conclusões?
Glauco Evidentemente que sim.
Sócrates Queres que sejamos nós a iniciar a discussão,
a fim de não sitiar uma fortaleza deserta?
Glauco Nada nos impede.
Sócrates Falemos, então, como falariam os nossos adversários:
Ó Sócrates e Glauco, não é necessário que outros
vos façam objeções; efetivamente, vós mesmos admitistes, ao
lançardes os alicerces da vossa cidade, que cada um devia dedicar-
se apenas à única tarefa adequada à sua natureza.
Glauco Sim, admitimos.
Sócrates E possível que o homem não seja tão diferente
da mulher por natureza?
Glauco Como não poderia ser tão diferente?
Sócrates Portanto, é conveniente estipular a cada um
uma tarefa diferente, de acordo com a sua natureza.
Glauco Com certeza.
Sócrates Então, não estareis agora enganados e não caireis
em contradição ao afirmardes que homens e mulheres devem
desempenhar as mesmas tarefas, embora tenham naturezas
bem diferentes? Poderás, meu grande amigo, responder alguma
coisa a isto?
Glauco Assim de repente, não é fácil; mas terei de te
pedir que escLareças também o signfficado, qualquer que seja,
da nossa tese.
Sócrates Essas dificuldades, Glauco, e muitas outras semelhantes,
eu as previ há muito tempo: era por isso que hesitava
em abordar a lei a respeito da posse e da educação das mulheres
e das crianças.
Glauco Por Zeus! Não é coisa fácil!
Sâcrates Claro que não. Mas, na verdade, um homem
pode cair numa piscina ou no mar, embora nem por isso deixe
de nadar.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Nós também devemos nadar e tentar sair incólumes
da discussão, fortalecidos pela esperança de que talvez
encontremos um golfinho para nos carregar ou algum outro
meio de salvação!
Glauco Assim parece.
Sócrates Vejamos então se encontramos uma saída.
Concordamos em que uma diferença de natureza acarreta
uma diferença de funções, e, também, que a natureza da mulher
difere da do homem. E, agora, pretendemos que naturezas
diferentes devem desempenhar as mesmas funções. Não
é disto que nos acusam?
Glauco Sim, é.
Sócrates Na verdade, Glauco, a arte da controvérsia
tem um maravilhoso poder!
Glauco Por quê?
Sócrates Porque muitas pessoas se deixam levar por
ela e julgam raciocinar quando questionam. Isto por serem incapazes
de analisar o seu tema nos seus diferentes aspectos:
tiram-lhe contradições aparentes agarrando-se apenas às palavras
e utilizam-se da contestação, e não da dialética.
Glauco De fato, é como agem muitas pessoas. Será o
nosso caso na presente questão?
Sócrates Exatamente; corremos o risco de, sem o querermos,
termos sido levados pela argumentação.
Glauco Como assim?
Sócrates Insistimos em dizer que naturezas diferentes
nao devem ter os mesmos empregos, ao passo que de forma
alguma analisamos de que espécie de natureza diferente e de
natureza própria se trata, nem sob que relação as diferenciávamos
quando atribuímos às naturezas diferentes funções diferentes
e às naturezas próprias funções idênticas.
Glauco Realmente, não analisamos.
Sócrates Portanto, podemos indagar se a natureza dos
calvos e a dos cabeludos são idênticas e, depois de termos concluído
que são opostas, proibir os cabeludos de exercerem o
oficio de sapateiro, no caso de os calvos o exercerem, e, reciprocamente,
aplicar a mesma proibição aos calvos, se forem os
cabeludos a exercê-lo.
Glauco Isso seria ridículo!
Sócrates Sim, mas seria ridículo por uma razão diferente:
na exposição do nosso princípio, não pensávamos em naturezas
absolutamente idênticas ou diferentes; não considerávamos senão
essa forma de diferença ou de identidade que se refere aos
empregos em si mesmos. Afirmávamos, por exemplo, que o
médico e o homem com aptidão para a medicina possuem a
mesma natureza, não é verdade?
Glauco É verdade.
Sócrates E que um médico e um carpinteiro possuem
natureza diferente.
Glauco Exato.
Sócrates Logo, se chegarmos à conclusão de que os dois
sexos diferem entre si quanto à sua aptidão para determinada
função, diremos que se deve atribuir essa função a um ou a
outro; porém, se a diferença consistir apenas no fato de ser a
fêmea a parir e não o macho, não admitiremos por isso como
demonstrado que a mulher difere do homem na relação que
nos ocupa e continuaremos a pensar que os guerreiros e as
suas mulheres devem exercer as mesmas atividades.
Glauco E não estaremos equivocados.
Sócrates Depois disso, pediremos ao nosso opositor que
nos ensine qual é a atividade, relativamente ao serviço da cidade,
para cujo exercício a natureza da mulher difere da do homem.
Glauco Concordo com esse pedido.
Sócrates E possível que nos digam, como tu fizeste há
pouco, que não é fácil responder imediatamente de modo satisfatório,
mas que, depois de um exame, não é difícil.
Glauco Sim, é possível.
Sócrates Então, pretendes que peçamos ao nosso opositor
que nos acompanhe, enquanto tentamos provar-lhe que
não existe nenhum emprego exclusivo da mulher no que concerne
à administração da cidade?
Glauco Com certeza.
Sócrates Então, perguntar-lhe-emos: quando declaras
que um homem é habilitado para uma coisa e outro inabiitado,
queres dizer que o primeiro a aprende facilmente e o segundo
com dificuldade? Que um, depois de um breve estudo, leva as
suas descobertas muito além do que aprendeu, enquanto o outro,
com muito estudo e aplicação, nem ao menos salva o saber
recebido? Que no primeiro, as disposições do corpo favorecem
o espírito e no segundo o prejudicam? Existem outros sinais
além destes que te permitam distinguir o homem habilitado
para seja o que for daquele que não o é?
Glauco Ninguém afirmará que existem outros.
Sócrates Tens conhecimento de alguma atividade humana
em que os homens não sobrepujem as mulheres? Estenderemos
o nosso discurso mencionando a tecelagem, a confeitaria
e a cozinha, trabalhos que parecem apropriados às mulheres
e em que a inferioridade dos homens é altamente ridícula?
Glauco Estás certo ao afirmares que em tudo os homens
sobrepujam as mulheres. No entanto, muitas mulheres são superiores
a muitos homens, em muitas atividades. Porém, em
geral, é como dizes.
Sócrates Conseqüentemente, meu amigo, não há nenhuma
atividade que conceme à administração da cidade que
seja própria da mulher enquanto mulher ou do homem enquanto
homem; ao contrário, as aptidões naturais estão igualmente
distribuídas pelos dois sexos e é próprio da natureza que a
mulher, assim como o homem, participe em todas as atividades,
ainda que em todas seja mais fraca do que o homem.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Concederemos, então, todas as atividades aos
homens e nenhuma às mulheres?
Glauco Como fazer isso?
Sócrates Mas existem mulheres que têm uma disposição
inata para a medicina ou para a música e outras que não têm.
Glauco Com certeza.
Sócrates E não existem as que possuem uma disposição
inata para a ginástica e para a guerra e outras que não apreciam
nem a guerra nem a ginástica?
Glauco Creio que sim.
Sócrates Muito bem! Não existem mulheres que amam
e outras que odeiam a sabedoria? Não existem algumas que
são ardorosas e outras sem ardor?
Glauco Sim, existem.
Sócrates Logo, existem mulheres que são aptas para a
guerra e outras que não são. Ora, não escolhemos homens dessa
natureza para tomá-los nossos guerreiros?
Glauco Sim, escolhemos.
Sócrates Portanto, a mulher e o homem possuem a mesma
natureza no que cotrerne à sua aptidão para proteger a cidade,
sem esquecer que a mulher é mais fraca e o homem mais forte.
Glauco Assim parece.
Sócrates Conseqüentemente, temos de escolher mulheres
semelhantes aos nossos guerreiros. que viverão com eles e
com eles protegerão a cidade, visto que são capazes disso e as
suas naturezas são semelhantes.
Glauco Não há dúvida.
Sócrates Mas não se devem atribuir as mesmas atividades
às mesmas naturezas?
Glauco Sim.
Sócrates Percebemos, então, que o caminho percorrido
nos reconduz ao ponto de partida e concluímos que não é contrário
à natureza sujeitar as mulheres dos nossos guerreiros à
música e à ginástica.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Dessa maneira, a lei que estabelecemos não é
nem impossível nem um desejo vão, visto que está de acordo
com a natureza. Muito pelo contrário, são as normas atualmente
estabelecidas que vão de encontro à natureza.
Glauco E o que parece.
Sócrates Mas não decidimos analisar se a nossa instituição
era possível e desejável?
Glauco Sim, decidimos.
Sócrates Ora, concluímos que é possível.
Glauco Concluímos.
Sócrates Em seguida, precisamos nos convencer de que
é desejável.
Glauco Evidentemente.
Sócrates A educação que formará as mulheres para o
exercício da guerra não será diferente da que forma os homens,
não é mesmo? Principalmente se seu objetivo for cultivar naturezas
idênticas.
Glauco Não será diferente.
Sócrates Muito bem! Qual é a tua opinião sobre isto?
Glauco Sobre o quê?
Sócrates Admites que um homem pode ser melhor e
outro pior ou considera-os todos iguais?
Glauco De forma alguma os considero iguais.
Sócrates E, na cidade que fundamos, quais são, na
tua opinião, os melhores: os guerreiros que receberam a educação
por nós descrita ou os sapateiros que foram instruídos
na arte do calçado?
Glauco A tua pergunta é ridícula!
Sócrates Mas os guerreiros não formam a elite dos
cidadãos?
Glauco Formam.
Sócrates E as guerreiras não serão a elite das mulheres?
Glauco Sim, também.
Sócrates E existe para uma cidade coisa mais valiosa
do que possuir os melhores homens e as melhores mulheres?
Glauco Não.
Sócrates Mas isso não será o resultado da música e da
ginástica aplicadas da forma que estipulamos?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Isto significa que estabelecemos uma lei não
apenas possível, mas também desejável para a cidade.
Glauco Sim.
Sócrates Desta forma, as mulheres dos nossos guerreiros
abandonarão as suas roupas, pois a sua virtude as substituirão;
participarão da guerra e de todas as atividades relacionadas
com a defesa da cidade, sem se ocupar de outra coisa. No serviço,
atribuir-lhes-emos apenas a parte mais leve, devido à fraqueza
de seus músculos. E a respeito daqueles que zombam
das mulheres nuas, quando estiverem treinando para um
jetivo superior, não sabem do que zombam nem o que fazem.
De fato, devemos sempre afirmar que o útil é belo e que só o
nocivo é vergonhoso.
Glauco Tens toda a razao.
Sócrates Podemos afirmar que esta disposição da lei a
respeito das mulheres é como uma onda a que acabamos de
escapar a nado. E não só conseguimos não submergir ao decidirmos
que os nossos guerreiros e as nossas guerreiras devem
fazer tudo em comum, mas também o nosso discurso demonstra
que isso é ao mesmo tempo possível e vantajoso.
Glauco Realmente, não é pequena a onda a que acabas
de escapar!
Sócrates Não a julgarás grande quando vires a que vem
em seguida.
Glauco Mostra-ma, então.
Sócrates Penso que a essa lei e às precedentes se
segue esta.
Glauco Qual?
Sócrates Todas as mulheres dos nossos guerreiros pertencerão
a todos: nenhuma delas habitará em particular com
nenhum deles. Da mesma maneira, os filhos serão comuns e
os pais não conhecerão os seus filhos nem estes os seus pais.
Glauco Esta é uma coisa bem mais inverossímil que o
resto e que dfficilmente será considerada possível e vantajosa!
Sócrates Não creio que se possa contestar, no que se
refere à vantagem, que a comunidade das mulheres e dos filhos
seja um bem enorme, se for realizável; mas penso que, a respeito
da sua exeqüibilidade, pode surgir profunda contestação.
Glauco Um e outro aspecto podem muito bem ser
contestados.
Sócrates Estás querendo dizer que serei obrigado a
enfrentar uma série de obstáculos. E eu que esperava evitar
um, se tu reconhecesses a vantagem, e ter de discutir apenas
a possibilidade!
Glauco Sim, mas não soubeste mascarar a tua evasiva.
Portanto, explica estes dois pontos.
Sócrates Vejo que não bá como fugir. Concede-me, porém,
este favor: deixa que me despeça como esses preguiçosos
que costumam se alimentar dos seus próprios pensamentos
quando caminham sozinhos. Com efeito, esta espécie de pessoas
nao espera descobrir por que meios obterão o que desejam:
rejeitando esta preocupação, a fim de não se fatigarem a deliberar
sobre o possível e o impossível, supõem que possuem o
que querem, arranjam o resto como lhes agrada e comprazem-se
em enumerar tudo o que farão depois do êxito, tomando assim
a sua alma, já sobremaneira preguiçosa, ainda mais preguiçosa.
Muito bem! Também eu me rendo à preguiça e pretendo prorrogar
para mais tarde a questão de saber como o meu projeto
é exeqüível. Para o momento, julgo-o exeqüível e vou analisar,
se me permites, as atitudes que tomarão os magistrados quando
ele for aplicado e provar que nada será mais vantajoso do que
a sua aplicação para a cidade e para os guerreiros. E isto o que
tentarei analisar contigo, em primeiro lugar; veremos em seguida
a outra questão, se concordares.
Glauco Claro que concordo. Começa.
Sócrates Acredito que os magistrados e os seus auxiliares,
se forem dignos de seus nomes, quererão, estes, fazer
o que lhes for mandado, e aqueles, mandar, conformando-se
às leis ou inspirando-se nelas nos casos que deixarmos à sua
ponderação. -
Glauco E natural.
Sócrates Logo, tu, o seu legislador, da mesma forma
que escolheste os homens, escolherás as mulheres, reunindo tanto
quanto possível as naturezas semelhantes. Ora, aquelas e
aqueles que tiveres escolhido, tendo domicilio comum, tomando
em comum as suas refeições e não possuindo nada de seu, estarão
sempre juntos; e, encontrando-se misturados nos exercícios
do ginásio e em tudo o que concerne ao resto da educação,
serão levados por uma necessidade natural a formar uniões.
Não julgas isto necessário?
Glauco Não uma necessidade geométrica, mas amorosa,
que é mais forte do que a primeira para convencer e conduzir
a massa dos homens.
Sócrates Tens razão. Mas, Glauco, formar uniões ao acaso
ou cometer erros do mesmo género seria uma impiedade
numa cidade feliz, e os líderes não a suportariam.
Glauco Com certeza não seria justo.
Sócrates E então evidente que, depois disto, celebraremos
casamentos tão sagrados quanto pudermos. E os mais sagrados
serão os mais vantajosos.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Mas como serão os mais vantajosos, Glauco?
Vejo na tua casa cães de caça e um grande número de nobres
aves. Por Zeus! Prestaste alguma atenção às suas uniões e à
maneira como procriam?
Glauco Que queres dizer?
Sócrates Em primeiro lugar, entre esses animais, embora
todos sejam de boa raça, não existem aqueles que são ou se
tomam superiores aos outros?
Glauco Existem.
Sócrates Pretendes ter filhotes de todos ou só te interessa
ter dos melhores?
Glauco Dos melhores.
Sócrates Dos mais novos, dos mais velhos ou dos que
estão na flor da idade?
Glauco Dos que estão na flor da idade.
Sócrates E não crês que, se a procriação não se realizasse
dessa maneira, a raça dos teus cães e das tuas aves
degeneraria muito?
Glauco É verdade.
Sócrates Mas qual é a tua opinião sobre os cavalos e
os outros animais? O que acontece com eles é diferente?
Glauco Não. Pois seria absurdo.
Sócrates Meu caro amigo! De que extraordinária superioridade
deverão ser possuidores os nossos líderes, se o mesmo
se passar em relação à raça humana!
Glauco Sem dúvida que se passa o mesmo. Mas por
que dizes isso?
Sócrates Porque eles necessitarão empregar uma grande
quantidade de remédios. Ora, um médico medíocre parece-
nos bastar quando a doença não exige remédios e é passível
de ceder apenas com um simples regime; ao contrário, quando
exige remédios, sabemos que é necessário um médico mais
capacitado. -
Glauco É verdade. Mas aonde pretendes chegar?
Sócrates A isto: é possível que os nossos governantes
se vejam obrigados a empregar largamente a mentira e o engano
para o bem dos governados; e já afirmamos que tais práticas
eram úteis sob a forma de remédios.
Glauco E afirmamos uma coisa correta.
Sócrates E essa coisa será muito mais correta no que
conceme aos casamentos e à proaiação dos filhos.
Glauco Como assim?
Sócrates De acordo com os nossos princípios, é necessário
tornar as relações muito freqüentes entre os homens e as
mulheres de elite, e, ao contrário, bastante raras entre os indivíduos
inferiores de um e outro sexo; além do mais, é necessário
educar os filhos dos primeiros, e não os dos segundos, se quisermos
que o rebanho atinja a mais elevada perfeição: e todas
estas medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistrados,
a fim de que, tanto quanto possível, a discórdia não s~
insinue entre os guerreiros.
Glauco Muito bem.
Sócrates Assim, proporcionaremos festividades onde
reuniremos noivos e noivas, com acompanhamento de sacrifícios
e hinos, que os nossos poetas comporão em honra dos
casamentos celebrados. A respeito do número de casamentos,
deixaremos aos magistrados a incumbência de fixá-lo, de forma
que mantenham o mesmo número de homens tendo em conta
as perdas causadas pela guerra, as doenças e outros acidentes
e que a nossa cidade, na medida do possível, não aumente
nem diminua-1
Glauco Está certo.
Sócrates Organizaremos uma engenhosa modalidade
de sorteio, para que os indivíduos medíocres que forem recusados
acusem, a cada união, a sorte, e não os magistrados.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates A respeito dos jovens que se tiverem distinguido
na guerra ou em outra atividade, conceder-lhes-emos,
além de outros privilégios e recompensas, uma maior liberdade
de se unirem às mulheres, a fim de que a maioria das crianças
possam ser geradas por eles.
Glauco Tens razão.
Sócrates As crianças, à medida que forem nascendo,
serão entregues a pessoas encarregadas de cuidar delas, homens,
mulheres ou homens e mulheres juntos, pois as responsabilidades
são comuns aos dois sexos.
Glauco Estou de acordo.
Sócrates Estes encarregados levarão os filhos dos indivíduos
de elite a um lar comum, onde serão confiados a amas
que residem à parte, num bairro da cidade. Para os filhos dos
indivíduos inferiores e mesmo os dos outros que tenham alguma
deformidade, serão levados a paradeiro desconhecido e secreto.
Glauco E um meio seguro de preservar a pureza da
raça dos guerreiros.
Sócrates Cuidarão também da alimentação das crianças,
levarão as mães ao lar comum, na época em que os seus seios
estiverem repletos de leite, e utilizarão todos os meios possíveis
para que nenhuma delas reconheça a sua prole. Se as mães não
chegarem para a amamentação, procurarão outras mulheres
para esse oficio. Em todos os casos, cuidarão para que elas só
amamentem durante um certo período de tempo e encarregarão
das vigílias e de todo o trabalho difícil as amas e as governantas.
Glauco Tomas a maternidade muito fácil às mulheres
dos guerreiros.
Sócrates E conveniente que o seja. Mas continuemos na
exposição do nosso projeto. Afirmamos que a procriação dos
filhos deveria fazer-se na flor da idade.
Glauco É verdade.
Sócrates Mas não achas que a duração média da flor
da idade é de vinte anos para as mulheres e trinta para os
homens?
Glauco Como estipulas esse tempo para cada sexo?
Sócrates A mulher parirá para a cidade dos vinte aos
quarenta anos; o homem gerará para a cidade até os cinqüenta
e cinco anos.
Glauco Realmente, tanto para um como para outro, é
o período de maior vigor do corpo e do espírito.
Sócrates Assim, se um cidadão, mais velho ou mais
novo, se inúscuir na obra comum de procriação, nós o declararemos
culpado de impiedade e injustiça, pois fornece ao Estado
um filho cujo nascimento secreto não foi colocado sob a
proteção das preces e sacrifícios que as sacerdotisas, os sacerdotes
e toda a cidade oferecerão para cada casamento, a fim
de que de homens bons nasçam filhos melhores, e de homens
úteis, filhos ainda mais úteis; um tal nascimento, ao contrário,
será considerado fruto das trevas e da libertinagem.
Glauco Está certo.
Sócrates A mesma lei será aplicada àquele que, ainda
na idade da formação, tocar numa mulher também nessa idade,
sem que o magistrado os tenha unido. Declararemos que um
homem assim introduz na cidade um bastardo cujo nascimento
não foi nem autorizado, nem santfficado.
Glauco Muito bem.
Sócrates Porém, quando para um e outro sexo houver
passado a idade da procriação, deixaremos os homens livres
de se ligarem a quem quiserem, exceção feita às filhas, às mães,
às netas e às avós. Igual liberdade terão as mulheres em relação
aos homens, exceto com seus avós, com seus pais, com seus
filhos e com seus netos. Conceder-lhes-emos esta liberdade após
haver-lhes recomendado que tomem todas as precauções possíveis
para que nenhum filho fruto dessas uniões veja a luz do
dia, e, se houver algum que abra caminho à força para a vida,
que os enjeitem, pois a cidade não se encarregará de alimentá-lo.
Glauco As tuas palavras são ponderadas, mas como
reconhecerão os seus pais, as suas filhas e os outros parentes
a que acabas de te referir?
Sócrates Não os reconhecerão. Mas todos os filhos que
nascerem do sétimo ao décimo mês, a partir do dia em que um
guerreiro contrair matrimónio, serão chamados por ele, os do
sexo masculino, de filhos, os do sexo feminino, de filhas, e eles
o chamarão de pai; chamará netos aos filhos destes; e eles chamarão
de avó a ele e aos seus companheiros de casamento, e
chamarão de avós às suas companheiras. Por fim, todos os que
tiverem nascido no tempo em que os seus pais e as suas mães
forneciam filhos à cidade tratar-se-ão de irmãos e irmãs, de
maneira a evitar que, como já dissemos, contraiam uniões entre
si. Contudo, a lei permitirá que irmãos e irmãs se unam se tal
casamento for acertado pelo sorteio e, além disso, aprovado
pela sacerdotisa.
Glauco Muito bem.
Sócrates Será assim, Glauco, a comunidade das mulheres
e dos filhos entre os guerreiros da tua cidade. Que esta comunidade
se harmonize com o resto da constituição e seja altamente
desejável, eis o que o nosso discurso deve agora demonstrar,
não é assim?
Glauco E, por Zeus!
Sócrates Ora, como ponto de partida do nosso acordo,
não devemos perguntar a nós mesmos qual é, na organização
de uma cidade, o maior bem, aquele que o legislador deve visar
ao elaborar as suas leis, e qual é também o maior mal? Em
seguida, não se deve examinar se a comunidade que acabamos
de descrever nos orienta para esse grande bem e nos afasta
desse grande mal?
Glauco Concordo plenamente.
Sócrates Mas há maior mal para uma cidade do que
aquele que a divide e a torna múltipla em vez de una? Há
maior bem do que aquele que a une e toma una?
Glauco Não.
Sócrates Muito bem! A união de prazer e dor não é um
bem na cidade, quando, na medida do possível, todos os cidadãos
se alegram ou sofrem igualmente com os mesmos acontecimentos,
felizes ou infelizes?
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates E não é o egoísmo destes sentimentos que a
divide, quando alguns se afligem e os outros se alegram, por
ocasião dos mesmos acontecimentos públicos ou particulares?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E isso não é devido ao fato de os cidadãos não
serem unhnimes em pronunciar estas frases: isto me diz respeito,
isto não me diz respeito, isto não tem nada a ver comigo?
Glauco Sem sombra de dúvida.
Sócrates Por conseguinte, a cidade onde a maioria dos
cidadãos diz, no que concerne às mesmas coisas: isto me diz
respeito, isto não me diz respeito, esta cidade está excelentem
ente organizada?
Glauco Com certeza que sim.
Sócrates E ela não se comporta como um único homem?
Eu explico: quando um dos nossos dedos recebe um ferimento,
a comunidade do corpo e da alma, que forma uma única organização,
experimenta uma sensação; totalmente e ao mesmo
tempo sofre com uma das suas partes: por isso dizemos que o
homem tem dores no dedo. Acontece a mesma coisa com qualquer
outra parte do homem, quer se trate do mal-estar causado
pela dor, quer do bem-estar que provoca o prazer;
Glauco De fato, acontece a mesma coisa. E a imagem
perfeita que buscavas do Estado bem governado.
Sócrates Então, se a um cidadão acontecer um bem ou
um mal qualquer, será principalmente uma cidade assim que
experimentará como sendo seus os sentimentos que ele experimentar
e ela, como um todo, compartilhará a sua alegria ou
a sua tristeza.
Glauco E assim que deve ser numa cidade bem administrada
e com boas leis.
Sócrates Agora, voltemos à nossa cidade e analisemos
se as conclusões a que chegamos se aplicam especificamente a
ela ou se se aplicam, de preferência, a outra cidade qualquer.
Glauco Certo. E assim que devemos fazer.
Sócrates Nas outras cidades não existem magistrados
e povo como na nossa?
Glauco Existem.
Sócrates E todos se tratam por cidadãos?
Glauco Claro que sim.
Sócrates Nas outras cidades, além de cidadãos, que
nome em especial dá o povo àqueles que o governam?
Glauco A maioria os chama de senhores e, nos governos
democráticos, arcontes.
Sócrates E na nossa cidade? Que outros nomes, além
de cidadãos, dará o povo aos lideres?
Glauco Os de conservadores e de defensores da pátria.
Sócrates Por seu lado, como estes últimos considerarão
o povo?
Glauco Como a quem lhes proporciona os salários e o
sustento.
Sócrates Mas, nas outras cidades, como os líderes tratam
o povo?
Glauco Como escravos.
Sócrates E como se tratam entre si aqueles que governam?
Glauco Como colegas na autoridade.
Sócrates E na nossa cidade?
Glauco Como guardiães do mesmo povo.
Sócrates Diz-me se, nas outras cidades, os líderes tratam
como amigo um de seus colegas e como estranho um outro.
Glauco Muitos agem dessa forma.
Sócrates Logo, pensam e dizem que se preocupam com
os interesses do a migo e não com os do estranho.
Glauco É verdade.
Sócrates E entre os teus guerreims? Existe algum que
possa pensar ou dizer de um dos seus colegas que lhe é estranho?
Glauco De forma alguma, pois cada um verá nos outros
um irmão ou uma irmã, um filho ou uma filha ou qualquer
outro parente na linha ascendente ou descendentc
Sócrates Excelente. Agora, responde a isto: legislarás
apenas para que eles troquem entre si nomes de parentesco ou
para que todos os seus atos estejam de acordo com esses nomes,
para que exprimam aos seus pais todos os deveres de respeito,
solicitude e obediência que a lei prescreve em relação aos pais
sob pena de incorrer no ódio dos deuses e dos homens, se agirem
de modo diferente? Com efeito, agir de modo diferente é cometer
uma impiedade e uma injustiça. São estas máximas ou outras que
todos os teus cidadãos ensinarão às crianças, falando-lhes dos seus
pais, que lhes mostrarão, e dos outros parentes?
Glauco Serão essas. Seria ridículo que proferissem
esses nomes de parentesco sem cumprir os deveres que eles
implicam.
Sócrates Assim, em noss , mais de que em todas
as outras, os cidadãos proferirão em uníssono, quando acontecer
algum bem ou mal a um deles, as nossas frases de há pouco: os
meus negócios vão bem ou os meus negócios vão mal.
Glauco Nada mais verdadeiro.
Sócrates Mas não afirmamos que, em decorrência desta
convicção e desta maneira de falar, haveria entre eles uma identidade
de alegrias e de tristezas?
Glauco Sim, e o afirmamos com acerto.
Sócrates Os nossos cidadãos estarão unidos naquilo que
considerarão o seu próprio interesse e, assim unidos, experimentarão
alegrias e tristezas em perfeita comunhão.
Glauco Isso mesmo.
Sócrates A que atribuir efeitos tão admiráveis senão à
constituição da noss e, especialmente, à comunidade
das mulheres e dos filhos estabelecida entre os guerreiros?
Glauco Não há dúvida de que esse será o principal
motivo.
Sócrates Mas nós concluímos que essa comunhão de
interesses representava o maior bem para a cidade, quando comparávamos
uma cidade sabiamente organizada ao corpo, na forma
como este se comporta em relação a uma de suas partes,
no que concerne ao prazer e à dor.
Glauco E concluímos acertadamente.
Sócrates Portanto, está provado que a causa do maior
bem que pode acontecer na cidade é a comunidade das crianças
e das mulheres dos guerreiros.
Glauco Com certeza.
Sócrates Convém acrescentar que estamos de acordo
com o que estabelecemos anteriormente. Com efeito, dissemos
que os nossos guerreiros não deviam possuir nem casas, nem
terras, nem qualquer outra propriedade, mas que deviam receber
seu sustento dos outros cidadãos, vivendo vida comum, se
quiserem ser guerreiros autênticos.
Glauco Muito bem.
Sócrates Então, não tenho razão para afirmar que as
nossas disposições anteriores, juntamente com as que acabamos
de tomar, farão deles guerreiros ainda mais autênticos e os impedirão
de dividir a cidade, o que aconteceria se cada um não
chamasse de suas as mesmas coisas, mas a coisas diferentes?
Se, morando separadamente, levassem para as suas respectivas
casas tudo aquilo de que pudessem garantir a posse exclusiva?
E se, tendo mulher e filhos diferentes, imaginassem alegrias e
tristezas pessoais ao passo que, com uma crença idêntica a
respeito do que lhes pertence, terão todos o mesmo objetivo e
experimentarão, tanto quanto possível, as mesmas alegrias e as
mesmas tristezas?
Glauco E inegável.
Sócrates Pois bem! Não desaparecerão processos e acusações
em uma cidade onde cada um só terá de seu o próprio
corpo e onde todo o resto será comum? Não decorre daqui que
os nossos cidadãos estarão ao abrigo das discórdias causadas
pela posse de riquezas, filhos e parentes?
Glauco E obrigatório que estejam livres de todos esses males.
Sócrates Além disso, nenhuma ação violenta será intentada
entre eles, pois nós lhes diremos que é nobre e justo
que iguais se defendam mutuamente e os convenceremos a velar
pela sua segurança pessoal.
Glauco Está certo.
Sócrates Esta lei possui ainda esta vantagem: quando um
cidadão se irritar com outro, se acalmar a sua cólera desta maneira,
será menos propenso, em seguida, a agravar a contenda.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E daremos ao mais velho autoridade sobre os
mais novos, com o direito de punir.
Glauco Evidentemente.
Sócrates E os jovens não tentarão, sem autorização dos
magistrados, usar de violência para com os mais velhos, nem
feri-los; também não os ofenderão de qualquer outra maneira.
pois dois guardas serão suficientes para os impedir: o medo e
o respeito; o respeito, mostrando-lhes um pai na pessoa que
querem ferir, o medo, fazendo-lhes compreender que os outros
irão em socorro da vítima, estes como filhos, aqueles como irmãos
ou pais.
Glauco Não pode ser diferente.
Sócrates Portanto, graças às nossas leis, os guerreiros
desfrutarão entre si de uma paz perfeita.
Glauco De uma grande paz, sem dúvida.
Sócrates Porém, se viverem em concórdia, não é de
temer que a discórdia se interponha entre eles e os outros odadãos
ou que divida estes últimos?
Glauco Certamente que nao.
Sócrates Não vale a pena analisar os males menores de
que estarão isentos: pobres, não terão necessidade de lisoniear
os ricos; não conhecerão as dfficuldades e os aborrecimentos
de criar filhos, de juntar fortuna, e os que decorrem da obrigação
de precisarem sustentar escravos; não necessitarão pedir emprestado,
nem renegar as dívidas, nem conseguir dinheiro por
todos os meios para o darem às mulheres e servidores, confiando-
lhes o cuidado da casa; enfim, meu amigo, ignorarão
todos os males que se suportam nestes casos, males evidentes..
sem nobreza e indignos de serem citados.
Glauco De fato, evidentes até mesmo para um cego.
Sócrates Ficarão livres de todas essas misérias e levarão
uma vida mais feliz que a vida bem-aventurada dos campeões
olímpicos.
Glauco Como?
Sócrates Os campeões olímpicos só desfrutam uma pequena
parte da felicidade reservada aos nossos guerreiros. A
vitória destes é mais bela e a sorte que o Estado lhes assegura.
mais perfeita. A sua vitória é a salvação de toda a cidade e,
como laurel, recebem, eles e os seus filhos, o alimento e tudc
o que é necessário à existência; enquanto viverem, a cidade
confere-lhes privilégios e, depois da morte~. terão uma sepultura
digna deles.
Glauco São belíssimas recompensas.
Sócrates Lembras-te de que alguém nos censurou há
pouco por desprezarmos a felicidade dos nossos guerreiros, os
quais, podendo possuir todos os bens dos outros cidadãos, não
possuíam nada de seu? Respondemos, penso eu, que voltadamos
a analisar essa censura, se surgisse a oportunidade; que,
de momento, pretendíamos formar guerreiros autênticos, tomar
a cidade tão feliz quanto possível e não proporcionar a felicidade
a apenas uma das classes que a compoem.
Glauco Lembro-me disso.
Sócrates Agora, que a vida dos guerreiros nos parece
mais agradável e melhor do que a dos campeões olímpicos,
poderemos considerá-la, sob qualquer aspecto, comparável à
vida dos sapateiros, dos outros artesãos ou dos agricultores?
Glauco Creio que não.
Sócrates Convém repetir aqui o que então dizia: se o
guerreiro buscar uma felicidade que faça dele algo diferente de
um guerreiro; se uma condição modesta porém estável, e que
é, julgamos nós, a melhor, não lhe bastar; se uma opinião louca
e infantil o levar, por dispor do poder, a apoderar-se de tudo
na cidade, saberá quanta verdadeira sabedoria demonstrou Hesíodo
ao dizer que a metade é mais que o todo.
Glauco Se quiser crer em mim, manter-se-á na sua
condição.
Sócrates Então aprovas que haja comunidade entre mulheres
e homens, tal como a propusemos, no que concerne à
educação, aos filhos e à proteção dos outros cidadãos? Admites
que as mulheres, quer fiquem na cidade, quer partam para a
guerra, devem entrar de guarda com os homens, caçar com
eles, como fazem as fêmeas dos cães, e unir-se tão completamente
quanto possível a todos os seus trabalhos; que assim
agirão de acordo e não contrariamente à natureza das relações
entre fêmea e macho, na medida em que são feitos para viverem
em comum?
Glauco Admito.
Sócrates Só falta analisar se é possível estabelecer na
raça humana a comunidade que existe nas outras raças e como
é isso possível.
Glauco Adiantaste-te, pois eu ia falar-te disso.
Sócrates . A respeito da guerra, penso que é bem evidente
como a farão.
Glauco Como?
Sócrates E claro que a farão em comum e se farão acompanhar
dos filhos robustos, para que estes, como os filhos dos
artesãos, vejam o que necessitarão fazer quando atingirem a
idade adulta; além disso, a fim de que possam fornecer ajuda
e serviço em tudo o que se refere à guerra e prestar assistência
aos pais e às mães. Não notaste o que se faz nos ofícios e, por
exemplo, quanto tempo os filhos de oleiros passam a ajudar e
a ver trabalhar os seus pais, antes de se pôr à obra?
Glauco E claro que notei.
Sócrates Os artesãos devem ter mais cuidado que os
guerreiros na formação dos seus filhos pela experiência e tendo
em vista o que convém fazer?
Glauco Seria ridículo!
Sócrates Por outro lado, todo animal luta mais corajosamente
na presença da sua prole.
Glauco Sim, mas existe o risco, Sócrates, de que, sofrendo
um desses reveses que são freqüentes na guerra, pereçam
eles e os seus filhos, e o resto da cidade não possa recuperar-se
de semelhante perda.
Sócrates Tens razão. Mas achas que o nosso primeiro
dever seja jamais expô-los ao perigo?
Glauco De jeito nenhum.
Sócrates Muito bem! Se precisam enfrentar o perigo,
não é no caso em que o sucesso possa torná-los melhores?
Glauco Sim, evidentemente.
Sócrates Crês que importa pouco que crianças destinadas
a tomar-se guerreiros vejam ou não vejam o espetáculo da
guerra e que o resultado não valha o risco?
Glauco Não. Ao contrário, isso interessa no aspecto que
referiste.
Sócrates Agiremos então de forma que as crianças sejam
espectadoras dos combates, velando pela sua segurança, e tudo
dará certo, não é assim?
Glauco Sim.
Sócrates Em primeiro lugar, os seus pais não ignorarão
quais são as expedições perigosas e quais nao sao.
Glauco Logicamente.
Sócrates Por conseguinte, farão com que os fflhos participem
das primeiras, mas evitarão que participem das segundas.
Glauco Correto.
Sócrates E não lhes darão por líderes os cidadãos mais
medíocres, mas aqueles que a experiência e a idade tomam
capazes de orientar e governar crianças.
Glauco Sim, é o que convém.
Sócrates Contudo, muitas vezes acontecem acidentes
imprevistos.
Glauco Naturalmente.
Sócrates Considerando tais eventualidades, meu amigo,
é necessário dar desde muito cedo asas às crianças, para que
possam, se for preciso, salvar-se voando.
Glauco Que queres dizer?
Sócrates Que é necessário ensiná-las a cavalgar o mais
cedo possível e, bem treinadas, fazê-las participar do combate
como espectadoras, não montadas em cavalos fogosos, mas em
cavalos ligeiros no galope e dóceis ao freio. Desta forma, verão
perfeitamente o que terão de fazer um dia e, se o perigo se
tomar grande, salvar-se-ão com toda a segurança.
Glauco Julgo que tens razão.
Sócrates E o que dizer a respeito da guerra? Como irão
se comportar os teus soldados entre si mesmos e em relação
ao inimigo? Achas que a minha opinião sobre isto está certa
ou não?
Glauco Explica-te.
Sócrates O soldado que abandonar o seu posto, depuser
as armas ou cometer qualquer ação semelhante por covardia não
deve ser relegado para a dasse dos artesãos ou dos lavradores?
Glauco Evidentemente.
Sócrates E aquele que for aprisionado pelo inimigo não
o deixaremos como presente aos que o tiverem aprisionado,
para que façam da sua presa o que quiserem?
Glauco Assim será.
Sócrates E aquele que se distinguir pela sua excelente
conduta, não convém que no campo de batalha os jovens e as
crianças que acompanharam a experiência o coroem, cada um
por sua vez? Não tens esta opinião?
Glauco Sim, tenho.
Sócrates E que lhe apertem a mão?
Glauco Também sou dessa opinião.
Sócrates Mas creio que isto tu não aprovaras.
Glauco O quê?
Sócrates Que cada uni deles o beije e seja por ele beijado.
Glauco Aprovo isso mais do que qualquer outra coisa.
E acrescento ainda que, enquanto durar a expedição, não será
permitido a nenhum daqueles que ele quiser beijar recusar-se,
a fim de que o guerreiro que ama alguém, homem ou mulher,
lute mais ardentemente por alcançar o prêmio da sua coragem.
Sócrates Concordo. Aliás, já dissemos que reservaríamos
aos cidadãos de elite uniões mais numerosas que aos outros e
que, a respeito dos casamentos, a escolha cairia mais freqüentemente
sobre eles do que sobre os outros, a fim de que a sua
raça se multiplique tanto quanto possível.
Glauco Com efeito, dissemos.
Sócrates De acordo com Homero, também é justo honrar
jovens que se destacam por favores desta natureza. Com
efeito, Homero relata que, tendo-se Ajax distinguido num combate,
o honraram servindo-lhe o lombo inteiro de um boi, querendo
dizer com isto que tal recompensa convinha perfeitamente
a um guerreiro jovem e valoroso, sendo, ao mesmo tempo, para
ele uma distinção e uma maneira de aumentar as suas forças.
Glauco Muito bem.
Sócrates Neste ponto, então, seguiremos a autoridade
de Homero: nos sacrifícios e em todas as solenidades semelhantes,
honraremos os bravos, conforme o seu mérito, não só por
meio de hinos e das distinções de que acabamos de citar, mas
também com lugares de honra à mesa, carnes e taças cheias.
Glauco Estou de pleno acordo.
Sócrates A respeito dos guerreiros mortos em combate,
não diremos daquele que tiver tido um fim glorioso que pertence
à raça de ouro?
Glauco Com toda a certeza que diremos.
Sócrates Não creremos também, com disse Hesíodo,
que, depois da morte, os homens desta raça se tornam
gênios puros e bons, que habitam sobre a Terra,
que preservam do mal e guajdam os mortais?
Glauco Sim, creremos.
Sócrates Consultaremos o deus a respeito da sepultura
que se deve dar a esses homens maravilhosos e divinos e das
honrarias que lhes são devidas, e depois realizaremos as exéquias
da maneira que nos for indicado.
Glauco Com certeza.
Sócrates E os seus túmulos serão objeto do nosso culto
e da nossa veneração. Prestaremos as mesmas honras aos que
morreram de velhice, ou de qualquer outra forma, em quem
tivermos reconhecido, durante a vida, um mérito extraordinário.
Glauco Muito justo.
Sócrates E de que maneira se comportarão os nossos
soldados em relação ao inimigo?
Glauco Em que sentido?
Sócrates Em primeiro lugar, no que concerne à escravatura.
Julgas justo que cidades gregas escravizem gregos ou
devem proibi-lo às outras, dentro do possível, e que os gregos
se acostumem a poupar a raça grega, com medo de cair na
servidão dos bárbaros?
Glauco O importante é que os gregos se sirvam disso
com ponderação.
Sócrates E importante, então, que não possuam escravos
gregos e aconselhem os outros gregos a seguir o seu exemplo.
Glauco Perfeitamente. Assim, dirigirão melhor as suas
forças contra os bárbams e evitarão de as dirigir contra si próprios.
Sócrates Quer dizer que tirar dos mortos outros despojos
além das annas, depois da vitória, será comportar-se com moderação?
Isso não proporciona aos covardes o pretexto, a fim
de não participarem dos combates mais acirrados, de realizarem
uma tarefa necessária ficando debruçados sobre os cadáveres?
A prática de rapinas deste tipo já não causou a ruína de muitos
exércitos?
Glauco É verdade.
Sócrates Não há baixeza e cobiça em despojar um cadáver?
Não é indício de um espírito covarde e mesquinho tratar
como inimigo o corpo de um inimigo, quando este está morto
e desapareceu, deixando somente o instrumento de que se servia
para combater? Julgas que o comportamento dos que agem assim
difere do das cadelas, que mordem a pedra que lhes atiram
e não fazem nenhum mal a quem a atirou?
[1 Referência a Apolo]
Glauco Não difere em nada.
Sócrates Portanto, é necessário deixar de despojar os
cadáveres e evitar que o inimigo os leve.
Glauco Sim, por Zeus, é necessário!
Sócrates Também não levaremos aos templos, para que
sejam consagradas aos deuses, as armas dos vencidos, principalmente
as dos gregos, por pouco ciosos que sejamos da condescendência
dos nossos compatriotas. Antes recearemos macular
os templos levando para aí os despojos dos nossos parentes,
a não ser que o deus o exija.
Glauco Muito bem.
Sócrates Analisemos agora a destruição do território
grego e o incêndio das moradias. Como se comportarão os teus
soldados em relação ao inimigo?
Glauco Gostaria de ouvir a tua opinião a esse respeito.
Sócrates Muito bem! Penso que não se deve nem destruir
nem incendiar, mas apropriar-se apenas da colheita do ano.
Queres saber por que motivo?
GlaucoQuero.
Sócrates Guerra e discórdia são dois nomes diferentes,
designam duas coisas realmente diferentes e aplicam-se às divisões
que se verfficam em dois objetos. Eu afirmo que o pnmeiro
desses objetos é o que pertence à família ou está ligado
a ela e o segundo, o que pertence a outrem ou é estranho à
família. Assim, o nome de discórdia aplica-se à inimizade entre
parentes e o de guerra, à inimizade entre estranhos.
Glauco O que dizes está corretíssimo.
Sócrates Vê se o que digo agora o está também: afirmo
que os gregos pertencem a uma mesma família e são parentes
entre si e que os bárbaros pertencem a uma família diferente
e estranha.
Glauco Está certo.
Sócrates Portanto, quando os gregos lutam contra os
bárbaros e os bárbaros contra os gregos, diremos que se guerreiam,
que são inimigos naturais, e denominaremos guerra a
sua inimizade; mas, se acontece algo parecido entre gregos, diremos
que são amigos naturais, mas que num determinado momento
a Grécia está doente, em estado de sedição, e denonunaremos
discórdia essa inimizade.
Glauco Estou totalmente de acordo.
Sócrates Considera o que acontece quando uma dessas
perturbações, que se convencionou denominar sedições, se produz
e divide uma cidade: se os cidadãos de cada facção devastam
os campos e queimam as casas dos cidadãos da facção
contrária, diz-se que a sedição é infausta e que nem uns nem
outros amam a sua pátria, pois, se a amassem, não ousariam
destruir assim a sua fornecedora de alimentos e a sua mãe; ao
contrário, considera-se admissível que os vencedores levem somente
as colheitas dos vencidos, na esperança de que se reconciliarão
um dia com eles e não continuarão fazendo-lhes a guerra.
Glauco Essa esperança demonstra um grau de civilização
mais elevado do que a idéia contrária.
Sócrates Muito bem! Não é um Estado grego que
queres fundar?
Glauco Sim, deve ser grego.
Sócrates Como conseqüência, os seus cidadãos serão
bons e civilizados?
Glauco No mais alto grau.
Sócrates Eles amarão os gregos? Defenderão a Grécia
como a sua pátria? Assistirão a solenidades religiosas comuns?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Então, considerarão os seus contenciosos com
os gregos uma discórdia entre parentes e não lhes darão o nome
de guerra.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates E nesses contenciosos comportar-se-ão como
devendo reconciliar-se um dia com os seus adversários.
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates Chamá-los-ão brandamente à razão e não lhes
infligirão, como castigo, a escravatura e a destruição, sendo amigos
que corrigem, e não inimigos.
Glauco Concordo.
Sócrates Sendo gregos, não devastarão a Grécia e não
queimarão as moradias; não considerarão adversários todos os
habitantes de uma cidade, homens, mulheres e crianças, mas
apenas o pequeno numero daqueles que são responsáveis pelo
contencioso; por conseguinte, e dado que a maioria dos ddadãos
sao seus amigos, recusar-se-ão a devastar-lhes as terras e a destruir-
lhes os lares; finalmente, só prolongarão o contencioso até
o momento em que os culpados tiverem sido obrigados, pelos
mocentes que sofrem, a receber o castigo merecido.
Glauco Concordo contigo que os nossos cidadãos devem
comportar-se dessa maneira em relação aos seus adversários e
tratar os bárbaros como os Gregos se tratam agora entre si.
Sócrates Façamos então também uma lei que proiba os
guerreiros de devastarem as terras e incendiarem as casas.
Glauco Correto, e com certeza dará bons resultados,
como as anteriores. Porém, parece-me, amigo Sócrates, que se
te deixarmos continuar, nunca mais te lembrarás do assunto
que puseste de parte para entrares em todas essas considerações,
isto é, se semelhante governo é possível e como é possível. Que,
se ele for instituído numa cidade, proporcionará todos esses
bens, eu concordo contigo, e citarei inclusive outras vantagens
que tu omites: os cidadãos lutarão tanto mais valorosamente
contra o inimigo na medida em que jamais desertarão uns aos outros,
conhecendo-se como irmãos, pais e filhos e chamando-se
por esses nomes. E, se as suas mulheres combaterem com eles,
seja nas mesmas fileiras, seja colocadas na retaguarda, para assustarem
o inimigo e prestarem auxílio em caso de necessidade,
sei que então serão invencíveis. Vejo também os bens de que
desfrutarão e que tu não mencionaste. Porém, dado que estou
de acordo contigo em que terão todas essas vantagens e muitas
outras, se esse governo for instituído, deixa de me falar dele.
Procuremos antes convencer-nos de que uma tal cidade é possível,
de que maneira é possível, e deixemos de lado todas as
outras questões.
Sócrates Que impetuosa investida fazes contra o meu
discurso, sem me dar tempo para respirar! Talvez não saibas
que, no instante em que acabo, a muito custo, de escapar a
duas ondas, tu ergues outra, a mais alta e a mais terrível das
três. Quando a tiveres visto e ouvido, com certeza irás me desculpar
por ter, não sem razão, hesitado e receado enunciar e
tentar analisar uma proposta tão paradoxal.
Glauco Quanto mais falares dessa maneira, menos te
dispensaremos de dizeres como pode ser realizado semelhante
governo. Portanto, explica-o sem mais delongas.
Sócrates Em primeiro lugar, precisamos nos lembrar
que foi a busca da natureza da justiça e da injustiça que nos
conduziu até aqui.
Glauco Sem dúvida, mas que interesse tem isso?
Sócrates Nenhum. Simplesmente, se descobrirmos o que
é a justiça, conduiremos que o homem justo em nada deve se
diferenciar dela, mas ser-lhe idêntico. Ou nos contentaremos
em vê-lo aproximar-se da justiça o máximo possível e participar
dela em grau mais elevado que os outros?
Glauco Contentar-nos-emos com isso.
Sócrates Era com a finalidade de termos modelos que
investigávamos o que é a justiça em si mesma e o que seria o
homem inteiramente justo, se de fato existisse; por essa mesma
razão, procurávamos a natureza da injustiça e do homem absolutamente
injusto: queríamos, erguendo as vistas para um e
outro, ver a felicidade e a infelicidade reservadas a cada um
deles, a fim de sermos obrigados a concluir, naquilo que nos
diz respeito, que aquele que se lhes assemelhar mais terá uma
sorte mais semelhante à delas; mas o nosso objetivo não era
demonstrar a possibilidade de existência destes modelos.
Glauco Tens razão.
Sócrates Crês que a habilidade de um pintor fica diminuída
se, após ter pintado o mais belo modelo de homem e
dado à sua obra todas as características adequadas, for incapaz
de provar a existência de semelhante homem?
Glauco Não, por Zeus, não creio.
Sócrates Mas que fizemos nós até agora senão traçar o
modelo de uma boa cidade?
Glauco Nada mais.
Sócrates Julgas, então, que o que dissemos seria menos
bem dito se fôssemos incapazes de provar que se pode edificar
uma cidade com base nesse modelo?
Glauco Certamente que não.
Sócrates Logo, a verdade é esta. Contudo, se quiseres
que eu tente demonstrar, para te dar prazer, de que maneira e
em que condições semelhante cidade é realizável no mais alto
grau, faz-me novamente, para esta demonstração, a mesma concessão
de há pouco.
Glauco Çual?
Sócrates E possível executar uma coisa tal como se descreve?
Ou é próprio da natureza das coisas que a execução
tenha menos influência sobre a verdade que o discurso, embora
alguns não acreditem nisso? Tu concordas ou não?
Glauco Concordo.
Sócrates Então, não me obrigues a mostrar-te plenamente
realizado o plano que traçamos no nosso discurso. Se
estivermos em condições de descobrir como, de uma maneira
muito próxima da que descrevemos, uma cidade pode ser organizada,
confessa que descobriremos que as tuas prescrições
são realizáveis. Não ficarás contente com este resultado? Por
mim, ficarei.
Glauco E eu também.
Sócrates Agora precisamos descobrir e mostrar qual é
o vício interior que impede as cidades atuais de serem organizadas
conforme dizemos e qual é a menor mudança possível
que as conduzirá à nossa forma de governo: de preferência,
uma só, ou então duas, ou então as menos numerosas e as
menos importantes possível.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Nós julgamos conseguir provar que, com uma
única mudança, as cidades atuais seriam completamente transformadas;
é certo que esta mudança é importante e difícil, mas
é possível.
Glauco Qual é?
Sócrates Eis-me chegado ao que nós comparávamos à
onda mais alta: mas preciso dizê-lo, mesmo que isso, como uma
onda viva, me cubra de ridículo e vergonha. Presta atenção no
que vou dizer.
Glauco Fala.
Sócrates Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades,
ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não
forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político
e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto
os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou
outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos
de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das
cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais
a cidade que nós descrevemos será edificada. Eis o que eu hesitava
há muito em dizer, prevendo quanto estas palavras chocariam
o senso comum. De fato, é difícil conceber que não haja
felicidade possível de outra maneira, para o Estado e para os
cidadãos.
Glauco Depois de semelhante discurso, deves esperar,
Sócrates, ver muitas pessoas tirar, por assim dizer, as roupas
e, nuas, apanhar a primeira arma que estiver à mão, investir
contra ti com todas as suas forças. Se não repelires essas pessoas
com as armas da razão e ~e não conseguires fugir-lhes, saberás
à tua custa o que significa zombar.
Sócrates Não és tu a causa disso?
Glauco Tive motivo para agir como fiz. No entanto, não
irei trair-te, mas ajudar-te-ei o mais que puder. Posso mostrar-me
conciliador e encorajar-te; talvez até responda com mais acerto do
que qualquer outro às tuas perguntas. Certo de tal ajuda, tenta
demonstrar aos incrédulos que as coisas são como dizes.
Sócrates Tentarei, dado que me ofereces tão vigorosa
aliança. Por isso, toma-se necessário, se quisermos escapar a
esses assaltantes, distinguir quais são os filósofos aos quais nos
referimos quando ousamos dizer que é necessário confiar-lhes
o governo, para que, feita esta distinção, estejam preparados
para defender-nos, mostrando que a uns convém por natureza
consagrar-se à filosofia e governar na cidade e aos outros não
se consagrarem à filosofia e obedecerem ao líder.
Glauco Está na hora de fazer essa distinção.
Sócrates Então, segue-me e vejamos se, de uma ou outra
maneira, podemos explicar-nos a este respeito.
Glauco Vai adiante.
Sócrates Muito bem! Lembras-te que, quando se afirma
que alguém ama uma coisa, se se fala com rigor, não se entende
por isso que esse alguém ama uma parte dessa coisa e não
outra, mas sim a totalidade?
Glauco Não me lembro muito bem disso.
Sócrates A outro, meu caro Glauco, poderia se perdoar
se falasse assim. Mas tu, entendido como és em matéria de
amor, não deves esquecer que todos os que estão na flor da
idade impressionam e estimulam com sua presença um coração
apaixonado e sensível, que os julga a todos dignos de seu afeto
e da sua ternura. Não é assim que vós fazeis em relação aos
moços formosos? Considerais belo o nariz achatado de um deles,
julgais real o nariz aquilino de outro e o nariz médio de um
terceiro, perfeitamente propordonado; para vós, aqueles que
possuem a pele morena têm um ar viril e os que a possuem
branca são filhos dos deuses. E a expressão cor de mel, achas
que foi criada por alguém que não fosse um amante que lisonjeava
assim a palidez com uma palavra terna, não lhe discernindo nada
de desagradável no insto da juventude? Resumindo, agarntis todos
os pretextos, empregais todas as expressões para não repelir nenhum
daqueles que resplandecem na sua juventude.
Glauco Se queres dizer, tomando-me como exemplo,
que os apaixonados agem assim, concordo, no interesse da
discussão.
Sócrates Não vês que as pessoas amantes do vinho agem
da mesma maneira e que jamais lhes faltam pretextos para considerarem
bom qualquer tipo de vinho?
Glauco Sim, vejo-o perfeitamente.
Sócrates Também vês, creio eu, que os ambiciosos, quando
não podem obter o alto comando, comandam um terço da
tribo e, quando não são honrados por pessoas de uma dasse
superior, contentam-se em sê-lo por pessoas de uma classe inferior,
porque são ávidos de distinções, quaisquer que sejam.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Agora, responde-me: se dissermos de alguém
que deseja uma coisa, afirmaremos com isso que a deseja na
sua totalidade ou que só deseja dela isto e não aquilo?
Glauco Que a deseja na sua totalidade.
Sócrates Diremos, então, que o filósofo deseja a sabedoria,
não nesta ou naq~ue1a das suas partes, mas no seu co*nto.
Glauco É verdade.
Sócrates Não afirmaremos a respeito daquele que se mostra
rebelde às ciências, principalmente se é jovem e ainda não
distingue o que é útil do que não é, que é amigo do saber e
filósofo; da mesma forma que não afirmaremos, de um homem
que se mostm complicado a respeito da alimentação, que tem
fome ou que deseja determinado alimento, mas que não tem apetita
Glauco Sim, e teremos razao.
Sócrates Mas aquele que deseja saborear toda a ciência,
que se entrega alegremente ao estudo e nele se revela insaciável,
a esse chamaremos, com razão, de fflósofo, não é assim?
Glauco Nesse caso, terás muitos e estranhos filósofos,
pois julgo sê-los todos os que apreciam os espetáculos, por causa
do prazer que sentem em aprender; mas os mais bizarros a
catalogar nessa classe são as pessoas ávidas em ouvir que, com
certeza, não assistiriam a uma discussão como a nossa, mas
que, como se tivessem alugado os ouvidos para escutarem todos
os coros, correm às festas dionisíacas, não faltam nem às das
cidades nem às dos campos. Denominaremos filósofos todos
esses homens, tanto aos que demonstram entusiasmo em aprender
semelhantes coisas, como os que estudam as artes inferiores?
Sócrates Logicamente que não. Essas pessoas apenas
aparentam ser fflósofos.
Glauco Quais são, então, na tua opinião, os verdadeiros
filósofos?
Sócrates Os que amam o espetáculo da verdade.
Glauco Talvez tenhas razão. Mas que entendes por isso?
Sócrates Não seria fácil de explicar a outra pessoa, mas
creio que concordarás comigo nisto.
Glauco Em quê?
Sócrates Visto que o belo é o contrário do feio, trata-se
de duas coisas distintas.
Glauco Claro.
Sócrates E, visto que são duas coisas distintas, cada
uma delas é uma?
Glauco Sim, é.
Sócrates Acontece a mesma coisa com o justo e o injusto,
o bom e o mau e todas as outras formas: cada uma delas, tomada
em si mesma, é una; porém, dado que entram em comunidade
com ações, corpos e entre si mesmas, revestem mil formas que
parecem multiplicá-las.
Glauco Tens razão.
Sócrates E neste sentido que eu diferencio, de um lado,
os que amam os espetáculos, as artes e são homens práticos; e,
de outro, aqueles a quem nos referimos no nosso discurso, os
únicos a quem com razão podemos denominar filósofo.
Glauco Em que sentido?
Sócrates Os primeiros, cuja curiosidade situa-se toda
nos olhos e nos ouvidos, amam as belas vozes, as cores e as
figuras bonitas e todas as obras em que entre alguma coisa de
semelhante, mas a sua inteligência é incapaz de enxergar e apreciar
a natureza do próprio belo.
Glauco E assim mesmo.
Sócrates Mas não são raros aqueles que são capazes de
se elevar até a essência do próprio belo?
Glauco Bastante raros.
Sócrates Aquele que conhece as coisas belas, mas não
conhece a beleza em sua essência e não é capaz de seguir aos
que poderiam levá-lo a esse conhecimento, parece-te que vive
sonhando ou acordado? Vê bem: sonhar não é, quer se esteja
dormindo, quer acordado, tomar a aparência de uma coisa pela
própria coisa?
Glauco Sem dúvida que sonhar é isso.
Sócrates Contudo, aquele que acredita que o belo existe
em si mesmo, que pode admirá-lo na sua essência e nos objetos
que nele participam, que nunca toma as coisas belas pelo belo
nem o belo pelas coisas belas, parece-te que este vive acordado
ou sonhando?
Glauco Acordado, sem dúvida.
Sócrates Então, não afirmaríamos com razão que o seu
pensamento é igual a conhecimento, visto que sabe, ao passo que
o do outro é igual a opinião, visto que julga sobre aparências?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Porém, se este último, que, conforme nós achamos,
julga pelas aparências e, por isso, não conhece, se exaltasse
conosco e contestasse a veracidade da nossa afirmação, não teríamos
nada a dizer-lhe para acalmá-lo e convencê-lo serenamente,
ocultando-lhe ao mesmo tempo que está doente?
Glauco Seria necessário acalmá-lo.
Sócrates Muito bem! Vê o que diríamos a ele. Ou, antes,
querias que o interrogássemos, garantindo-lhe que de modo
nenhum cobiçamos os conhecimentos que possa ter, e que, ao
contrário, gostaríamos de nos convencermos de que ele sabe
alguma coisa? Mas, perguntar-lhe-íamos, diz-me: aquele que
sabe, sabe alguma coisa ou nada? Glauco, responde tu por ele.
Glauco Responderei que sabe alguma coisa.
Sócrates Que é ou que não é?
Glauco Que é. Com efeito, como saber o que não é?
Sócrates Nesse caso, sem nos alongarmos muito em
nossa análise, sabemos sem sombra de dúvida o seguinte: o
que é em todos os modos, de todos os modos pode ser conhecido
e o que não é de modo nenhum, de nenhum modo pode ser
conhecido.
Glauco Sim, sabemos sem sombra de dúvida.
Sócrates Mas, se existisse uma coisa que fosse e não
fosse ao mesmo tempo, não ocuparia o meio entre o que é de
todos os modos e o que não é de modo nenhum?
Glauco Sim, ocuparia esse meio.
Sócrates Logo, se o conhecimento incide sobre o ser e,
necessariamente, a ignorância sobre o não-ser, faz-se necessário
descobrir, para o que ocupa o meio entre o ser e o não-ser, um
intermediário entre a ciência e a ignorância, supondo-se que
exista algo do gênero.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Mas algo do gênero é a opinião?
Glauco Com certeza!
Sócrates E uma faculdade distinta da ciência ou idêntica
a ela?
Glauco E uma faculdade distinta.
Sócrates Então, a opinião e a ciência possuem objetivos
diferentes.
Glauco Assim e.
Sócrates E a ciência, incidindo por natureza sobre o ser,
tem por objetivo saber que ele é o ser. Julgo que deva explicar
uma coisa.
Glauco Qual?
Sócrates Afirmo que as faculdades são uma espécie de
seres que nos habilitam a realizar as operações que nos são
próprias. Por exemplo: a visão e a audição são faculdades. Compreendes
o que entendo por este nome genérico?
Glauco Compreendo.
Sócrates Ouve, então, qual é meu conceito de faculdades.
Não vejo nelas nem cor, nem forma, nem nenhum desses atributos
que possuem muitas outras coisas e que as tomam diferentes
umas das outras. Não considero em cada faculdade senão
o seu objetivo e os efeitos que produz. Por este motivo, dei a
todas o nome de faculdades e considero idênticas as que possuem
o mesmo objetivo e produzem os mesmos efeitos, diferentes
aquelas cujo objetivo e cujos efeitos são diferentes. Mas
tu, como fazes?
Glauco Da mesma forma.
Sócrates Então, continuemos, meu grande amigo. Situas
a ciência no número das faculdades ou em outra categoria?
Glauco Situo-a no número das faculdades. Considero-a
até a mais elevada de todas.
Sócrates E a opinião? Tu a situas também entre as
faculdades?
Glauco Sim, porque a opinião é a faculdade que nos
permite julgar pela aparência.
Sócrates Mas ainda há pouco dizias que a ciência e
opinião são duas coisas diferentes.
Glauco Sem dúvida. E como poderia um homem sensato
confundir o que é infalível com aquilo que não o é?
Sócrates Então, está claro que distinguimos a opinião
da ciência.
Glauco Sim.
Sócrates Portanto, cada uma tem, por natureza, um objetivo
diferente.
Glauco Necessariamente.
Sócrates O objetivo da ciência não é conhecer o que é,
exatamente tal como é.
Glauco Sim.
Sócrates E o propósito da opinião não é julgar pelas
aparências.
Glauco Sim.
Sócrates Mas a opinião conhece aquilo que a ciência
conhece? Uma mesma coisa pode ser ao mesmo tempo objetivo
da ciência e da opinião, ou isso é impossível?
Glauco E impossível. Com efeito, se faculdades diferentes
possuem por natureza objetivos diferentes, se, por outro
lado, ciência e opinião são duas faculdades diferentes, disto decone
que o objetivo da ciência não pode ser o mesmo da opinião.
Sócrates Logo, se o objetivo da ciência é o ser, o da
opinião será algo diferente do ser?
Glauco Algo diferente.
Sócrates Mas a opinião pode incidir sobre o não-ser?
Ou é impossível saber por ela o que não é? Raciocina: aquele
que opina, opina sobre alguma coisa ou é possível opinar e não
opinar sobre nada?
Glauco E impossível.
Sócrates Portanto, aquele que opina, opina sobre determinada
coisa?
Glauco Sim.
Sócrates E o não ser alguma coisa? Não é, antes, uma
negação da coisa?
Glauco Com certeza.
Sócrates Por isso temos, necessariamente, de relacionar
o ser à ciência e o não-ser, à ignorância.
Glauco E com razão.
Sócrates Em vista disso, o objetivo da opinião não é
nem o ser nem o nao-ser.
Glauco Coneto.
Sócrates Conseqüentemente, a opinião não é nem ciência
nem ignorância.
Glauco Parece-me que nao.
Sócrates Logo, está para além de uma e de outra, ultrapassando
a ciência em clareza e a ignorância em obscuridade?
Glauco Não.
Sócrates Então, julgas a opinião menos clara que a ciência
e menos obscura que a ignorância?
Glauco Com certeza.
Sócrates Tu a colocas entre uma e outra?
Glauco Sim, coloco.
Sócrates Logo, a opinião é algo intermediário entre a
ciência e a ignorância?
Glauco Exatamente.
Sócrates Mas nós não afirmamos anteriormente que, se
descobríssemos uma coisa que fosse e não fosse ao mesmo tempo,
essa coisa ocuparia o meio entre o ser absoluto e o nada
absoluto e não seria o objetivo nem da ciência nem da ignorância,
mas do que pareceria intermediário entre uma e outra?
Glauco Afirmamos com razão.
Sócrates Parece-me agora que é esse intermédio que
estamos denominando opinião.
Glauco Assim parece.
Sócrates Penso que devemos descobrir que coisa é essa
que participa ao mesmo tempo do ser e do não-ser e que não é
exatamente nem um nem outro. Se a descobrirmos, nós a chamaremos
de objetivo da opinião, consignando os extremos aos extremos
e os intermediários aos intermediários, não é assim?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Então, que me responda esse bom homem que
não crê na beleza em si mesma, na idéia do belo eternamente
imutável, mas reconhece apenas a multidão das coisas belas,
esse apreciador de espetáculos que não suporta que se afirme
que o belo é uno, assim como o justo e as outras realidades
semelhantes. Entre esse grande número de coisas belas, exce-
lente homem, dir-lhe-emos, há uma que possa parecer feia?
Ou, entre as justas, injusta? Ou, entre as sagradas, profana?
Glauco Sim, dirá ele, pois é obrigatório que as mesmas
4 coisas, observadas de pontos de vista diferentes, pareçam belas
e feias, justas e injustas, e assim por diante.
Sócrates E as quantidades duplas podem parecer não
ser metades de outras?1
Glauco De forma alguma.
Sócrates Afirmo o mesmo a respeito das coisas que se
dizem grandes ou pequenas, pesadas ou leves. Cada uma destas
qualificações convém-lhes mais que a qualificação oposta?
Glauco Não, participam sempre de uma e de outra.
Sócrates Por acaso, essas muitas coisas são mais do que
se diz que são?
Glauco Isto parece com essas adivinhações que se fazem
nos banquetes e com o enigma das crianças a respeito do eunuco
que ataca o morcego,2 onde se diz, de forma obscura, com que
o atacou e onde estava pendurado. Essas numerosas coisas de
[1 Qualquer quantidade tanto pode ser considerada o dobro de outra como metade
de uma terceira.]
[2 O enigma é este: Um homem que não é um homem, vendo e não vendo um
pássaro que não é um pássaro, pendurado numa árvore que não é uma árvore, ataca-o e
não o ataca, com uma pedra que não é uma pedra. Isto significa: um eunuco zarolho
afira num morcego suspenso de um sabugueiro uma pedra-pomes e não o aceda.]
que falas possuem um caráter ambíguo e nenhuma delas pode
ser concebida como sendo ou não sendo ou conjuntamente uma
e outra ou nem uma nem outra.
Sócrates Que fazer, então, e onde situá-las melhor do
que entre o ser e o não-ser? Não parecerão mais obscuras que
o não-ser sob o aspecto do mínimo de existência, nem mais
claras que o ser sob o do máximo de existência?
Glauco Por certo que nao.
Sócrates Parece, pois, havermos descoberto que as múltiplas
fórmulas da multidão respeitantes ao belo e às outras
coisas semelhantes giram, por assim dizer, entre o nada e a
existência absoluta.
Glauco É verdade.
Sócrates Mas estabelecemos previamente que, se descobríssemos
tal coisa, seria preciso dizer que ela é o objetivo
da opinião, e não o objetivo do conhecimento, e que está situada
num espaço intermediário que é apreendido por uma faculdade
intermediária.
Glauco Sim, estabelecemos.
Sócrates Afirmaremos, pois, que as pessoas que enxergam
muitas coisas belas, mas não apreendem o próprio belo e
não podem seguir aquele que gostaria de guiá-las nessa contemplação,
que enxergam muitas coisas justas sem verem a própria
justiça, e assim por diante, essas pessoas, diremos nós, opinam
sobre tudo, mas não sabem nada a respeito das coisas
sobre as quais opinam.
Glauco Necessariamente.
Sócrates Mas que diremos daquelas pessoas que enxergam
as coisas em si mesmas, na sua essência imutável? Que
elas possuem conhecimentos, e não opiniões, não é verdade?
Glauco Necessariamente, também.
Sócrates Não diremos, da mesma forma, que amam as
coisas que são o objeto da ciência, ao passo que os outros sentem
isso apenas por aquelas que são o objeto da opinião? Não te
recordas do que dizíamos a respeito destes últimos que amam
e admiram as belas vozes, as cores belas e as outras coisas semelhantes,
mas não admitem que o belo em si mesmo seja uma
realidade?
Glauco Recordo-me.
Sócrates Seremos injustos com eles se os denominarmos
amantes da opinião em vez de amantes da fflosofia? Ficarão
muito irritados conosco se os tratarmos assim?
Glauco Não, se acreditarem em mim, pois não é licito
irritar-se com a verdade.
Sócrates Então, denominaremos filósofos apenas aqueles
que em tudo se prendem à realidade?
Glauco Sem sombra de dúvida.
LIVRO VI
SÓCRATES Assim, Glauco, com certa dificuldade e ao
término de uma longa discussão, diferenciamos os fflósofos daqueles
que o não são.
Glauco Talvez não conseguíssemos fazê-lo numa breve
discussão.
Sócrates Talvez. E acredito até que teríamos chegado a
um mais alto grau de evidência se tivéssemos podido discorrer
apenas a respeito deste ponto e não existissem muitas outras
questões a tratar, para vermos em que difere a vida do homem
justo da do homem injusto.
Glauco De que iremos tratar depois disso?
Sócrates O que vem logo a seguir? Como estabelecemos
que são filósofos aqueles que podem chegar ao conhecimento
do imutáveL ao passo que os que não podem, mas erram na
multiplicidade dos objetos variáveis, não são filósofos, cumprenos
ver a quem escolheríamos para governar o Estado.
Glauco Qual a medida mais sábia que devemos tomar?
Sócrates Devemos escolher para magistrados aqueles
que nos parecerem capazes de zelar pelas leis e as instituições
da cidade.
Glauco Está cedo.
Sócrates Crês que se deve colocar a questão de saber
se é a um cego ou a um homem perspicaz que podemos confiar
a guarda de um objeto qualquer?
Glauco Lógico que não.
Sócrates Mas, na tua opinião, em que diferem dos cegos
os que não possuem o conhecimento da essência de cada coisa,
que não têm na sua alma nenhum modelo luminoso nem podem,
à maneira dos pintores, vislumbrar o verdadeiro absoluto e,
depois de o terem contemplado com a máxima atenção, reportar-
se a ele para estabelecer neste mundo as leis do belo, do
justo e do bom, se for necessário estabelecê-las, ou velar pela
sua salvaguarda, se já existirem?
Glauco Não diferem muito dos cegos!
Sócrates Então, tomaremos magistrados preferivelmente os
que, conhecendo a essência de cada coisa, não são inferiores aos
outros nem em experiência nem em nenhuma espécie de mérito?
Glauco Seria absurdo não escolhê-los, se, quanto ao
resto, em nada são inferiores aos outros.
Sócrates E conveniente dizer agora de que forma poderão
aliar a experiência à especulação?
Glauco Com certeza.
Sócrates Como dissemos no início desta conversa, é necessário
começar por conhecer bem o caráter que lhes é próprio;
e eu julgo que, se chegarmos a um acordo satisfatório, concordaremos
também que podem aliar a experiência à especulação
e que é a eles, e não a outros, que deve pertencer o governo
da cidade.
Glauco Como assim?
Sócrates Em primeiro lugar, admitamos, no que concerne
ao caráter fflosófico, que eles amam sempre a ciência,
porque esta pode dar-lhes a conhecer essa essência eterna que
não está sujeita às vicissitudes da geração e da corrupção.
Glauco Sim, admitamo-lo.
Sócrates E que amam a ciência na totalidade, não renunciando
a nenhuma de suas partes, pequena ou grande, exaltada
ou desprezada, da mesma forma que os ambiciosos e os
amantes a que nos referimos há pouco.
Glauco Tens razão.
Sócrates Considera agora se não é necessário que homens
que devem ser como acabamos de dizer possuam, além
disso, uma outra qualidade.
Glauco Qual?
Sócrates A sinceridade, unia tendência natural para não
admitirem voluntariamente a mentira, mas odiá-la e amar a verdade.
Glauco E importante.
Sócrates Não apenas é importante, meu amigo, mas é
forçoso que aquele que ama alguém ame tudo o que se assemelha
e liga ao objeto do seu amor.
Glauco Tens razão.
Sócrates Ora, poderias encontrar alguma coisa que se
ligue mais estreitamente à ciência do que a verdade?
Glauco E impossível.
Sócrates Pode acontecer que o mesmo espírito seja ao
mesmo tempo amigo da ciência e da mentira?
Glauco De modo nenhum.
Sócrates Logo, quem ama de fato a ciência deve, desde
a juventude, desejar tão vivamente quanto possível apreender
toda a verdade.
Glauco Com certeza.
Sócrates Mas nós sabemos que, quando os desejos se
dirigem obsessivamente para um único objeto, tornam-se mais
fracos em relação ao resto, como um curso de água desviado
para esse único caminho.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E quando os desejos de um homem se orientam
para as ciências e tudo o que lhes concerne, penso que solicitam
os prazeres que a alma experimenta em si mesma e menosprezam
os do corpo, ao menos quando se trata de um autêntico
filósofo e que não se limita a fingir que o e.
Glauco E necessário que assim seja.
Sócrates Um homem assim é moderado e de maneira
nenhuma amigo das riquezas; com efeito, compete a outros atender
às razões pelas quais se busca a fortuna e seu corolário de
excessivos consumos.
Glauco Com certeza.
Sócrates Precisamos considerar também outro aspecto,
se quiseres distinguir o caráter filosófico daquele que não o é.
Glauco Qual aspecto?
Sócrates Cuida para que não exista nenhuma baixeza
de sentimentos: a estreiteza de espírito é talvez o que repugna
mais a uma alma que deve tender incessantemente a abranger,
no conjunto e na totalidade, as coisas divinas e humanas.
Glauco Nada mais verdadeiro.
Sócrates Mas tu crês que uma alma assim nobre e sublime,
a quem é dado contemplar todos os tempos e todos os
seres, considere a vida humana algo grandioso?
Glauco E impossível.
Sócrates Por isso, não julgará que a morte deve ser temida.
Glauco De maneira nenhuma.
Sócrates Então, ao que parece, uma alma covarde e inferior
não terá nenhuma relação com a verdadeira filosofia.
Glauco Não, na minha opinião.
Sócrates Muito bem! Um homem regrado, desprovido
de avidez, baixeza, arrogância e covardia, pode ser, de alguma
maneira, insociável e injusto?
Glauco De maneira nenhuma.
Sócrates Dessa forma, quando quiseres distinguir a alma
filosófica daquela que não o é, observarás, a partir dos primeiros
anos, se ela se mostra justa e branda ou feroz e intratável.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Também não desprezarás o seguinte, creio eu.
Glauco O quê?
Sócrates Se ela tem facilidade ou dificuldade em aprender.
Com efeito, podes esperar que alguém tenha amor ao que
faz com muito esforço e pouco sucesso?
Glauco Não, nunca.
Sócrates Muito bem! Se ele for incapaz de reter o que
aprende, se esquecer tudo, é possível que possa adquirir ciência?
Glauco Não.
Sócrates Esforçando-se inutilmente, não crês que irá
odiar-se e odiar essa modalidade de estudos?
Glauco Como poderia ser diferente?
Sócrates Por isso, jamais admitiremos uma alma esquecida
entre as almas com tendência à filosofia, tendo em vista
que queremos que estas sejam dotadas de boa memória.
Glauco Certamente.
Sócrates Mas, diremos nós, a falta de gosto e decência
causa, inevitavelmente, a falta de moderação.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Ora, julgas que a verdade está ligada à moderação
ou à falta desta?
Glauco A moderação.
Sócrates Então, além dos outros dons, busquemos no
filósofo um espirito repleto de moderação e graça, cujas tendências
inatas guiarão facilmente para a essência de cada ser.
Glauco Muito bem.
Sócrates Mas não aês que as qualidades que acabamos
de enumerar se apóiam em si mesmas e são todas necessárias
a uma alma que deve participar, plena e perfeitamente, no conhecimento
do ser?
Glauco São necessárias no mais alto grau.
Sócrates Podes então censurar unia profissão que jamais
será exercida a contento se quem a exerce não for, por natureza,
dotado de memória, facilidade em aprender, grandeza de alma
e boa vontade? E também se não for amigo da verdade, da
justiça, da coragem e da moderação?
Glauco Não. O próprio Momo não veria nisso nada a
censurar.
Sócrates Muito bem! Não é a homens assim, amadurecidos
pela educação e a idade, que confiarás o governo da cidade?
Adimanto usou então da palavra para dizer:
Sócrates, ninguém seria capaz de opor-se aos teus argumentos.
Mas vê o que acontece, via de regra, às pessoas que
conversam contigo. Imaginam que, por não terem experiência
na arte de interrogar e responder, deixaram-se desorientar pouco
a pouco em cada questão, e esses pequenos desvios, acumulando-
se, surgem no final da discussão sob a forma de um grande
erro, totalmente contrário ao que se tinha decidido inicialmente.
Da mesma forma que no gamão, em que os jogadores
inábeis acabam sendo bloqueados pelos hábeis a ponto de não
saberem que peça avançar, o teu interlocutor fica bloqueado e
não sabe o que dizer, nesta espécie de gamão que é jogado,
não com peões, mas com argumentos; e, contudo, nem por isso
está convencido de que a verdade está nos teus argumentos.
Falo isto tendo em conta a discussão presente: com efeito, poderíamos
agora dizer-te que não temos nada a opor a cada um
dos teus argumentos, mas se percebe perfeitamente que aqueles
que se consagram à filosofia e que, depois de a terem estudado
na juventude, para se instruírem, não a abandonam, antes ficam
presos a ela, se tomam, em grande número, personagens ex-
[1 Deus do riso, do sarcasmo e das zombarias.]
travagantes, para não dizer perversas, ao passo que os que parecem
os melhores, embora viciados por esse estudo que tu
exaltas, são inúteis às cidades.
Então, tendo-o escutado, perguntei-lhe:
Julgas que os que defendem tais idéias não dizem a
verdade?
Adimanto Não sei, mas desejaria conhecer a tua opinião
a esse respeito.
Sócrates Saibas, então, que creio que dizem a verdade.
Adimanto Nesse caso, como pretender que não haverá
fim para os males que affigem as cidades enquanto estas não
forem governadas por esses fflósofos que, a bem da verdade,
reconhecemos que lhes são inúteis?
Sócrates Suscitas uma questão à qual só posso responder
por uma imagem.
Adimanto Mas não é costume teu expressar-te por imagens!
Sócrates Troças de mim depois de me teres comprometido
numa questão tão difícil de resolver. Agora ouve a minha
comparação, para perceberes ainda melhor como estou ligado
a este processo. O tratamento que os Estados dispensam aos
homens mais sábios é tão duro que não há ninguém no mundo
que sofra outro semelhante e que, para criar uma imagem, aquele
que pretende defendê-los é obrigado a reunir os caracteres
de múltiplos objetos, à maneira dos pintores que representam
animais metade bodes e metade veados e outras misturas do
mesmo tipo. Agora imagina que algo semelhante a isto se passa
a bordo de um ou de vários navios. O comandante, em compleição
e força física, sobrepuja toda a tripulação, mas é um
pouco surdo, um pouco míope e possui, em termos de navegação,
conhecimentos tão curtos como a sua vista. Os marinheiros
disputam o leme entre si; cada um julga que tem direito a
ele, apesar de não conhecer a arte e nem poder dizer com que
mestre nem quando a aprendeu. Além disso, não a consideram
uma arte passível de ser aprendida e, se alguém ousa dizer o
contrário, estão prontos a fazê-lo em pedaços. Atormentam o
comandante com os seus pedidos e se valem de todos os meios
para que ele lhes confie o leme; e se, porventura, não conseguem
convencelo e outros o conseguem, matam estes ou os lançam
ao mar. Em seguida, apoderam-se do comandante, quer adormecendo-
o com mandrágora, quer embriagando-o, quer de qualquer
outra forma; senhores do navio, apropriam-se então de tudo
a que nele existe e, bebendo e festejando, navegam como podem
navegar tais indivíduos; além disso, louvam e chamam de bom
marinheiro, de ótimo piloto, de mestre na arte náutica, aquele que
os ajuda a assumir o comando, usando de persuasão ou de violência
em relação ao comandante, e reputam inútil quem quer
que não os ajude. Por outro lado, no que concerne ao verdadeiro
piloto, nem sequer suspeitam de que deve estudar o tempo, as
estações do ano, o céu, os astros, os ventos, se quiser de fato
tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à maneira de comandar,
com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação,
não pensam quê seja possível aprender isso, pelo estudo
ou pela prática, e, ao mesmo tempo, a arte da pilotagem. Não
acreditas que nos navios onde acontecem semelhantes cenas o
verdadeiro piloto será tratado pelos marinheiros de indivíduo inútil,
interessada apenas em observar as estrelas?
Adimanto Sim.
Sócrates Tu não necessitas, penso eu, ver esta comparação
explicada para reconheceres a imagem do tratamento que
é dispensado aos verdadeiros filósofos nas cidades: espero que
compreendas a minha idéia.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Apresenta então esta comparação aos que se admiram
de que os fflósofos não sejam honrados nas cidades e piocura
convencê-los de que seria mais surpreendente se o fossem.
Adimanto Farei isso.
Sócrates Acrescenta que não estavas enganado ao afirmar
que os filósofos mais sábios são inúteis à maioria da sociedade,
mas faz notar que essa inutilidade é devida aos que
não empregam os sábios, e não aos próprios sábios. Com efeito,
não é natural que o pilota peça aos marinheiros que se deixem
governar por ele nem que os sábios vão bater às portas dos
ncas. O autor desta zombaria mentiu. A verdade é que, rica
ou pobre, a doente precisa ir bater à porta do médico e que
aquele que tem necessidade de um chefe precisa ir bater à parta
do homem que é capaz de comandar: não compete ao líder, se
realmente pode ser útil, pedir aos governados que se submetam
à sua autoridade. Assim, comparando os políticos que governam
atualmente aos marinheiros de que falávamos há pouco e os
que são considerados por eles inúteis e tagarelas perdidos nas
nuvens aos pilotos dÉ verdade, não te enganarás.
Adimanto Muita bem.
Sócrates Condui-se que é difícil uma profissão ser estimada
por aqueles que perseguem fins completamente apostas.
Porém, a mais grave e séria acusação que fere a fflasofia vem-lhe
daqueles que se dizem fflósofas sem o ser. Estes é que estão
presentes nas mentes dos inimigos da filosofia, quando dizem,
cama tu dizias, que a maioria dos filósofas é formada de gente
perversa e que os mais sábios são inúteis, opinião que, cama
tu, reconheci ser verdadeira, não é verdade?
Adimanto É verdade.
Sócrates Mas não acabamos de descobrir a motivo da
inutilidade das melhores entre os fflósofos?
Adimanto Assim é.
Sócrates A partir da perversidade da maioria, pretendes
que procuremos a causa necessária e nas esforcemos por demonstrar,
se o conseguirmos, que esse motiva não é a filosofia?
Adimanto Certamente.
Sócrates Muito bem! Lembra-te da descrição feita par
nós há pouco da caráter que é preciso ter recebida da natureza
para se tomar um homem nobre e bom. Em primeira lugar,
este caráter era guiado, se bem te recordas, pela verdade, que
devia seguir em tudo e por toda parte, sob pena, usando de
impostura, de não participar de maneira nenhuma da verdadeira
filosofia.
Adimanto Sim, foi o que afirmaste.
Sócrates Pois não é esta idéia, exposta desta maneira,
aposta à opinião que reina atualmente?
Adimanto Sim, e.
Sócrates Mas não estaremos certos em responder, para
nos defendermos, que o verdadeira amigo da ciência não se
detém na multidão de aspectos das coisas transitórias, das quais
somente pode ter um conhecimento incerto e precária, mas vai
além e busca, com vigor e aplicação, penetrar a essência de
cada coisa com o elemento da sua alma a que compete fazê-lo;
em seguida, tendo-se ligada e unido, por uma espécie de liimeneu,
à realidade autêntica e tendo engendrado a inteligência
e a vetrlade, atinge o conhecimento do ser e a verdadeira vida,
encontra aí a seu alimenta e a calma para libertar-se enfim das
dores do parto, das quais por nenhum auto meia se poderia livrar?
Adimanto Esta seria uma resposta bastante razoável.
Sócrates Muita bem! Um homem assim estará propensa
a amar a mentira au, ao contrária, a adiá-la?
Adimanto A odiá-la.
Sócrates E, certamente, quando a verdade serve de guia,
não diremos, julga eu, que o caro dos vícios a acompanha.
Adimanto Como poderíamos dizê-lo?
Sócrates Ao contrário, a verdade acompanha a pureza
e a justiça, que por sua vez é seguida pela moderação.
Adimanto Tens razão.
Sócrates E precisa agora enumerar novamente as outras
virtudes que compõem a temperamento filosófico? Coma te recordas,
vimos desfilar a coragem, a grandeza de alma, a facilidade
em aprender e a memória. Objetaste-nos então que qualquer
homem seria abrigada a concordar com o que dizíamos,
mas que, deixando de lada as discursos e contemplando as personagens
em questão, diria que vê perfeitamente que uns são
inúteis e a maioria é de uma perversidade total. Em busca da
causa desta acusação, chegamos ao exame do motivo par que
a maiar parte das fflósofos são perversos e foi isso que nos
obrigou a retomar uma vez mais a definição da temperamento
dos verdadeiros filósofas.
Adimanto Foi isso mesmo.
Sócrates Precisamos considerar agora as degradações
desse temperamento: coma se perde no maior número, como
só escapa à corrupção em alguns, aqueles a quem denominamos
não perversos, mas inúteis; consideraremos em seguida aquele
que afeta imitá-la e atribui a si mesma uma função: quais são
os temperamentos que, usurpando uma profissão de que são
indignos e as ultrapassa, chegam a mil desvios e associam à
filosofia essa deplorável reputação que assinalas.
Adimanto Mas que degradações são essas de que falas?
Sócrates Tentarei descrevê-las. Todas as pessoas concordarão
conasco, espero, que esses temperamentos, reunindo
todas as qualidades que exigimos do verdadeiro fflósafo, aparecem
raramente e em pequena número; não pensas assim?
Adimanto Certamente.
Sócrates Para essas raras naturezas, analisa agora cama
são numerosas e fortes as causas da degradação.
Adimanto Quais são elas?
Sócrates O mais estranha de entender é que não há
nenhuma das qualidades que admiramos no filósofa que não
possa corromper a alma que a possui e desviá-la da caminho
da filosofia. Refiro-me à fortaleza, à moderação e às outras virtudes
que enumeramos.
Adimanto E, de fato, muito estranho de entender.
Sócrates Além disso, tudo aquilo que chamamos de
bens perverte a alma e afasta-a da filosofia: beleza, riqueza,
poderosas alianças na cidade e todas as outras vantagens deste
tipo. Compreendes, sem dúvida, o que quero dizer.
Adimanto Sim, mas gostaria de uma explicação mais
precisa.
Sócrates Fixa bem este princípio geral, e tudo o que
acabo de dizer não te parecerá estranho, mas sim bastante claro.
Adimanto Que princípio?
Sócrates Toda semente ou todo rebento, quer se trate
de plantas, quer de animais, que não encontra alimento, clima
eiocal apropriados, exige tanto mais cuidados quanto mais vigoroso
for, pois a mal é mais nocivo ao que é bom do que ao
que não o é.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates É então verdadeiro afirmar que uma natureza
excelente, sujeita a um regime contrário, torna-se piar do que
uma natureza medíocre.
Adimanto Sim.
Sócrates Podemos também afirmar, Adimanto, que as
almas mais bem-dotadas, influenciadas por uma má educação,
se tornam más no mais alto grau. Ou julgas que os grandes
crimes e a pior perversidade pravêm de uma medíocre e não
de uma excelente natureza? E poderá uma alma vulgar realizar
grandes coisas, seja para o bem, seja para o mal?
Adimanto Não. Penso igual a ti.
Sócrates Se a propensão que atribuimos ao filósofo recebe
a educação apropriada, obrigatoriamente, ao desenvolverse,
alcança todas as virtudes. Porém, se foi semeado, cresceu e
procurou o alimento num solo que não era apropriado, forçosamente
manifesta todos os vícios, a não ser que um deus o
proteja. Crês também, como o vulgo ingênuo, que existem alguns
jovens corrompidos pelos sofistas e alguns sofistas que
os corrompem, a ponto de o fato ser digno de menção? Não te
parece, ao contrário, que aqueles que os acusam são eles mesmos
os maiores sofistas e sabem perfeitamente instruir e modelar à
sua maneira jovens e velhos, homens e mulheres?
Adimanto Quando e como o fazem?
Sócrates Quando, sentados em filas apertadas nas assembléias
políticas, nos tribunais, nos teatros, nos acampamentos
e em toda parte onde haja reunião de pessoas, criticam ou
aprovam determinadas ações ou palavras, em ambos os casas
com grande alarido e de forma exagerada, gritando e aplaudindo
ao mesma tempo. No meio de semelhantes cenas, não
sentirá o jovem faltar-lhe o ânimo? Que educação especial poderá
resistir? Não será submersa por tantas críticas e elogios e
arrastada ao sabor da corrente? Não se pronunciará o jovem
como a multidão a respeito do belo e do feio? Não se associará
às mesmas coisas que ela? Não se tomará semelhante a ela?
Adimanto Obrigatoriamente, Sócrates.
Sócrates E ainda não falamos da maior prova por que
terá de passar.
Adimanto Qual?
Sócrates A que esses educadores e solistas infligem, de
fato, quando não podem convencer pelo discurso. Não sabes
que castigam aquele que não se deixa convencer, cobrindo-o
de vergonha, condenando-o a uma multa ou à pena de marte?
Adimanto Sei-o muito bem.
Sócrates Então, que outro sofista, que ensino especial
e contrário a esse poderiam prevalecer?
Adimanto Acredito que nenhum.
Sócrates Nenhum, sem dúvida. E tentar tal seria uma
grande loucura. Não existe, jamais existiu, nunca existirá caráter
fornada na virtude contra as lições administradas pela multidão:
refiro-me ao caráter humano, meu querido amigo, dado
que, como diz o provérbio, a divino é uma exceção. De fato,
se em semelhantes governos existe um que seja salva e se torne
o que deve ser, podes afirmar sem medo de errar que deve isto
a uma proteção divina.
Adimanto Minha opinião é a mesma.
Sócrates Portanto, também podes concordar comigo nisto.
Adimanto Em quê?
Sócrates Todos esses doutores mercenárias, que a povo
denomina sofistas e considera seus rivais, não ensinam idéias
distintas daquelas que a próprio povo professa nas suas assembléias,
e é a isto que chamam sabedoria. Da mesma forma de
alguém que, após ter observada os movimentos instintivos e
os apetites de um animal grande e forte, por onde convém aproximar-
se dele e tocá-lo; quando e por que motiva se irrita ou
amansa, que gritos costuma soltar em cada ocasião e que tom
de voz o amansa au enfurece, depois de ter aprendido tudo
isto por intermédio de uma longa experiência, criasse uma arte
e, havendo-a sistematizado numa espécie de ciência, passasse
a ensiná-la, embora não soubesse realmente o que, nesses hábitos
e apetites, é belo ou feia, bom au mau, justo ou injusto; conformando-
se na emprego destes termos aos instintos do grande
animal; chamando bom ao que o agrada e mau ao que o importuna,
sem poder legitimar de outra forma estes qualificativos;
denominando justa e belo o necessário, porque não viu e não
é capaz de mostrar aos outros quanto a natureza do necessário
difere, na realidade, da do bom. Um homem assim não te pareceria
um estranho educador?
Adimanto Com toda a certeza!
Sócrates Muito bem! Que diferença existe entre este
homem e aquele que reduz sabedoria ao conhecimento dos sentimentos
e das gostos de uma multidão composta de indivíduos
de toda a espécie, quer se trate de pintura, música ou política?
E evidente que se alguém, numa assembléia, apresenta um poema,
uma abra de arte au um projeto de utilidade pública e se
apóia na sua autoridade, é para ele uma necessidade extrema
sujeitar-se ao que ela aprovar. Ora, já ouviste alguém, numa
assembléia, demonstrar que essas obras são realmente belas, a
nao ser por motivos ridículos?
Adimanto Jamais, e nem espero ouvir.
Sócrates Depois de termos compreendido tudo isto, dizme:
é possível que a turba admita e conceba que o belo em si
mesmo existe, uno e distinto da multidão das coisas belas e
que a essência das coisas é simples, uma e indivisível?
Adimanto De forma alguma.
Sócrates Por conseguinte, é impossível que o povo seja
filósofo.
Adimanto Impossível.
Sócrates E impossível, também, que esses sofistas que
se misturam coma povo, vendidos a ele, deixem de Iisanjear-lhe
o gosto.
Adimanto E clara.
Sócrates Desse modo, que possibilidade de salvação vês
para um homem com pendores filosóficos, que lhe permita perseverar
na sua profissão ê atingir o seu objetivo? Lembra-te que
concordamos que a facilidade em aprender, a memória, a coragem
e a grandeza de alma pertencem ao pendor filosófico.
Adimanto É verdade.
Sócrates Logo, não será ele o primeiro em tudo a partir
da infância, especialmente se as qualidades do corpo corresponderem
às da alma?
Adimanto Sim, com certeza.
Sócrates Ora, quando ele chegar à maturidade, os parentes
e os seus concidadãos tentarão colocar seus talentos a
serviço dos seus interesses.
Adimanto Nada pode impedi-lo.
Sócrates Será cumulado de deferências e homenagens,
captando e lisanjeanda de antemão o seu poder futuro.
Adimanto E o que costuma acontecer.
Sócrates Que esperas, então, que ele faça em tais circunstâncias,
principalmente se nasceu numa grande cidade, se
é rico, nobre, agradável e de boa aparência? Não se encherá de
demasiada esperança, imaginando que é capaz de governar os
gregos e os bárbaros? Nesse casa, não se exaltará, enchendo-se
de arrogância e de orgulho vão e insensato?
Adimanto Com certeza.
Sócrates E se alguém, aproximando-se mansamente, lhe
fizesse ouvir a linguagem da verdade, explicando que ele precisa
da razão, mas que só pode adquiri-la submetendo-se a ela, crês
que, no meio de tantas más influências, ele consentiria em escutar?
Adixnanta Muito longe disso.
Sócrates Contudo, se por causa das suas boas disposições
naturais e da afinidade da linguagem da verdade com o
seu caráter, ele a escutasse, se deixasse levar para a fflosofia,
que farão então os outras, convencidos de que perderão o seu
apoio e amizade? Palavras, ações, não utilizarão todos os meios,
não apenas com ele, a fim de que não se deixe convencer, mas
também com aquele que procura convencê-la, para que não
tenha sucesso, quer preparando-lhe armadilhas, quer levando-a
publicamente aos tribunais?
Adimanto E bem possível.
Sócrates Muita bem! E possível ainda que esse jovem
se tome filósofo?
Adimanto Não.
Sócrates Percebes assim que eu tinha razão quando afinnei
que os elementos que compõem a temperamento fflosófico de
uma pessoa, ao serem deteriorados por uma má educação, fazem
essa pessoa afastar-se da sua vocação, tanto quanto as riquezas.
Adimanto Reconheço que tinha razão.
Sócrates Assim é, meu grande amigo, em toda a sua
exte~ão, a corrupção que perverte as melhores naturezas, aliás
bem raras, como observamos. É de homens assim que saem
não apenas os que causam os maiores males às cidades e aos
cidadãos, mas também os que lhes proporcionam o maior bem
quando seguem o caminho certo; mas um temperamento medíaae
nunca faz nada de grande a favor au em detrimento de
alguém, mero cidadão au cidade.
Adimanto Nada mais verdadeira.
Sócrates Portanto, esses homens, nascidos para a prática
da filosofia, tendo-se afastado dela e tendo-a deixado só e infecunda,
para levarem uma vida contrária à sua natureza e à
verdade, permitem que outros, indignos, se introduzam junto
dessa órfã abandonada pelos próprias filhos, a desonrem e lhe
granjeiem as aíticas com que dizes que a sobrecarregam os
seus detratores: a saber, que, daqueles que têm trato com ela,
alguns não valem nada e a maioria merece os maiores castigos.
Adimanto Efetivamente, é o que se diz.
Sócrates E não sem razão. Com efeito, venda o lugar
vazio, mas repleta de belos nomes e belos títulos, homens sem
valor, à maneira dos evadidos da prisão que se refugiam nas
templos, trocam alegremente a sua profissão pela fflosofia, embora
sejam muito competentes em seu humilde ofício. Também em
relação às outras artes, a filosofia, mesma no estada em que se
encontra, conserva uma eminente dignidade que a leva a ser procurada
por uma multidão de pessoas de natureza inferior a quem
a trabalho servil deformou a carpo, ao mesmo tempo que lhes
consumiu e degradou a alma. E poderia ser de outra maneira?
Adimanto Clara que não.
Sócrates Quando as vês, não pensas num ferreiro calva
e baixo que, havendo economizado um pequena capital e abandonado
as suas ferramentas, cone ao banha, lava-se, veste um
traje novo, e, elegante como um noivo, vai casar-se com a filha
do seu patrão, que a pobreza e o isolamento reduziram a semelhante
extremo?
Adimanto Exatamente.
Sócrates Ora, que prole poderá nascer de semelhante
conluio, senão filhos bastardas e fracas?
Adimanto Obrigatoriamente.
Sócrates Por semelhantes motivos, que idéias e opiniões
podem advir do trato dessas almas vulgares e incultas com a filosofia?
Com certeza, nada além de frivolidades, opiniões sem fimdamentas,
sem sentida, sem consistência, enfim, apenas sofismas.
Adimanto Com certeza, apenas isso.
Sócrates Por conseguinte, Adimanto, é por demais baixo
a número dos que podem lidar dignamente com a filosofia:
talvez alguns nobres espíritos aprimorados par uma boa educação,
isoladas do mundo, que, afastados de quaisquer influências
corruptoras, permanecem fiéis à sua natureza e vocação;
au alguma grande alma, nascida numa pequena cidade, que
despreze os cargos públicos; talvez ainda algum raro e feliz
caráter que abandone, para se entregar à fflasofia, outra profissão
que considere inferior. Outras, enfim, parecem contidos
pelo mesmo freio que mantém preso à filosofia a nosso amigo
Teages. Embora tudo conspire para afastá-lo da filosofia, as enfermidades
que o incapacitam para a vida política o obrigam
a filosofar. Quanta a mim, nAa convém que eu fale do meu
demônio familiar e pressaga que me adverte interiormente, pois
é duvidosa que se possa encontrar outro exemplo no passado.
Mas, entre este pequeno grupo, aqueles que se tomaram filósafas
e provaram as delícias proporcionadas pela posse da sabedoria,
convencidas da insensatez do restante dos homens,
aqueles que sabem que não possuem aliados com quem passam
cantar para ir em socorro da justiça sem se perder, mas que,
ao contrário, como um homem caído no meio de animais ferozes,
recusando-se a participar das injustiças dos outros e incapaz
de resistir sozinho a esses seres selvagens, pereceriam antes de
ter servido a pátria e os amigos, inúteis a si mesmos e aos
outros. Levados por essas reflexões, ficam inativos e ocupam-se
das seus negócios; semelhante ao viajante que, durante uma
tempestade, enquanto a vento ergue turbilhões de pó e chuva,
fica feliz se encontra um mura atrás do qual possa se abrigar,
os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por toda
parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retira
isentos de injustiças e de ações ímpias e passar seus dias sarndentes
e tranqüilos e com a consola de uma bela esperança.
Adimanto Na verdade, não sairão deste mundo sem
ter realizado grandes obras.
Sócrates Sim, mas não terão cumprido o seu mais elevado
destino, par não ter-lhes cabido um governo adequado à
sua vocação. Com efeito, num governa adequado, os filósofos
teriam desfrutado de mútuo prestígio e se teriam tornado úteis
ao Estada e aos cidadãos. Pensa que já discorremos suficientemente
a respeito da causa e da injustiça das acusações dirigidas
à fflosofia, a menos que tenhas mais alguma coisa a dizer.
Adimanto Não, não tenho nada a acrescentar. Porém,
entre todos as governos, qual é, na tua opinião, o que convém
à fflosofia?
Sócrates Nenhum. Queixo-me exatamente por não descobrir
nenhuma constituição política que convenha ao temperamento
fflosóflco, por isso o vemos alterar-se e corromper-se. Igual
a uma semente exótica que, lançada ao solo fora da seu país de
origem, degenera e sofre a influência do solo em que caiu, também
o caráter fflosófico perde a virtude e transforma-se num caráter
muito diferente. Mas, se encontrasse um governo cuja excelência
correspondesse à sua, ver-se-ia então que contém algo de divino
dentro de si mesmo, em contraste com todos os outros caracteres
e profissões tudo é exclusivamente humana. Agora, evidentemente,
perguntar-meás que governo é esse.
Adimanto Enganas-te, pois não é o que vou te perguntar.
O que pretendo saber é se o Estado que tens em mente é
aquele cujos fundamentas estabelecemos ou se te referes a outro.
Sócrates E esse mesmo, com uma diferença. Na verdade,
já dissemos que era preciso que fosse conservada na nossa república
o mesmo espírito que nos havia inspirado na elaboração
das leis.
Adimanto Sim, dissemos.
Sócrates Mas não esclarecemos suficientemente esse
ponto, com receio da objeção que tu fizeste, de que a demonstração
seria longa e difícil, tanto mais que a que nas falta explicar
não é nada fácil.
Adimanto De que se trata?
Sócrates De como o Estado deve agir para que a filosofia
não pereça. Acontece que qualquer empreendimento realmente
grande não se realiza sem riscos e, como se sabe, as coisas belas
são dificeis.
Adimanto Seja como for, acaba a tua explanação esclarecendo
esse ponto.
Sócrates Se eu não tiver sucesso, não será por má vontade,
mas porque serei impedido pela impotência. Elevote a
juiz do meu zelo. Em primeiro lugar, observa com que audácia
e desprezo do perigo afirmo que o Estado deve adotar, a respeita
desta profissão, uma conduta aposta à sua conduta atual.
Adimanto Cama?
Sócrates Hoje, as que se consagram à filosofia são jovens
há pouco egressos da infância; no intervalo que os separa do
tempo em que se entregarão à economia e ao comércio, abordam
a sua parte mais difícil, isto é, a dialética. Em seguida, abandonam
este gênero de estudos: e são estes que se consideram
filósofos autênticas. Por conseguinte, julgam fazer muito em
assistirem a debates filosóficos, quando são convidadas, considerando
que se trata apenas de um passatempo. A velhice aproxima-
se? Com exceção de um pequeno número, o seu ardor
amortece e se extingue mais que o Sol de Herácito,1 visto que
não volta a acender-se.
[1 De acordo com Herádlito, visto que tudo se renova, a cada tarde o Sol se
extingue e se reacende a cada manhã.]
Adimanto E o que é necessária fazer?
Sócrates Exatamente o contrário: proporcionar aos adolescentes
e às crianças uma educação e uma cultura adequadas
à sua juventude; cercar de todos os cuidados o seu carpo na
época em que ele cresce e se forma, a fim de prepará-lo para
servir a filosofia; em seguida, quando chega a idade em que a
alma entra na maturidade, reforçar os exercícios que lhe são
próprias; e, quando as forças declinam e passou o tempo das
atribuições políticas e militares, dar baixa no acampamento sagrado,
isentos de toda e qualquer ocupação importante, àqueles
que pretendem levar neste mundo uma vida feliz, e, depois de
sua morte, coroar no outro mundo a vida que tiverem vivido
com um destino digna dela.
Adimanto Falas com inteligência, Sócrates. Acredita,
porém, que as teus ouvintes usarão ainda mais de inteligência
ao te resistir, pois de forma alguma estão convencidos, a começar
par Trasímaco.
Sócrates Não queiras me indispor com Trasímaca, que
samos amigos de há pouco e nunca fomos inimigas. Não pouparei
esforços para convencer a ele e aos demais presentes. Pelo
menos, o que irei dizer-lhes servirá para alguma coisa naquela
outra vida, quando, retomando uma nova profissão, participarão
em debates semelhantes.
Adimanto Estás te referindo a um tempo muito próximo!
Sócrates E que não é nada em comparação à eternidade.
Contudo, que as pessoas, em sua maioria, não se deixem convencer
por esses discursos nada tem de surpreendente, porquanto
nunca viram acontecer o que dizemos; ao contrário, ouviram
apenas frases de uma simetria rebuscada, em vez de conversas
espontaneamente motivadas como as nossas. Mas o que
jamais viram foi um homem tão perfeitamente identificado com
a virtude, nos atos e nas palavras. Não te parece?
Adimanto Não, nunca.
Sócrates E também assistiram pouco, meu bem-aventurado
amigo, a belos e livres debates, ande se busca a verdade
com paixão e por todos os meias, com o único propósito de
conhecê-la; debates esses desprovidos de vãos enfeites e inúteis
sutilezas, em que nada se diz por espírito de contestação, nem
pelo simples prazer da eloqüência, como acontece nos tribunais
e nas conversações particulares.
Adimanto Por certo que não.
Sócrates São estas as reflexões que davam preocupação
e me faziam hesitar em falar. Não obstante, premido pela verdade,
declarei que não se devia esperar conhecer cidade, governo,
nem homem algum perfeitos, a não ser que estes poucos
filósofos, acusadas não de perversos, porém de inúteis, fossem
obrigados por uma feliz necessidade a se encarregarem do governo
do Estado, ou que, por uma inspiração divina, os soberanas
e seus filhas fossem tomadas de um sincera amor pela
verdadeira filosofia. Afirmo que não existe motivo algum para
pretender que uma ou outra destas coisas, au ambas, seja absurda.
Aliás, seria ridículo estarmos aqui a nos divertir em formular
desejos vãos, não te parece?
Adimanto Sim.
Sócrates Se nunca aconteceu, nos séculos passados, que
um filósofo fosse obrigado a se encarregar do governo de um
Estada, au se nos dias de hoje isso se dá em alguma remota
região de bárbaros, ou se realmente algum dia vier a acontecer,
poderemos então afirmar que existiu, existe ou existirá uma
república semelhante à nossa, quando a Musa filosófica se tomar
senhora de uma cidade. Parque, na verdade, nós não prapomos
coisas impossíveis, embora reconheçamos que a sua execução
é bastante difícil.
Adimanto Concorda contigo.
Sócrates Mas a multidão não é dessa opinião, dirás.
Adimanto Talvez.
Sócrates Não acuses em demasia a multidão. Ela mudará
de opinião se, em lugar de a provocares, a aconselhares e, refutando
as acusações contra o amor e a ciência, lhe indicares aqueles a
quem denominas filósofos e lhe definires, como fazemos, a sua
natureza e profissão, para que não pense que lhe falas a respeito
dos filósofos tais como ela os concebe. Quando a multidão puder
enxergar as coisas assim, não crês que mudará de opinião e responderá
de modo diferente? Ou pernas que é natural irritar-se
contra quem não se irrita e odiar quem não odeia, quando se é,
por natureza, desprovido de inveja e ódio? Quanta a mim, antecipando-
me à tua objeção, afirmo que um caráter tão intratável
só se encontra em algumas pessoas, e não na multidão.
Adimanto Estou de acordo.
Sócrates Concordas também que, pelas preconceitos da
maioria a respeita da fflosofia, os responsáveis são esses estrangeiros
que se introduzem nela coma indesejáveis libertinos
numa orgia e que, injuriando-se, tratando-se com malevolência
e fazendo incidir sempre as suas discussões sabre questões pessoais,
portam-se da maneira menos adequada à filosofia?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Logo, Adinianta, aquele cujo pensamento se entrega
realmente à contemplação da essência das coisas não julga
agradável contemplar a conduta dos homens, declarar-lhes guerra
e encher-se de ódio e animosidade; com a visão dominada por
objetas fixos e imutáveis, que não comportam nem suportam mútuas
preconceitos, mas estão todas sujeitos à lei da ardem e da
razão, esforça-se par imitá-los e, tanto quanto possível, tomar-se
semelhante a eles. Ou crês que é possível não imitar aquilo de
que a todo o momento nos aproximamos com admiração?
Adimanto Não é possível.
Sócrates Portanto, estando o filósofa em cantata com
o que é sagrado e sujeito à ordem, ele mesmo toma-se ordenado
e sagrado, dentro do limite permitida pela natureza humana,
a que não evita que, com freqüência, a multidão o julgue de
forma injusta.
Adimanto Com certeza.
Sócrates Quer dizer que, se uma necessidade o obrigasse
a tentar introduzir nos costumes públicos e privados o que ele
considera mais elevado, em vez de se limitar a modelar o seu
próprio caráter, julgas que seria um mau mestre da moderação,
da justiça e de todas as outras virtudes civis?
Adimanto De jeito nenhum.
Sócrates E se o povo conseguir compreender que dizemos
a verdade a respeito dos filósofos, continuará sendo hostil
com eles e a desconfiar de nós quando lhe afirmarmos que uma
cidade só será feliz na medida em que seu plano for traçada
por esses artistas que se baseiam em modelos divinos?
Adimanto Não será hostil se conseguir compreender. Mas
de que maneira, porém, os filósofas poderão traçar esse plano?
Sócrates Começando por considerar o Estado e os caracteres
humanos de seus cidadãos um pano que, em primeiro
lugar, tentarão limpar com escrúpulo, o que não é nada fácil.
Mas tu já sabes que, nisso, eles diferem dos outros, e que não
quererão ocupar-se de um Estado ou de um indivíduo para lhe
dar apenas leis, senão quando o tiverem recebido imaculada
ou tomado imaculado eles próprios.
Adimanto E com razão.
Sócrates E tenda conseguida isso, não irão esboçar a
nova constituição?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Creio que, em seguida, para aperfeiçoar esse
esboço, erguerão freqüentemente os olhos, por um lada, para
a essência da justiça, da beleza, da moderação e das virtudes
desta natureza e, por outro, para a cópia humana que dela fazem;
e, por intermédia da combinação e da miscelânea de bistituições
apropriadas, esfarçar-se-ão por atingir a imagem da
verdadeira huinamdade, inspirando-se no modelo a que Homero,
quando o encontra entre os homens, chama de divino e
semelhante aos deuses.
Adimanto Muita bem.
Sócrates E apagarão, penso eu, e pintarão de nova, até
conseguirem caracteres humanos tão caros à divindade quanto
a podem ser tais caracteres.
Adimanto Certamente, será um quadro estupendo!
Sócrates Muito bem! Teremos convencido aqueles que
tu apresentavas como dispostos a cair sobre nós com todas as
suas forças de que um tal pintor de constituições é o homem
que lhes gabávamos há instantes e que excitava o seu mau humor
porque lhe queríamos confiar o governo das cidades? Será
que se acalmarão ao ouvir-nas?
Adimanto Sim, se forem ponderadas
Sócrates Que mais teriam a objetar-nos? Que as filósofos
não são amantes do ser e da verdade?
Adimanto Seria absurda.
Sócrates Que o seu temperamento, tal como o descrevemos,
nada tem a ver com o que existe de melhor?
Adimanto Também não.
Sócrates O que, então? Que esse temperamento, deparando-
se com instituições adequadas, não é mais apropriado
que qualquer outra a tomar-se perfeitamente bom e sábio?
Adimanto Por certo que nao.
Sócrates Assustar-se-ão ao nos ouvirem declarar que
os males do Estado e dos cidadãos somente serão extintas quando
os filósofas detiverem o poder e que o governo que imaginamos
será realizado de fato?
Adimanto Talvez.
Sócrates Queres que os declaremos a todas apaziguadas
e persuadidos, a fim de que a vergonha, na falta de outro motivo,
os obrigue a concordar?
Adimanto Sim, quero.
Sócrates Então, consideremo-los persuadidos neste panto.
Agora, quem nos contestará que é possível encontrar filhos
de reis nascidos filósofos?
Adimanto Ninguém.
Sócrates quem pode afirmar que, nascidos com tais
disposições, é obrigatório que se corrompam? Que lhes seja difícil
evitá-la, nós próprios o admitimos; mas que, ao longo do
tempo, nem um só se salve, existe alguém que possa sustentá-lo?
Adimanto Com certeza que não.
Sócrates Mas basta que um se salve e encontre uma
cidade dócil às suas opiniões para realizar todas as coisas que
hoje são consideradas impossíveis.
Adimanto De fato, um só basta.
Sócrates Na verdade, tendo esse magistrada estabelecido
as leis e as instituições que descrevemos, não é impossível
que os cidadãos aceitem sujeitar-se a elas.
Adimanto De maneira nenhuma.
Sócrates Mas não é espantoso e impossível que aquilo
que nós aprovamos seja também aprovado par outros?
Adimanto Não acredito.
Sócrates E, como demonstramos suficientemente, julgo
eu, que o nassa projeto é a melhor, se for realizável?
Adimanto Suficientemente, com efeito.
Sócrates Parece, pois, que somos levados a concluir, no
que cancerne ao nassa plano de legislação, que, par um lado,
é excelente, se puder ser realizado e, por outra, a sua realização
é difícil, mas não impossível.
Adimanto De fato, somos levados a isso.
Sócrates Muito bem! Já que chegamos, não sem dificuldade,
a este resultado, precisamos tratar do que se segue, isto
é, de que maneira, por que estudas e exercícios, formaremos
os homens capazes de guardar e manter a constituição e em
que idade devemos consagrá-los a isso.
Adimanto Sim, precisamos tratar dessa questão.
Sócrates Em vão usei toda a minha habilidade, quando
pretendi passar em silêncio a difícil questão da posse das mulheres,
da procriação dos filhos e da eleição das magistrados,
sabendo quanto a verdade completa é malvista e difícil de aplicar;
agora, com efeito, não me vejo menos obrigado a falar disso.
E certo que esgotamos a questão das mulheres e dos filhos;
mas, no que concerne aos magistrados, é preciso rever o problema
desde o início. Dissemos, como deves te lembrar, que
eles deviam fazer ressaltar a seu amor à pátria quando submetidas
à prova do prazer e da dor, e jamais renunciar à sua
convicção patriótica no meio dos trabalhos, dos perigos e das
outras vicissitudes; que era precisa excluir quem se mostrasse
fraco e escolher para magistrado e cumulá-lo de distinções e
honras, durante a vida e depois da morte, quem saísse de todas
essas provas tão pura como o ouro do fogo. E isto a que eu
disse em termos indiretos e dissimulados, receando provocar a
discussão em que estamos empe~dos agora.
Adimanto É verdade, lembro-me perfeitamente.
Sócrates Eu vacilei, meu amigo, em dizer o que diga
agora. Mas a decisão está tomada e afirmo que os melhores
magistrados do Estado devem ser os filósofos.
Adimanto Que seja.
Sócrates Repara como é pequeno o número deles. Com
efeito, as qualidades que, em nossa opinião, devem compor o
seu temperamento raramente se encontram reunidas no mesmo
indivíduo; quase sempre essas qualidades estão esparsas entre
muitas pessoas.
Adimanto Que queres dizer?
Sócrates Os que são dotados de facilidade em aprender,
de memória, de inteligência, de sagacidade e de todas as outras
qualidades semelhantes, não possuem o hábito, como sabes, de
aliar naturalmente a isso a generosidade e a grandeza de alma
que lhes possibilite viver na ordem com calma e constância. Ao
contrário, tais homens deixam-se arrastar pela própria vivacidade
e não apresentam nada de estável.
Adimanto Tens razão.
Sócrates Contudo, os homens de caráter firme e sólido,
com quem sempre podemos contar, e que na guerra se mantêm
impassíveis diante do perigo, em geral não são aptos para as
ciências: embrutecidos, são lentas a compreender, e adormecem
quando têm de se entregar a um trabalho intelectual.
Adimanto E isso mesma.
Sócrates Dissemos que os magistrados devem possuir
todas aquelas qualidades, sem o que não podem aspirar nem
a uma educação superior nem às honras nem ao poder.
Adimanto Dissemos isso com razao.
Sócrates Muito bem! Admites que isso seja raro?
Adimanto Sim, admito.
Sócrates Então, além da prova dos trabalhos e perigos,
à qual é necessário sujeitá-los, vou acrescentar que é preciso
exercitá-los num grande número de ciências, para verificar se
a sua natureza está apta a suportar os mais altas estudas au
se fraquejam, como outros fazem nos exercícios de ginástica.
Adimanto Quais são esses altos estudos a que te referes?
Sócrates Talvez te lembres de que, após termos distinguido
três partes na alma, utilizamos essa distinção para explicar
a natureza da justiça, da moderação, da coragem e da sabedoria.
Adimanto Se eu não me lembrasse, não seria merecedor
de ouvir o resta.
Sócrates Lembras-te também da que dissemos antes?
Adimanto Sobre o quê?
Sócrates Dissemos que para chegar ao conhecimento
mais perfeito destas virtudes existia um caminha mais longo e
que elas se revelariam claramente a quem o percorresse; mas
que também era possível ligar a demonstração ao que fora dito
anteriormente. Vós admitistes que isso bastava e, desse modo,
a demonstração que foi feita careceu, a meu ver, de exatidão.
Se estais satisfeitos, compete a vós dizê-lo.
Adimanto Porém, tenho a impressão de que nos respondeste
com exatidão, a que é também a opinião das outros.
Sócrates Mas, meu amigo, em semelhantes questões,
toda a exatidão que se afaste, o mínimo que for, da realidade não
é uma exatidão total, pois nada que é imperfeito é exatidão total
de nada. Na entanto, há às vezes quem imagine que isso basta e
que não há necessidade de aprofundar mais as investigações.
Adimanto De fato, é a idéia que a preguiça inspira a
muitas pessoas.
Sócrates Mas, se existe alguém que deva defender-se
de tê-la, este alguém é precisamente a guardião da Estado e
das leis.
Adimanto Assim parece.
Sócrates E necessário, então, meu amigo, que ele siga
o caminho mais longo e que trabalhe tanto em instruir-se como
em exercitar o corpo; caso contrário, como dissemos, nunca chegará
ao termo dessa ciência sublime na qual lhe compete, mais
que a qualquer outro, instruir-se com perfeição.
Adimanto Portanto, aquilo de que falamos não é o que
há de mais sublime, pois existe algo mais elevado que a justiça
e as virtudes que enumeramos?
Sócrates Sim, algo mais elevado. E acrescento que não
é suficiente contemplar, coma fazemos agora, um mero esboço
dessas mesmas virtudes: não podemos eximir-nos de procurar
a quadro mais perfeita. Efetivamente, não seria ridículo lançar
mão de todos os meios para chegar, em questões de somenos
importância, ao mais alto grau de precisão e clareza e não considerar
dignas da maior aplicação as questões mais elevadas?
Adimanto Seria. Mas crês que te deixaremos continuar
sem te perguntarmos que ciência é essa que denominas a mais
elevada e qual é a seu objeto?
Sócrates Não creio, mas interroga-me. Na verdade, ouviste-
me falar várias vezes dessa ciência; agora, porém, ou te
esqueceste ou pensas em me causar novos embaraços. E inclina-
me para esta última opinião, pois me ouviste muitas vezes
afirmar que a idéia do bem é o mais alto dos conhecimentos,
aquela de que a justiça e as outras virtudes tiram a sua utilidade
e as suas vantagens. Não ignoras, agora, que é isto o que vau
dizer, acrescentando que não conhecemos suficientemente esta
idéia. Ora, se não a conhecemos, embora conheçamos o melhor
possível todo o resto, sabes que estes conhecimentos não nos
valerão de nada sem ela, da mesma forma que a passe de um
objeto sem a do bem. Com efeito, julgas vantajoso possuir muitas
coisas, se não forem boas, ou conhecer tudo, com exceção do
bem, e não conhecer nada de belo nem de bom?
Adimanto Não, por Zeus, não acho.
Sócrates E também sabes que, na opinião de muitos, a
bem consiste no deleite, enquanto os mais requintados pensam
que consiste na inteligência.
Adimanto Sim, eu sei.
Sócrates E também não ignoras, meu amigo, que aqueles
que assim pensam nao conseguem explicar de que inteligência
se trata, mas são forçados a confessar, por último, que é da
inteligência do bem.
Adimanto Sim, e isso é muita divertido.
Sócrates É de fato divertido que, ao mesmo tempo que
censuram a nossa ignorância a respeito do bem, falam-nos dele
como se o conhecêssemos. Dizem-nos que é a inteligência do
bem, como se devêssemos compreendê-los logo que pronunciam
a palavra bem.
Adimanto Exatamente.
Sócrates Mas, par acaso, estão menos equivocados os que
identificam o bem coma prazer? O seu erro é menor do que o
dos outros? E não são obrigadas a admitir que há prazeres maus?
Adimanto Por certo.
Sócrates Acontece-lhes, no entanto, penso eu, admitir
que as mesmas coisas são boas e más. Não é assim?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Logo, é evidente que a questão comporta numerosas
e profundas dificuldades.
Adimanto Não há como negá-la.
Sócrates Muito bem! Não é evidente que, em sua maioria,
as pessoas se contentam com a simples aparência do justo
e do belo e que, ao contrária, ninguém se satisfaz com o que
parece bom, procurando a que de fato a é, e cada um, neste
campo, despreza a aparência?
Adimanto Com certeza.
Sócrates Ora, esse bem que todas as almas buscam atingir,
de cuja existência suspeitam, embora com incerteza, sem
conseguir defini-lo e acreditar nele com a fé sólida que têm em
outras coisas, o que torna essas outras coisas inúteis, esse bem
tão grande e precioso deverá ficar coberto de trevas para as
eminentes cidadãos a quem confiaremos tudo?
Adimanto Sem dúvida que não.
Sócrates Julgo, então, que as coisas justas e belas terão
um guardião e defensor de pouca valor, se este ignorar em que
é que elas são boas. Afirmo até que ninguém as conhecerá bem
sem antes conhecer o bem.
Adimanto Tua afirmação é correta.
Sócrates Muito bem! Teremos, portanto, um governo
perfeitamente organizado, se tiver por líder um magistrado que
detenha esse conhecimento?
Adimanto Sim, teremos. Mas tu, Sócrates, pensas que
o bem seja a ciência, o prazer ou qualquer outra coisa?
Sócrates Finalmente! Eu tinha certeza de que, nesse assunto,
não te contentarias com a opinião dos outros!
Adimanto E que não acho justo, Sócrates, que exponhas
as opiniões dos outros e não as tuas, depois de haver tratado
há tanta tempo dessas questões.
Sócrates Como assim? Então, achas justo que um homem
fale do que ignora, coma se o soubesse?
Adimanto Não como se o soubesse, mas expando sua
opinião a respeito.
Sócrates Muito bem! Não percebeste coma são ridículas
as opiniões que não se baseiam na ciência? As melhores são
cegas. Vês alguma diferença entre cegos que seguem pelo caminha
certa e aqueles que possuem uma opinião verdadeira a
respeito de alguma coisa, mas sem ter a compreensão dessa
mesma coisa?
Adimanto Nenhuma.
Sócrates Preferes então observar coisas feias e disformes,
em lugar de ouvir a exposição de coisas brilhantes e belas?
Adimanto Par Zeus, Sócrates, não pare como se tivesses
chegado ao fim. Ficaremos satisfeitos se nas explicares a natureza
do bem como o fizeste com a natureza da justiça, da temperança
e das demais virtudes.
Sócrates Eu também ficaria plenamente satisfeito, mas
temo ser incapaz disso; e, se tiver coragem para o tentar, receio
que a minha incompetência provoque zombarias. Mas, meus
caros amigas, não nas ocupemos agora com o que possa ser
bem em si mesmo, pois me parece algo muito elevado para
que o nosso esforço nos conduza, neste momento, até a concepção
que tenho dele. Contudo, se vós desejares, consinto em
falar-vos do que me parece ser o fflho, o fruto do bem e do
que mais se lhe assemelha.
Adimanto Fala-nos do filho. Pagarás a tua dívida em
outra ocasião, falando-nos do pai.
Sócrates Gostaria que eu pudesse pagar e vós receberdes
a dívida dessa explicação e que não tivéssemos de nos contentar
com os juros! Recebei pois, este filho, este fruto do bem em si
mesmo. Mas cuidai para que eu não vos engane involuntariamente,
dando-vos um valor errado do jura.
Adimanto Tomaremos o máxima cuidado possível.
Agora, fala.
Sócrates Antes, é necessário que nos ponhamos de acordo
e que eu vos recorde o que foi dito há pouco e em vários
outros encontros entre nos.
Adimanto O que é?
Sócrates Declaramos que existem numerosas coisas belas,
numerosas coisas boas, muitas coisas de outras espécies
cuja existência afirmamos e distinguimos na linguagem.
Adimanto De fato, declaramos.
Sócrates Declaramos também que existe a belo em si,
o bom em si e, igualmente, em relação a todas as coisas que
agora mesmo indicamos como sendo múltiplas, declaramos que
a cada uma delas também corresponde a sua idéia, que denominamos
essência da coisa.
Adimanto Exata.
Sócrates E afirmamos que umas são percebidas pela
vista, e não pelo pensamento, mas que as idéias são concebidas
e não vistas.
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates Ora, qual é a sentido que nos permite perceber
as coisas visíveis?
Adimanto A visaa.
Sócrates Então, apreendemos as sons pela audição e,
pelos outros sentidos, todas as coisas sensíveis, não é verdade?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Porém, já raciocinaste que o artífice das nossos
sentidos teve de se esforçar bem mais para modelar a faculdade
de ver e ser visto da que as outras?
Adimanto Nunca pensei nisso.
Sócrates Considera o seguinte: o ouvido e a voz precisam
de algum elemento de espécie diferente, o primeiro para ouvir
e a segunda para ser ouvida, de modo que, se esse terceiro
elemento vier a faltar, o primeiro não ouça e a segunda não
seja ouvida?
Adimanto De modo algum.
Sócrates Eu penso que as outras faculdades não precisam
de nada semelhante. Ou podes citar-me alguma?
Adimanto Não.
Sócrates Mas nãõ sabes que a faculdade de ver e ser
visto precisa disso?
Adimanto Como assim?
Sócrates A visão pode estar situada nos olhos, e estes
podem ser usados para enxergar; a cor, da mesma maneira, pode
estar nos objetos. Contudo, se a isso não for acrescentado um
terceiro elemento, a vista nada veni e as cores não serão percebidas.
Adimanto De que elemento estás falando?
Sócrates Aquele que denominas luz.
Adimanto Tens razão.
Sócrates Logo, o sentido da visão e a faculdade de ser
visto estão unidos por um laço incomparavelmente mais precioso
do que aquele que estabelece as outras uniões, desde que
a luz não seja uma coisa desprezível.
Adimanto De maneira nenhuma ela é desprezível.
Sócrates Qual é, então, na tua opinião, de todos os deuses
do céu, aquele que pode realizar essa união, aquele cuja
luz faz com que os nossos olhos vejam da melhor maneira possível,
e que os abjetas visíveis sejam vistas?
Adimanto O mesmo que tu e todas as pessoas reconhecem
como senhor: o Sol.
Sócrates Então, não está a vista, pela sua natureza, nesta
relação com esse deus?
Adimanto Que relação?
Sócrates Nem a vista é a Sol, nem o é o olho, onde a
vista se forma.
Adimanto Evidente que não.
Sócrates Porém, de todos os órgãos dos sentidos, o olho
é, no meu entender, o que mais se assemelha ao Sol.
Adimanto Sim, sem dúvida.
Sócrates Muito bem! E o poder que o olho possui não
lhe vem do Sol, como uma emanação deste?
Adimanto Certamente.
Sócrates Não é também verdade que o Sol, que não é
a vista, mas seu princípio, é percebido por ela?
Adimanto Sim, e.
Sócrates Pois é o Sol que eu chamo de filho do bem,
que o bem engendrou à sua própria semelhança. Aquilo que o
bem é, no campo da inteligência em relação ao pensamento e
aos seus objetos, o Sol o é no campo da visível, em relação à
vista e aos seus objetos.
Adimanto Cama assim? Explica-me isso.
Sócrates Tu sabes, logicamente, que os olhos, quando contemplam
objetos cujas cores não são iluminadas pela luz da dia,
mas pela claridade dos astros noturnos, perdem a acuidade e parecem
quase cegos, como se não fossem providos de visão clara.
Adimanto Sei-o muito bem.
Sócrates Mas, quando se voltam para abjetos que o Sol
ilumina, enxergam distintamente e mostram que são providos
de visão clara.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Admite, portanto, que se dá o mesmo a respeito
da alma. Quando eh fixa a olhar naquilo que a verdade e o
ser iluminam, compreende-o, conhece-o e mostra que é dotada
de inteligência; mas, quando olha para aquilo que está obscurecido,
para o que nasce e morre, a sua vista fica embaçada,
passa a ter apenas opiniões, indo sem cessar de uma a outra e
parece desprovida de inteligência.
Adimanto Realmente, parece desprovida dela.
Sócrates Confessa, então, que o que derrama a luz da
verdade sobre os objetos do conhecimento e proporciona ao
indivíduo o poder de conhecer é a idéia do bem. Podes concebê-
la como objeto de conhecimento por ela ser o princípio da
ciência e da verdade, mas, por mais belas que sejam estas duas
coisas, a ciência e a verdade, não te equivocarás se pensares
que a idéia do bem é distinta delas e as ultrapassa em beleza.
Como no mundo visível se considera, e com razão, que a luz
e a visão são semelhantes ao Sol, mas se acredita, erroneamente,
que são o SoL da mesma forma no mundo inteligível é correta
pensar que a cidade e a verdade são, uma e outra, semelhantes
ao bem, mas é errado julgar que uma ou outra seja o bem; a
natureza do bem deve ser considerada muito mais preciosa.
Adimanto No teu moda de ver, a sua beleza é extraordinária,
sempre que produz a d&ria e a verdade, e é ainda mais
belo do que elas. Por certo que não o identificas com o prazer.
Sócrates Deus me livre de tal coisa! Mas considera a
imagem da bem da maneira que vou dizer.
Adimanto Como?
Sócrates Creio que admitirás que o Sol fornece às coisas
visíveis não apenas a capacidade de serem vistas, mas também
a criação, o crescimento e a nutrição, apesar de ele mesmo não
ser criação.
Adimanto Efetivamente, não o e.
Sócrates Admite também que as coisas cognoscíveis não
recebem da bem apenas a sua inteligibilidade, mas também retiram
dele a sua existência e a sua essência, apesar de o bem não ser a
essência, mas estar muita acima desta em dignidade e poder.
Nesse momento, Glauco exclamou com vivacidade:
Por Apoio! Que maravilhosa superioridade!
Sócrates A culpa é também tua! Por que me forçar a
dizer o que penso acerca desse assunto?
Glauco Termina a tua comparação com o Sol, se par
acaso tens alga mais a dizer.
Sócrates Com certeza, ainda me falta muito a dizer!
Glauco Então, não omitas nada.
Sócrates Penso que, sem querer, omitirei muitas coisas.
Contudo, tomarei o cuidada de tudo dizer neste momento.
Glauco Está bem.
Sócrates Considera, então, que existem dois reis, reinando
um sobre o campo do cognoscível e o outro, do visível:
não diga do céu, com receio de que penses que brinco com as
palavras. Mas consegues imaginar estes dais gêneros, a visível
e o cognoscível?
Glauco Consigo.
Sócrates Agora, pega uma linha cortada em dois segmentos
desiguais, representando um o gênero visível, o outro o
cognoscivel, e corta de novo cada segmento respeitando a mesma
proporção; terás então, classificando as divisões obtidas conforme
o seu grau relativo de clareza ou de obscuridade, no mundo visível,
um primeiro segmento, a das imagens. Denomino imagens primeiramente
às sombras, depois aos reflexos que se vêem nas águas
ou na superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes, e a todas
as representações semelhantes. Compreendes?
Glauco Lógico que sim.
Sócrates Considera agora que o segundo segmento corresponde
aos objetos que essas imagens representam, ou seja,
os animais que nos cercam, as plantas e todas as obras de arte.
Glauco Estou considerando.
Sócrates Concordas também em dizer que, no que concerne
à verdade e ao seu contrário, a divisão foi feita de tal
modo que a imagem está para o objeto que reproduz como a
opinião está para a ciência?
Glauco Concordo plenamente.
Sócrates Vê agora cama deve ser dividido o mundo
cognoscível.
Glauco Como?
Sócrates Na primeira parte desse segmento, a alma, utilizando
as imagens dos objetos que no segmento precedente
eram os originais, é obrigada a estabelecer suas análises partindo
de hipóteses, seguindo um caminho que a leva, nao a um pnnclpia,
mas a uma conclusão. Na segundo segmento, a alma parte
da hipótese para chegar ao princípio absoluto, sem lançar mão
das imagens, como no caso anterior, e desenvolve a sua análise
servindo-se unicamente das idéias.
Glauco Não compreendo muita bem o que dizes.
Sócrates Sem dúvida, compreenderás mais facilmente
depois de ouvires o que vou dizer. Sabes, penso eu, que aqueles
que se dedicam à geometria, à aritmética ou às outras
ciências do mesmo gênero pressupõem o par e o ímpar, as
figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da mesma
familia para cada pesquisa diferente; que, tendo pressuposto
estas coisas como se as conhecessem, não se dignam justificá-
las nem a si próprios nem aos outros, considerando que
elas são evidentes para todos; que, finalmente, a partir daí,
deduzem o que se segue e acabam por alcançar, de forma conseqüente,
a demonstração que tinham em vista.
Glauco Sei isso perfeitamente.
Sócrates Então, sabes também que eles utilizam figuras
visíveis e raciocinam sobre elas pensando não nessas mesmas
figuras, mas nos originais que elas reproduzem. Os seus raciocínios
baseiam-se no quadrado em si mesmo e na diagonal em
si mesma, e não naquela diagonal que traçam; o mesmo vale
para todas as outras figuras. Todas essas figuras que modelam
ou desenham, que produzem sombras e os seus reflexos nas
águas, eles as utilizam como tantas outras imagens, para tentar
ver esses objetas em si mesmas, que, de outro modo, só podem
ser percebidos pelo pensamento.
Glauco É verdade.
Sócrates Eu afirmava que os objetos desse gênero pertencem
à classe do cognoscíveL mas que, para conseguir conhecê-
los, a alma é obrigada a recorrer a hipóteses, servindo-se
destas como de imagens dos mesmos objetas que produzem
sombras no segmento inferior, e que, em relação a essas sombras,
são tidas e considerados como claros e distintos.
Glauco Compreendo que o que dizes se refere à geometria
e às ciências da mesma natureza.
Sócrates Percebes agora que entendo por segunda divisão
do mundo cognoscível aquela que a razão alcança pelo
poder da dialética, considerando suas hipóteses não princípios,
mas simples hipóteses, isto é, pontos de apoia e trampolins
para se elevar até o princípio universal que já não admite hipóteses.
Atingido esse princípio, ela se apega a todas as conseqüências
que decorrem dele, até chegar à última conclusão,
sem recorrer a nenhum dado sensíveL mas somente às idéias,
pelas quais procede e às quais chega.
Glauco Compreendo-te em parte, mas não satisfatoriamente,
porque tratas de um tema muita difícil. Queres estabelecer
que a conhecimento do ser e do inteligível, que é adquirido
pela ciência da dialética, é mais claro que aquele que é adquirido
pela que denominamos ciências, as quais possuem hipóteses
como princípios. E certo que aqueles que se consagram às ciências
são obrigados a utilizar o raciocínio, e não os sentidos. No
entanto, visto que nas suas investigações não apontam para um
princípio, mas partem de hipóteses, julgas que eles não têm a
inteligência dos objetos estudadas, mesmo que a tivessem com
um princípio. Parece-me que denominas conhecimento discursivo,
e não inteligência, a geometria e outras ciências do mesmo
gênero, considerando esse conhecimento intermediário entre a
opinião e a inteligência.
Sócrates Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora
a estas quatro seções estas quatro operações da alma: a inteligência
à seção mais elevada, o conhecimento discursivo à segunda,
a fé à terceira, a imaginação à última; e dispõe-nas por
ordem de clareza, partindo do princípio de que, quanto mais
seus objetos participam da verdade, mais eles são claros.
Glauco Compreendo. Concorda contigo e adoto a ordem
que tu sugeres.
LIVRO VII
SÓCRATES Agora imagina a maneira como segue o estado
da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância.
Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna,
com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí
desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo
que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles,
poisas correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes
de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás
deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente.
Imagina que ao longo dessa estrada está construída um
pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores
de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as
suas maravilhas.
Glauco Estou vendo.
Sócrates Imagina agora, ao longo desse pequeno muro,
homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem:
estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e
toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores,
uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco Um quadra estranho e estranhas prisioneiros.
Sócrates Assemelham-se a nós. E, para começar, achas
que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si
mesmos e dos seus companheiros, mais da que as sombras projetadas
pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel
durante toda a vida?
Sócrates E com as coisas que desfflam? Não se passa
o mesmo?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Portanto, se pudessem se comunicar uns com
as outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras
que veriam?
Glauco E bem possível.
Sócrates E se a parede do fundo da prisão provocasse
eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam
ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco Sim, por Zeus!
Sócrates Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade
senão às sombras dos objetos fabricados.
Glauco Assim terá de ser.
Sócrates Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente,
se forem libertados das suas cadeias e curadas da
sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja
ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço,
a caminhar, a erguer as olhos para a luz: ao fazer todos estes
movimentas sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir
os abjetos de que antes via as sombras. Que achas que
responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão
fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado
para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-
lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força
de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada
e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras
do que as objetos que lhe mostram agora?
Glauco Muito mais verdadeiras.
Sócrates E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos
não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às
coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente
mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates E se o arrancarem à força da sua caverna, o
obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem
antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente
e não se queixará de tais violências? E, quando tiver
chegado à luz, poderá, com os olhas ofuscados pelo seu brilho,
distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco Não o conseguirá, pelo menos de Inicio.
Sócrates Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver
os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente
as sombras; em seguida, as imagens dos homem e dos
outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios
objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros
e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos
celestes e o próprio céu da que, durante o dia, o Sol e a sua luz.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas
imagens refletidas nas águas au em qualquer outra coisa, mas
o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar
tal como e.
Glauco Necessariamente.
Sócrates Depois disso, poderá concluir, a respeito do
Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo
no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o
que ele via com os seus companheiros, na caverna.
Glauco E evidente que chegará a essa conclusão.
Sócrates Ora, lembrando-se da sua primeira morada,
da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus
companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a
mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates E se então distribuíssem honras e louvares, se
tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o
olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse
das que costumavam chegar em primeiro ou em última
lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar
a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que,
entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então,
como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples
criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer
tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Glauco Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter
de viver dessa maneira.
Sócrates Imagina ainda que esse homem volta à caverna
e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos
cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco Por certo que sim.
Sócrates E se tiver de entrar de nova em competição
com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes,
para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e
antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se
à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os
outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima,
voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar
subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o
alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco Sem nenhuma dúvida.
Sócrates Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto
por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar
o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a
luz da fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida
à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares
como a ascensão da alma para a mansão inteligível,
não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu
desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a
mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do
bem é a última a ser apreendida, e com dfficuldade, mas não
se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o
que de reto e belo existe em todas as coisas; na mundo visível,
ela engendrou a luz e o soberana da luz; no mundo inteligível,
é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é
preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular
e na vida pública.
Glauco Concordo com a tua opinião, até onde posso
compreendê-la.
Sócrates Pois bem! Compartilha-a também neste ponto
e não te admires se aqueles que se elevaram a tais alturas desistem
de se ocupar das coisas humanas e as suas almas aspiram
sem cessar a instalar-se nas alturas. Isto é muito natural, se a
nossa alegoria for exata.
Glauco Com efeito, é muito natural.
Sócrates Mas coma? Achas espantoso que um homem
que passa das contemplações divinas às miseráveis coisas humanas
revele repugnãncia e pareça inteiramente ridículo,
quando, ainda com a vista perturbada e não estando suficientemente
acostumado às trevas circundantes, é obrigado
a entrar em disputa, perante os tribunais ou em qualquer outra
parte, sobre sombras de justiça ou sobre as imagens que projetam
essas sombras, e a combater as interpretações que disso
dão os que nunca viram a justiça em si mesma?
Glauco Não há nisso nada de espantoso.
Sócrates No entanto, um homem sensato lembrar-se-á de
que os olhos podem ser perturbados de duas maneiras e por duas
causas apostas: pela passagem da luz à escuridão e pela da escuridão
à luz; e, tento refletido que o mesmo se passa com a
alma, quando encontrar uma confusa e embaraçada para discernir
certos objetos, não se rirá tolamente, mas antes examinará se, vinda
de uma vida mais luminosa, ela se encontra, por falta de hábito,
ofuscada pelas trevas ou se, passando da ignorância à luz, está
deslumbrada pelo seu brilho demasiado vivo; no primeiro caso,
considerá-la-á feliz, em virtude do que ela sente e da vida que
leva; no segundo, lamentá-la-á e, se quisesse rir à sua custa, as
suas zombarias seriam menos ridículas do que se se dirigissem à
alma que regressa da mansão da luz.
Glauco E a isso que se chama falar com muita sabedoria.
Sócrates Se tudo isto é verdadeiro, temos de concluir
o seguinte: a educação não é o que alguns proclamam que é,
porquanto pretendem introduzi-la na alma onde ela não está,
como quem tentasse dar vista a olhas cegos.
Glauco Mais uma verdade.
Sócrates Ora, o presente discurso demonstra que cada
um possui a faculdade de aprender e o órgãa destinado a esse
uso e que, semelhante a olhos que só poderiam voltar das trevas
para a luz com todo o corpo, esse órgão deve também afastar-se
com toda a alma do que se altera, até que se tome capaz de
suportar a vista do Ser e do que há de mais luminoso no Ser.
A isso denominamos o bem, não é verdade?
Glauco E.
Sócrates A educação é, pois, a arte que se propõe este
objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios mais
fáceis e mais eficazes deo conseguir. Não consiste em dar visão
ao órgãa da alma, visto que já a tem; mas, como ele está mal
Orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por educá-lo na boa
direção.
Glauco Assim parece.
Sócrates Agora, as outras virtudes, chamadas virtudes
da alma, parecem aproximar-se das da corpo. Porquanto, na
realidade, quando não se as tem desde o princípio, pode-se
adquiri-las depois pelo hábito e pelo exercício. Mas a capacidade
de pensar pertence muito provavelmente a algo de mais divino,
que nunca perde a sua força e que, segundo a direção que se
lhe imprime, se torna útil e vantajoso ou inútil e prejudicial.
Não notaste ainda, a propósito das pessoas consideradas más,
mas hábeis, como são perscrutadores os olhos da sua miserável
almazinha e com que acuidade distinguem os abjetos para que
se voltam? A alma delas não tem uma vista fraca, mas, como
é obrigada a servir a sua malícia, quanto mais aguçada é a sua
vista, mais mal faz.
Glauco Essa observação é inteiramente exata.
Sócrates E, contudo, se tais temperamentos fossem disciplinados
logo na infância e se cortassem as más influências
dos maus pendores, que são como pesas de chumbo, que aí se
desenvolvem por efeito da avidez, dos prazeres e dos apetites
da mesma espécie, e que fazem a vista da alma se voltar para
baixo; se, libertos desse peso, fossem orientadas para a verdade,
esses mesmos temperamentos vê-la-iam com a máxima nitidez,
como vêem os objetos para os quais se orientam agora.
Glauco E verossímil.
Sócrates Ora bem! Não é igualmente verossímil, de acordo
com o que dissemos, que nem as pessoas sem educação e sem
conhecimento da verdade nem as que deixamos passar toda a
vida no estuda são aptas para o governo da cidade, umas porque
não têm nenhum objetivo determinado a que possam referir tudo
o que fazem na vida privada ou na vida pública, as outras porque
não consentirão em encarregar-se disso, julgando-se já transportadas
em vida para as ilhas dos mais afortunados?
Glauco É verdade.
Sócrates Será nossa tarefa, portanto, obrigar os mais
bem dotados a orientarem-se para essa ciência que há pouco
reconhecemos como a mais sublime, a verem o bem e a procederem
a essa ascensão; mas, depois de se terem assim elevado
e contemplado suficientemente o bem, evitemos permitir-lhes
o que hoje se lhes permite.
Glauco O quê?
Sócrates Ficar lá em cima, negar-se a descer de novo
até os prisioneiros e compartilhar com eles trabalhos e honras,
seja qual for a casa em que isso deva ser feita.
Glauco Como assim?! Cometeremos em relação a eles
a injustiça de os forçar a levar uma vida miserável, quando
poderiam desfrutar uma condição mais feliz?
Sócrates Esqueces uma vez mais, meu amigo, que a lei
não se ocupa de garantir uma felicidade excepcional a uma
classe de cidadãos, mas esforça-se por realizar a felicidade de
toda a cidade, unindo os cidadãos pela persuasão ou a sujeição
e levando-os a compartilhas as vantagens que cada classe pode
proporcionar à comunidade; e que, se ela forma tais homens
na cidade, não é para lhes dar a liberdade de se voltarem para
o lada que lhes agrada, mas para os levar a participar na fortificação
do laçado Estado.
Glauco É verdade, tinha me esquecido disso.
Sócrates Aliás, Glauco, nota que não seremos culpados
de injustiça para com os fflósofas que se formarem entre nós,
mas teremos justas razões a apresentas-lhes, forçando-os a encarregar-
se da orientação e da guarda dos outros. Diremos a
eles: Nas outras cidades, é natural que aqueles que se tornaram
filósofos não participem nos trabalhas da vida pública, visto
que se formaram a si mesmos, apesar da governo dessas cidades;
ora, é justa que aquele que se forma a si mesmo e não deve o
sustento a ninguém não queira pagar o preço disso a quem
quer que seja. Mas vós fostes formados por nós, tanto no interesse
do Estado como no vosso, para serdes o que são: os reis
nas colmeias; demos-vos uma educação melhor e mais perfeita
que a desses filósofos e tornamos-vos mais capazes de aliar a
condução dos negócios ao estudo da fflosafia. Por isso, é precisa
que desçais, cada um por sua vez, à morada comum e vos acostumeis
às trevas que aí reinam; quando vos tiverdes familiarzado
com elas, vereis mil vezes melhor que os habitantes desse
lugar e conhecereis a natureza de cada imagem e de que objeto
ela e a Imagem, porque tereis contemplado verdadeiramente o
belo, o justo e o bem. Assim, a governo desta cidade, que é a
vossa e a nossa, será uma realidade, e não um apenas sonho,
como o das cidades atuais, onde os chefes se batem por sombras
e disputam a autoridade, que consideram um grande bem. A
verdade é esta: a cidade onde os que devem mandar são os
menos apressados na busca do poder é a mais bem governada
e a menos sujeita à sedição, e aquela onde os chefes revelam
disposições contrárias está ela mesma numa situação contrária.
Glauco Perfeitamente.
Sócrates Achas então que os nossos alunos resistirão a
estas razões e se recusarão a participar, alternadamente, nas
trabalhos do Estado, passando, por outro lado, juntos a maior
parte do seu tempo na região da pura luz?
Glauco E impossível, porque as nossas prescrições são
justas e dirigem-se a homens justos. Mas é cedo que cada um
deles só chegará ao poder por necessidade, contrariamente ao
que fazem hoje os chefes em todos os Estados.
Sócrates Sim, é isso mesmo, Glauco. Se descobrires uma
condição preferível ao poder para os que devem mandar, serte-
á passível ter um Estado bem governado. Certamente, neste
Estada só mandarão os que são verdadeiramente ricos, não de
ouro, mas dessa riqueza de que o homem tem necessidade para
ser feliz: uma vida virtuosa e sábia. Pela contrário, se os mendigos
e os necessitados de bens pessoais procurarem os negócios
públicos convencidos de que é deles que podem extrair suas
vantagens, isso não será possível. As pessoas guerreiam para
obterem o poder, e esta guerra doméstica e interna perde não
só os que a travam como também o restante da cidade.
Glauco Nada mais verdadeiro.
Sócrates Conheces outra condição, além da do verdadeiro
filósofo, para inspirar o desprezo pelos cargos públicos?
Glauco Não, por Zeus!
Sócrates Por outro lado, é preciso que as que estão
enamorados da poder não lhe façam a corte, pois de outro modo
haverá lutas entre pretendentes rivais.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Por conseguinte, a quem imporás a guarda da
cidade, a não ser aos que melhor conhecem os meios de bem
governar um Estado e que têm outras honras e uma condição
preferível à do homem público?
Glauco A mais ninguém.
Sócrates Queres que examinemos agora como se formarão
homens com este caráter e como os faremos subir para
a luz, como se diz daqueles que do Hades subiram à mansão
dos deuses?
Glauco Por que não quereria eu?
Sócrates Não será, certamente, um simples jogo, rápido
e fortuito. Tratar-se-á de operar a conversão da alma de um dia
tão tenebmso como a noite para o dia verdadeiro, isto é, elevá-la
até o ser. E é a isso que chamaremos a verdadeira filosofia.
Glauco Perfeitamente
Sócrates Temos de examinar entre as ciências qual é a
que está em condições de produzir este efeito.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Qual é a ciência que arrasta a alma daquilo
que é passageiro para aquilo que é essencial? Mas, por falar
nisso, ocorre-me o seguinte: não dissemos que os nossos filósofos
deviam ser, quando jovens, atletas guerreiros?
Glauco Sim, dissemos.
Sócrates Portanto, é preciso que a ciência que procuramos,
além desta primeira vantagem, tenha ainda outra.
Glauco Qual?
Sócrates A de não ser inútil a homens de guerra.
Glauco Por certo que é preciso, se for possível.
Sócrates Ora, foi pela ginástica e pela música que os
formamos de início.
Glauco Sim, foi.
Sócrates Mas a ginástica tem por objetivo cuidar do
que se transforma e morre, visto que se ocupa do desenvolvimento
e do definhamento do corpo.
Glauco Evidentemente.
Sócrates Portanto, não é a ciência que procuramos.
Glauco Não, por certo.
Sócrates Será a música, tal como a descrevemos mais acima?
Glauco Mas ela não era, se bem te lembras, senão a
contrapartida da ginástica, formando os soldados pelo hábito
e comunicando-lhes, por meio da harmonia, uma certa consonância,
e não a ciência, e uma certa regularidade por meio do
ntmo; e nos discursos os seus intentos eram semelhantes, quer
se tratasse de narrativas fabulosas ou verdadeiras; mas não compOrtava
nenhum ensinamento que conduzisse ao objetivo que
agora te propões.
Sócrates Lembras-me com toda a exatidão o que disse..
mas: na verdade, não comportava nenhum. Mas então, prezado
Glauco, qual será esse estudo, já que as artes pareceram-nos
todas mecânicas?
Glauco Pois quê! Mas que outro estudo nos resta se
nos afastarmos da música, da ginástica e das artes?
Sócrates . Bem, se não encontrarmos nada fora disso,
tomemos um desses estudos que abrangem tudo.
Glauco Qual?
Sócrates Por exemplo, esse estudo comum, que serve
para todas as artes, para todas as operações do espírito e todas
as ciências e que é um dos primeiros a que todos os homens
devem consagrar-se.
Glauco Qual é?
Sócrates Esse estudo vulgar que ensina a distinguir um,
dois e três. Quero dizer, numa palavra, a ciência dos números
e do cálculo. Não é verdade que nenhuma arte, nenhuma ciência,
pode passar sem ela?
Glauco Com certeza!
Sócrates Inclusive, nem a arte da guerra?
Glauco E forçoso que assim seja.
Sócrates Na verdade, Palamedes, o herói da guerra de
Tróia, sempre que aparece nas tragédias apresenta-nos Agamenon
sob o aspecto de um general muito divertido. Com efeito,
não pretende que foi ele, Palamedes, quem, depois de ter inventado
os números, dispOs o exército em ordem de batalha
diante de Ílion e fez a contagem dos navios e do resto como
se antes dele nada tivesse sido contado e Agamenon não soubesse
quantos pés tinha, visto que não sabia contar? Que general
seria este, na tua opinião?
Glauco Um general singular, se isso fossÉ verdade.
Sócrates Nesse caso, consideraremos necessária ao guerreiro
a ciência do cálculo e dos números.
Glauco E a ele absolutamente indispensável, se quiser
perceber alguma coisa da ordenação de um exército, ou, antes,
se quiser ser homem.
Sócrates Agora, estás a fazer a mesma observação que
eu a propósito desta ciência?
Glauco Qual?
Sócrates Que poderia ser uma dessas ciências que »rocuramos
e conduzem naturalmente à pura inteligência; mas
guém a utiliza como deveria, embora esteja totalmente apta a
elevar até o Ser.
Glauco Que queres dizer com isso?
Sócrates Tentarei te explicar a minha idéia: considera con~igo
o que distinguir como apto ou não a conduzir ao objetivo de que
falamos, depois dá ou recusa a tua aprovação, a fim de que possa
ver com mais clareza se as coisas são como as imagino.
Glauco Mostra-me de que se trata.
Sócrates Mostrar-te-ei, se quiseres ver, que entre os
jetos da sensaçao, uns não convidam o espírito à reflexão, por({üe
os sentidos bastam para julgar, ao passo que os outros convi4m
insistentemente a refletir, porque a sensação, por sua vez, ~ão
proporciona nada de são.
Glauco Falas, sem dúvida, dos objetos vistos a gratt~~
distância e dos desenhos em perspectiva.
Sócrates Não compreendeste nada do que quis diz~
Glauco Do que falas, então?
Sócrates Por objetos que não levam à reflexão entendo05
que não conduzem, ao mesmo tempo, a duas sensações opost~.
e considero os que dão ensejo a isso como provocadores da análise
visto que, quer os vejamos de perto, quer de longe, os senir
nao indicam que sejam um objeto ou o seu contrário. Mas com
preenderás mais facilmente o que quero dizer do seguinte moço;
eis aqui três dedos, o polegar, o indicador e o médio.
Glauco Muito bem.
Sócrates Imagina que eu os esteja vendo de perto; agora
faz comigo esta observação.
Glauco Qual?
Sócrates Cada um deles parece-nos um dedo; puco
importa que esteja no meio ou na extremidade da mão, que
seja branco ou preto, grosso ou fino, e assim por diante.
todos estes casos, a alma da maioria dos homens não é obrigada
a perguntar ao entendimento o que é um dedo, porque a visão
nunca lhe testemunhou ao mesmo tempo que um dedo fosse
algo diferente de um dedo.
Glauco É certo que não.
Sócrates É portanto natural que semelhante sensação
não incite o entendimento nem o despede.
Glauco É muito natural.
Sócrates Ora bem! A vista distingue com perfeição a grandeza
e a pequenez dos dedos e, a este respeito, lhe é indiferente
que um deles esteja no meio ou na extremidade? E não sucede o
mesmo quanto ao tato em relação à grossura e à finura, à moleza
e à dureza? E os demais sentidos não são igualmente defeituosos?
Não é assim que cada um deles procede? Em primeiro lugar, o
sentido destinado à percepção do que é duro tem por missão
sentir também o que é mole e transmite à alma que o mesmo
objeto lhe causa uma sensação de dureza e moleza.
Glauco E assim mesmo.
Sócrates Ora, não é inevitável que em tais casos a alma
fique confusa e pergunte a si mesma o que signffica uma sensação
que lhe apresenta a mesma coisa como dura e como mole?
De igual modo, na sensação de leveza e na de peso, o que deve
entender por leve e pesado, se uma lhe mostra que o pesado
é leve e a outra que o leve é pesado?
Glauco Com efeito, trata-se de estranhos testemunhos
para a alma e que certamente exigem uma análise.
Sócrates Portanto, é natural que a alma, solicitando em
seu auxílio o raciocínio e a inteligência, procure entender se cada
um desses testemunhos incide sobre uma coisa ou sobre duas.
Glauco Sem sombra de dúvida.
Sócrates E, se julgar que são duas coisas distintas, cada
uma delas parecer-lhe-á uma e diferente da outra.
Glauco Assim é.
Sócrates Portanto, se cada uma lhe parecer urna, e ambas
lhe parecerem duas, concebê-las-á como separadas; assim, se não
estivessem separadas, não as conceberia como sendo duas, mas urna.
Glauco Exato.
Sócrates A vista apreendeu, segundo dizemos, a grandeza
e a pequenez não separadas, mas misturadas, não foi?
Glauco Foi.
Sócrates E, para esclarecer esta confusão, o entendimento
é obrigado a ver a grandeza e a pequenez não mais misturadas,
mas separadas, contrariamente ao que fazia a visão.
Glauco É verdade.
Sócrates Ora, não é daí que nos surge a idéia de perguntarmos
a nós mesmos o que é a grandeza e a pequenez?
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates E foi assim que pudemos definir o inteligível
e o visível.
Glauco Precisamente.
Sócrates Aí está o que eu queria fazer compreender há
pouco, quando dizia que certos objetos convidam a alma à reflexão,
e outros não, distinguindo como aptos a convidá-la os que originam
ao mesmo tempo duas sensações opostas e os que não as
originam como incapazes de despertar o entendimento.
Glauco Agora compreendo e sou da tua opinião.
Sócrates E o número e a unidade, dasse os colocas?
Glauco Não sei.
Sócrates Julga, pois, pelo que acabamos de dizer, por analogia.
Se a unidade é apreendida em si mesma, de maneira satisfatória,
pela visão ou por qualquer outro sentido, não atrairá a
nossa alma para a essência, tal como o dedo que citávamos há
pouco; mas se a visão da unidade oferece sempre uma contradição,
de modo que não pareça mais unidade do que multiplicidade,
então será preciso alguém para decidir; o espírito fica, nessa situ
ação, forçosamente embaraçada e, despertando em si mesmo o
entendimento, é constrangido a indagar o que vem a ser a unidade;
é assim que a percepção intelectual da unidade é das que conduzem
e orientam o espírito para a contemplação do Ser.
Glauco Certamente a visão da unidade possui esse poder
em altíssimo grau, pois que vemos a mesma coisa ao mesmo
tempo una e múltipla até o infinito.
Sócrates E tua achas que, sendo assim para a unidade,
passa-se o mesmo com todos os números?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Então o cálculo e a aritmética se dedicam inteiramente
ao número?
Glauco Por certo que sim.
Sócrates São, por conseguinte, ciências com poder de
conduzir à verdade.
Glauco Sim, são.
Sócrates Sendo assim, parecem ser daquelas que
procuramos, visto que o seu estudo é necessário ao guerreiro
para compor a tática, e ao filósofo para sair da esfera da transformação
e alcançar a essência, sem o que nunca se tornaria
aritmético.
Glauco É verdade.
Sócrates Com que então, o nosso guardião é ao mesma
tempo guerreiro e filósofo?
Glauco Sem dúvida alguma.
Sócrates Seria excelente, portanto, Glauco, impor este estudo
por uma lei e persuadir os que têm de desempenhar altas
funções públicas a dedicarem-se à ciência do cálculo, não de modo
superficial, mas até chegarem à contemplação da natureza dos
números pela pura inteligência; e a se dedicar a esta ciência não
por interesse das vendas e das compras, como os negociantes e
os mercadores, mas da guerra, e para facilitar a ascensão da alma
do mundo da geração para a verdade da essencia.
Glauco Muito boas falas.
Sócrates E, noto agora, depois de ter falado da ciência
dos números, quanto ela é bela e útiL em muitos aspectos, ao
nosso propósito, contanto que seja estudada por amor ao saber,
e não para comerciar.
Glauco O que tanto admiras nela?
Sócrates O poder, de que acabo de falar, de dar à alma
um vigoroso impulso para elevá-la à região superior e fazê-la
raciocinar sobre os números em si, sem jamais admitir que se
introduzam nos seus raciocínios números visíveis e palpáveis.
Sabes bem o que as pessoas hábeis nesta ciêcia costumam fazer
quando uma pessoa tenta, durante uma discussão, dividir a
unidade, riem dela e deixam de ouvi-la. Se tu a divides, multiplicam-
na, com receio de que já não apareça como una, mas
como um conjunto de várias partes.
Glauco E bem verdade.
Sócrates O que pensas tu, Glauco, que responderiam
se alguém lhes perguntasse: Amigos, de que números estais a
falar? Onde se encontram as unidades, tais como as imaginais,
todas iguais entre si, sem a menor diferença, e que não são
formadas de partes?
Glauco Penso que diriam que estavam a falar de números
que só se podem apreender pelo pensamento, pois que
se encontram na região do entendimento, e que não podem ser
utilizados de nenhuma outra maneira.
Sócrates Vês assim, meu amigo, que esta ciência parece
ser para nós indispensável, visto que é claro que força o espírito
a servir-se da pura inteligência para alcançar a verdade pura?
Glauco Sim, está ela apta a produzir esse efeito.
Sócrates Percebeste, então, que os que nasceram para
o cálculo estão naturalmente preparados para compreender todas
as ciências, por assim dizer, e que os espíritos rudes, quando
treinados e exercitados no cálculo, mesmo quando não tiram
disso nenhuma outra vantagem, ganham, pelo menos, a de adquirir
mais acuidade?
Glauco E incontestável.
Sócrates Aliás, julgo que não seria fácil encontrar muitas
ciências que custem mais a aprender e a praticar do que esta.
Glauco Com certeza.
Sócrates Por todos estes motivos, não devemos desprezá-
la, mas formar nela os melhores engenhos.
Glauco Concorda com a tua opinrao.
Sócrates Adotamos, então, uma primeira ciência. Vejamos
se a segunda, que se liga a ela, também nos é interessante.
Glauco Qual? Referes-te à geometria?
Sócrates Exatamente.
Glauco Na medida em que se relaciona com as operações
da guerra, é evidente que nos interessa, visto que, para assentar
um acampamento, conquistar regiões, concentrar ou espalhar
um exército e obrigá-lo a executar todas as manobras que são
próprias das batalhas ou das marchas, o general que o comanda
revela-se superior ou não, consoante é ou não é geômetra.
Sócrates Mas, na verdade, para isto não há necessidade
de muito conhecimento de geometria e de cálculo. Portanto, é
preciso examinar se a especialidade desta ciência e as suas partes
mais avançadas tendem para o nosso objetivo, que é o de fazer
ver mais facilmente a idéia do bem. Ora, tende para isso, segundo
dizemos, tudo o que obriga a alma a voltar-se para o
lugar onde reside o mais feliz dos seres, que, de qualquer modo,
ela deve contemplar.
Glauco Tens razao.
Sócrates Desse modo, se a geometria obriga a contempiar
a essência, interessa-nos; se fica pela transformação, não
nos convém.
Glauco É essa a nossa opinião.
Sócrates Ora, nenhum daqueles que sabem um pouco
de geometria nos contestará que a natureza desta ciência é rigorosamente
oposta à que empregam os que a praticam.
Glauco Como assim?
Sócrates Não há dúvida de que essa linguagem de que se
utilizam é muito ridícula e miserável. E como homens de prática
que fazem as suas afirmações, que falam de esquadriar, de construir,
de acrescentar, e que fazem ouvir outras palavras similares, quando
toda esta ciência não tem outro objeto além do conhecimento
Glauco É a mais pura verdade.
Sócrates Não temos de admitir também isto?
Glauco O quê?
Sócrates Que ela tem por objeto o conhecimento do que
existe sempre, e não do que nasce e perece.
Glauco É fácil concoM ar, uma vez que a geometria é
o conhecimento do que existe sempre.
Sócrates Portanto, meu dileto amigo, ela atrai a alma
para a verdade e desenvolve esse pensamento filosófico que
eleva para o alto os olhares que indevidamente baixamos para
as coisas deste mundo.
Glauco Sim, deve produzir esse efeito.
Sócrates Portanto, é preciso, na medida do possíveL
prescrever aos cidadãos do teu Estado que não menosprezem
a geometria; aliás, ela tem vantagens outras que não são nada
desprezíveis.
Glauco Quais?
Sócrates As que tu mencionaste e que dizem respeito
à guerra. Além disso, no que concerne a compreender melhor
as demais ciências, sabemos que há uma diferença fundamental
entre aquele que é versado na geometria e aquele que não é.
Glauco Sim, por Zeus!
Sócrates Prescreveremos, então, essa segunda ciência
aos jovens.
Glauco Assim sem.
Sócrates Dize-me: será a astronomia a terceira ciência?
Que achas?
Glauco Na minha opinião, sim, pois que saber reconhecer
com habilidade o momento do mês e do ano em que se
está é coisa de interesse não do lavrador e do navegador, mas
também, e não menos, do general.
Sócrates Tu me divertes. Pareces recear que o vulgo te
censure por prescreveres estudos que julga ele inúteis. Vê, importa
muito, ainda que seja difícil, crer que os estudos de que
falamos purificam e reavivam em cada um de nós um órgão
da alma corrompido e ofuscado pelas demais ocupações, órgão
esse cuja conservação é mil vezes mais preciosa do que a daquele
responsável pela visão, visto que é unicamente por ele que se
descobre a verdade. As tuas idéias parecerão totalmente exatas
aos que compartilham a tua opinião; mas é natural que os que
não estão capacitados a compreender pensem que essas idéias
nada significam. Fora da utilidade prática, estes não vêem nestas
ciências nenhuma outra vantagem digna de atenção. Pergunta
a ti mesmo, caro Glauco, a qual destes dois grupos de ouvintes
te diriges. Ou se não é nem para um nem para outro, mas em
especial para ti mesmo que argumentas, sem, no entanto, negares
ao outro algum proveito que possa tirar dos teus raciocínios.
Glauco E a escolha que faço: falar, interrogar e responder
principalmente para mim.
Sócrates Volta então atrás, pois que ainda há pouco
escolhemos a ciência que se segue à geometria.
Glauco Como assim?
Sócrates Depois das superfícies, tratamos dos sólidos
em movimento, antes de nos ocuparmos dos sólidos em si. A
bem da verdade, a ordem exige que, depois da segunda potência,
se passe à terceira, ou seja, aos cubos e aos objetos que
possuem profundidade.
Glauco Muito bem. Mas, ao que me parece, Sócrates,
essa ciência não foi ainda descoberta.
Sócrates Se é assim, isso deve-se a dois motivos: em
primeiro lugar, nenhum Estado honra estas pesquisas e, como
são difíceis, trabalha-se bem pouco nelas; em segundo lugar,
os investigadores precisam de um diretor, sem o qual os seus
esforças serão baldados. Temos conosco que é difícil encontrá-lo.
E, se o encontrássemos, no estado atual das coisas, os que se
ocupam destas investigações não lhe obedeceriam por terem
demasiada arrogância. Mas se o Estado inteiro cooperasse com
esse diretor e honrasse essa ciência, eles o obedeceriam, e as
questões que esta aventa, estudadas com seqüência e vigor, seriam
esclarecidas. Pois, mesmo nos dias de hoje desprezada
pelo vulgo, truncada por investigadores que não entendem a
sua utilidade, apesar de tudo isso, e só pela força de seu encanto,
ela exerce o seu fascínio. Portanto, não é de admirar que esteja
na situação em a4ue a vemos.
Glauco É verdade que exerce um tão extraordinário
encanto. Mas explica-me melhor o que dizias há pouco. Colocavas
em primeiro lugar a ciência das superfícies, a geometria?
Sócrates Sim.
Glauco E a astronomia logo em seguida. Depois, voltaste
atrás.
Sócrates É que, na minha ânsia de expor depressa tudo
isto, recuo em vez de avançar. Realmente, depois da geometria
temos a ciência que estuda a dimensão de profundidade; mas
como esta ainda não deu lugar senão a pesquisas ridículas, deixei-a
por ora, para passar à astronomia, que é o movimento dos sólidos.
Glauco E exato.
Sócrates Ponhamos, assim, a astronomia em quarto lugar,
pressupondo que a ciência que deixamos agora de lado
existirá quando a cidade se ocupar dela.
Glauco E certo. Mas, como me censuraste há pouco por
fazer uru élogio desajeitado da astronomia, vou louvá-la agora
em conformidade com o teu ponto de vista. Parece-me evidente
para toda a gente que ela força a alma a olhar para o alto e dessa
maneira a passar das coisas deste mundo às coisas do ceu.
Sócrates Talvez seja evidente para toda a gente, mas
não o é para mim, pois não penso assim.
Glauco Como pensas, então?
Sócrates Do modo como a tratam os que pretendem fazê-la
passar por filosofia, ela nos faz, a meu ver, olhar para baixo.
Glauco Como pode ser isso?
Sócrates Francamente, nobre Glauco! Tu te mostras deveras
audacioso na tua concepção do estudo das coisas do alto!
Pareces crer que um homem que estivesse a olhar para os arnamentos
de um teto, com a cabeça inclinada para trás, e aí
enxergasse alguma coisa, não estaria utilizando os olhos ao fazêlo,
e sim a razão. Talvez, no entanto, tu estejas certo, e eu pense
tolamente mas não posso reconhecer outra ciência que faça
olhar para o alto, a não ser a que tem por objeto o Ser e o
invisível. E se alguém se puser a estudar uma coisa sensível
olhando para cima, de boca aberta, ou para baixo, de boca fechada,
afirmo que nunca aprenderá, porque a ciência não tem
nada a ver com o que é sensível, e a sua alma não olha para
cima, mas para baixo, ainda que estude deitado de costas na
chão ou flutuando de costas no mar!
Glauco Tu tens razão em me criticares; tive o que mereci.
Mas tu disseste que era preciso reformara estudo da astronomia
para a tomar útil ao nosso propósito.
Sócrates Assim: os ornamentas do céu devem ser considerados
os mais belos e perfeitos dos objetos da sua natureza,
mas são muito inferiores aos verdadeiros ornamentas, aos movimentos
segundo os quais a velocidade pura e a lentidão pura,
no número verdadeiro e em todas as formas verdadeiras, se
movem em relação uma com a outra e movem o que está nelas,
já que pertencem ao mundo visível. Ora, estas coisas são apreendidas
pela inteligência e pelo raciocínio, e não pela visão; ou
será que pensas o contrário?
Glauco De modo nenhum.
Sócrates É preciso servir-nos dos ornamentas do céu
como de exemplos no estudo dessas coisas invisíveis, como fariamos
se encontrássemos desenhos feitos com habilidade iiicomparável
por Dédalo ou por qualquer outro artista ou pintor
ao vê-los, um geômetra consideraria que são verdadeiras obrasprimas,
mas julgaria ridículo estudá-los a séria, com o fito de
descobrir neles a verdade sobre as relações das quantidades
Iguais, duplas ou qualquer outra proporção.
Glauco E haveria mesmo de ser ridículo.
Sócrates E não crês que o verdadeiro astrônomo pensaria
o mesmo ao considerar os movimentos dos astros? Pensará que
o céu e o que ele contém foram dispostos pelo demiurgo com
toda a beleza que se pode pôr em tais obras; mas, em se tratando
das relações do dia com a noite, do dia e da noite com os meses,
dos meses com o ano e dos outros astros com o SoL a Lua e
eles mesmos, não considerará que é absurdo acreditar que essas
relações são sempre as mesmas e nunca mudam, uma vez que
são materiais e visíveis, e procurar por toda maneira descobrir
aí a verdade?
Glauco E essa a minha opinião, pois que te compreendi.
Sócrates Assim, nos dedicaremos tanto à astronomia
como à geometria, com o auxilio de problemas, e deixaremos
de lado os fenômenos do céu, se quisermos apreender realmente
esta ciência e tornar útil a parte inteligente da nossa alma que
até então era inútil.
Glauco Não há dúvida de que determinas aos astrônomos
uma tarefa muitas vezes mais complicada do que a que
ora realizam.
Sócrates E penso que determinaremos o mesmo método
para as outras ciências, se legislarmos bem. Mas tu te lembras
de mais alguma outra ciência que convenha ao nosso intento?
Glauco Não, pelo menos de imediato.
Sócrates Contudo, o movimento não apresenta uma única
forma, mas tem várias, ao que me parece. Um sábio talvez
pudesse enumerá-las todas. Mas duas há que conhecemos.
Glauco Quais são?
Sócrates Além da que acabamos de mencionar, há uma
outra que lhe é equivalente.
Glauco Dize-me qual.
Sócrates Parece que, como os olhos foram formados para
a astronomia, os ouvidos foram moldados para o movimento harmônico,
e que estas ciências são irmãs, como o afirmam os pitagóricos
e como nós, Glauco, o admitimos. Não é assim?
Glauco Sim, é.
Sócrates Como o assunto é importante, aceitaremos a
sua opinião neste ponto e em outros, se necessário se fizer, mas,
de qualquer modo, manteremos o nosso princípio.
Glauco Qual?
Sócrates O de cuidar para que os nossos alunos não se
envolvam com estudos neste gênero, que seriam incompletos
e não conduziriam ao fim a que devem conduzir todos os nossos
conhecimentos, como há pouco afirmávamos a respeito da astronomia.
Não sabes, meu amigo, que os músicos não tratam
melhor a harmonia? Quando se põem a medir os acordes e os
tons que o ouvido apreendeu, fazem um trabalho inútil, como
os astrônomos.
Glauco E, de fato, é ridículo que falem de intervalos e
apurem o ouvido como se procurassem um som nos arredores.
Uns afirmam que, entre duas notas, apreendem uma intermédia,
que é o intervalo mais pequeno e que deve ser tomado como
medida; os demais sustentam que é semelhante aos sons precedentes,
mas estes e aqueles põem o ouvido acima do espírito.
Sâcrates Tu te referes aos honrados músicos que perseguem
e torturam as cordas, retorcendo-as sobre as cavilhas.
Poderia levar mais longe a metáfora e dizer das pancadas de
arco que eles lhes dão, das acusações que eles lhes fazem, das
recusas e da jactância das cordas; mas desisto e declaro que
não é deles que quero falar, mas daqueles que instantes atrás
nos propúnhamos interrogar a respeito da harmonia. Estes fazem
a mesma coisa que os astrônomos: procuram números nos
acordes que ouvem, mas não se erguem até os problemas, que
consistem em saber quais são os números harmônicos e os que
não o são e de onde se origina a diferença entre eles.
Glauco Falas de uma pesquisa sublime.
Sócrates Julgo-a útil para descobrir o belo e o bem;
mas, tendo outra finalidade, se tornará inútil.
Glauco Assim e.
Sócrates Tenho para mim que, se o estudo de todas as
ciências que examinamos conduz à descoberta das relações e
do parentesco existente entre elas e mostra a natureza do elo
que as une, este estudo nos ajudará a alcançar o objetivo que
nos propomos, e o nosso trabalho não será inútil; caso contrário,
teremos labutado em vao.
Glauco Presumo o mesmo, Sócrates, mas é um trabalho
árduo o que propões.
Sócrates Tu te referes ao trabalho preliminar ou a outro?
Não sabemos que todos estes estudos são apenas o prelúdio
da ária que é preciso aprender? Com toda a certeza, na tua
opinião, os hábeis nestas ciências não são dialéticos.
Glauco Não, por Zeus! Com exceção de um número
muito pequeno deles que encontrei.
Sócrates Porém tu crês que pessoas que são incapazes
de dar razão ou se mostrar razoáveis possam vir a conhecer o
que dizemos que é preciso saber?
Glauco Não, não creio.
Sócrates Ora, caro Glauco, não é então essa ária que a
dialética executa? Faz parte do inteligível, mas é imitada pelo
poder da visão, que, como dissemos, tenta primeiro olhar os
seres vivos, depois os astros e por fim o próprio Sol. Eis que
quando alguém tenta, através da dialética, sem o auxilio de
nenhum sentido, mas por meio da razão, alcançar a essência
de cada coisa e não se detém antes de ter apreendido apenas
pela inteligência a essência do bem, atinge o limite do inteligível,
como o outro, ainda há pouco, atingia o limite do visível.
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates Pois então! Não é a isto que chamas o seguimento
dialético?
Glauco Indubitavelmente.
Sócrates Recordas-te do homem da caverna: a sua libertação
das correntes, a sua conversão das sombras para as
figuras artificiais e a luz que as projeta, a sua ascensão para o
Sol e daí a incapacidade em que se vê ainda de olhar para os
animais, as plantas e a luz do Sol, que o força a mirar nas águas
as suas imagens divinas e as sombras de coisas reais, e não
mais as sombras projetadas por uma luz que, comparada com
o Sol, não é senão uma imagem também. São precisamente estes
os efeitos do estudo das ciências que acabamos de examinar:
elevam a pane mais sublime da alma até a contemplação do
mais excelente de todos os seres, como há instantes vimos o
mais perspicaz dos órgãos do corpo erguer-se à contemplação
do que há de mais luminoso na região do material e do visível.
Glauco Aceito-o, embora me pareça difícil de admitir;
mas, ao mesmo tempo, também me parece difícil de rejeitar.
Contudo, como não se trata de coisas de que nos ocuparemos
apenas hoje, mas a que teremos de voltar várias vezes, admitamos
que é como dizes, passemos à própria ária e ponhamo-nos
a estudá-la da mesma maneira que o prelúdio. Diz então qual
é o caráter do poder dialético, em quantas espécies se divide e
quais são os seus métodos. Esses métodos, ao que me parece,
conduzem a um ponto em que o viajante encontra o repouso
para as fadigas do caminho e o termo da sua busca.
Sócrates Já não serias, Glauco, capaz de me seguir, posto
que, quanto a mim, não faltasse a boa vontade. Ocorre que já
não seria a imagem daquilo que dizemos que tu verias, mas a
própria verdade ou, pelo menos, tal como me parece. Que ela
seja realmente assim ou não, não nos é dado afirmar, mas que
existe alguma coisa semelhante podemos garantir, não achas?
Glauco Com certeza!
Sócrates E também que só o poder dialético pode revelá-
lo a um espírito versado nas ciências que examinamos, o
que, por qualquer outro caminho, é impossível
Glauco Também isso me parece verossímil.
Sócrates Pelo menos, há um ponto que, creio, nmguem
contestará: além dos métodos que acabamos de examinar, existe
outro, que procura apreender cientificamente a essência de cada
coisa. As demais artes ocupam-se apenas dos desejos dos homens
e dos seus gostos e estão voltadas por inteiro pan a produção e
a fabricação ou a conservação dos objetos naturais e artificiais.
Quanto aos que fazem parte da exceção e que, como dissemos,
apreendem algo da essência, a geometria e as artes que lhe são
afins, vemos que só conhecem o Ser por sonhos e que lhes será
impossível ter dele uma visão real enquanto considerarem intangíveis
as hipóteses que não os tocam, pois que vêem-se impossibilitados
de explicar o motivo. Na verdade, quando se toma por
princípio algo que não se conhece e as conclusões e as proposições
intermédias se compõem de elementos desconhecidos, poderá semelhante
aconio se tornar uma ciência?
Glauco De maneira alguma.
Sócrates Portanto, o método dialético é o único que se
eleva, destruindo as hipóteses, até o próprio princípio para estabelecer
com solidez as suas conclusões, e que realmente afasta,
pouco a pouco, o olhar da alma da lama grosseira em que está
mergulhado e o eleva para a região superior, usando como auxiliares
para esta conversão as artes que enumeramos. Demoslhes
por diversas vezes o nome de ciências por dever de costume;
mas deviam ter outra denominação, que imporia mais clareza
que o de opinião e mais obscuridade que o de ciência. Ficará
melhor designada como conhecimento discursivo. Mas não importa,
creio eu, discutir a respeito dos nomes quando temos de
examinar questões tão relevantes como as que nos propusemos.
Glauco Por cedo!
Sócrates Bastará, então, chamar ciência à primeira divisão,
conhecimento discursivo à segunda, fé à terceira e imaginação
à quarta; as duas últimas denominaremos opinião, e as
duas primeiras, inteligência. A opinião terá por objeto a mutabilidade,
e a inteligência, a essência. Devemos acrescentar que a
essência está para a mutabilidade como a inteligência está para a
opinião, a ciência para a fé e o conhecimento discursivo pan a
imaginação. Quanto à analogia dos objetos a que se aplicam estas
relações e à divisão em dois de cada esfera, a da opinião e a do
inteligível, deixemos isso, amigo, a fim de não nos lançarmos em
discussões muito mais longas do que aquelas que tivemos.
Glauco Até onde te entendo, concordo contigo.
Sócrates Também chamas dialético àquele que compreende
a razão da essência de cada coisa? E aquele que não
o pode fazer? Não dirás que possui tanto menos entendimento
de uma coisa quanto mais incapaz é de a explicar a si mesmo
e aos demais?
Glauco Não poderia eu fazer outra afirmação.
Sócrates Ocorre o mesmo com o bem. Dize-me, Glauco:
um homem que não pode compreender a idéia do bem, separando-
a de todas as demais idéias, e, como num combate, abrir
caminho a despeito de todas as objeções, esforçando-se por vencer
as suas provas, não na aparência, mas na essência; que não
possa transpor todos esses obstáculos pela força de uma lógica
infalível, que não conhece nem o bem em si mesmo nem nenhum
outro bem, mas que, se apreende alguma imagem do bem, é
pela opinião, e não pela ciência, que o apreende: não dirás tu
que ele passa a vida presente em estado de sonho e sonolência
e que, antes de despertar neste mundo, irá para o Hades dormir
o último sono?
Glauco Por Zeus! Digo isso tudo, e com absoluta certeza.
Sócrates Mas, se um dia tivesses mesmo de educar
essas crianças que educas e instruis, não permitirias a elas,
penso eu, se fossem desprovidas de razão, como as linhas
irracionais, que governassem a cidade e resolvessem as questões
de suma importância?
Glauco E evidente que não.
Sócrates Então ordenarás a eles que se dediquem principalmente
a essa educação que deve torná-los capazes de indagar
e responder da maneira mais sábia possível.
Glauco Ordenar-lhes-ei.
Sóaatrs Sendo assim, pensas que a dialética é a conclusão
supTeflia dos nossos estudos, que não há outro acima dela e, também,
que acabamos com as ciências que é preciso aprender.
Glauco Sim, penso.
Sócrates Resta-te agora, meu caro Glauco, determinar
a quem dedicaremos estes estudos e de que modo.
Glauco E evidente.
Sócrates Tu te lembras da primeira seleção que fizemos
dos chefes e quais os que escolhemos?
Glauco Como não?
Sócrates Não esqueças que é preciso escolher homens
do mesmo caráter, ou seja, devemos dar predileção aos mais
determinados e corajosos e, na medida do possível, aos mais
formosos. Também é necessário procurar não só o caráter nobre
e forte, mas também pendores adequados à educação que lhes
queremos ministrar.
Glauco Determina, Sócrates, quais são esses pendores.
Sócrates Eles têm de possuir, meu amigo, acuidade para
as ciências e facilidade para o aprendizado. Na verdade, a alma
se agrada mais com os exercícios físicos do que com os estudos
intensos, visto que o esforço lhe é mais sensível porque é só
para ela, e o corpo não o compartilha.
Glauco Assim e.
Sócrates Eles necessitarão também da memória, de uma
disciplina inquebrantável e do amor inconteste ao trabalho. De
outro modo, não conseguirão suportar tantos estudos e exercícios,
além dos trabalhos do corpo.
Glauco Só suportarão se forem dotados dessas
características.
Sócrates O erro que hoje se comete provém, como dissemos
anteriormente, do fato de se entregarem a este estudo
os que não são dignos dele. Essa é a causa do desprezo que
pesa sobre a filosofia. Em verdade, não deveriam se ocupar
dela talentos bastardos, mas apenas talentos legítimos.
Glauco Não te compreendi.
Sócrates Primeiro, aquele que deseja consagrar-se a esse
estudo não deve ser manco no seu amor ao trabalho, ou seja,
dedicado para uma pane da tarefa e indolente para a outra.
Esse é o caso do homem que gosta da ginástica e da caça e se
entrega com afinco a todos os trabalhos físicos, mas não tem,
por outro lado, nenhum apreço pelo estudo nem pela pesquisa
e é avesso a todo trabalho deste tipo. Também é manco aquele
cujo amor pelo labor se voltou para o lado oposto.
Glauco Concordo plenamente.
Sócrates E dessa forma, no que se refere à verdade, não
vamos considerar defeituosa a alma que, execrando a mentira
voluntária e não podendo suportá-la sem repugnância em si
mesma nem sem indignação nos outros, admite com benevolência
a mentira involuntária e que, pega em flagrante delito
de insciência, não se indigna contra si mesma, mas, ao contrário,
chafurda em sua ignorância como um porco no lamaçal?
Glauco E isso.
Sócrates E, no que se refere à temperança, à coragem,
à grandeza de alma e a todas as partes da virtude, devemos
atentar em distinguir o indivíduo bastardo do indivíduo legítimo.
Por não saberem diferenciá-los, os particulares e os Estados
não vêem que acabam escolhendo, sempre que lhes é preciso
recorrer a funções deste tipo, gente claudicante e bastarda: aqueles
como amigos, estes como chefes.
Glauco Isso é muito comum.
Sócrates Assim sendo, devemos tomar sérias precauções
contra todos esses equívocos. Se consagrarmos a estudos e a exercícios
desta monta só homens bem constituídos de físico e intelecto,
a própria justiça não terá censura alguma a nos fazer e manteremos
o Estado e a constituição. Porém, se consagrarmos a estes trabalhos
indivíduos indignos e sem valor, obteremos o efeito contrário e
cobriremos a filosofia de um ridículo ainda maior.
Glauco Seria então uma grande vergonha.
Sócrates Sem dúvida, mas me parece que neste momento
também eu estou sendo ridículo.
Glauco Por quê?
Sócrates Esqueci-me de que fazíamos uma simples brincadeira
e falei com muito vigor. Enquanto falava, olhei para a
filosofia e, vendo-a aviltada de maneira tão indigna, penso que
me exaltei, quase me encolerizando, e falei contra os culpados
com desmedida vivacidade.
Glauco Não, por Zeus! Não é nisso que creio.
Sócrates Mas é no que crê o orador. De qualquer ira->
neira, não devemos esquecer que, na nossa primeira seleção,
elegemos pessoas idosas e que aqui isso não será possível. Não
devemos crer em Sólon quando diz que um homem velho pode
aprender muitas coisas, pois é ele menos capaz de aprender do
que de correr. Afinal, os trabalhos grandes e múltiplos competem
aos jovens.
Glauco Certamente.
Sócrates Assim, deverão ser ensinadas aos nossos alunos
desde a infância a aritmética, a geometria e todas as ciências
que hão de servir de preparação à dialética, mas este ensino
deverá ser ministrado de maneira a não haver constrangimento.
Glauco Por quê?
Sócrates Porque o homem livre não deve ser obrigado
a aprender como se fosse escravo. Os exercícios físicos, quando
praticados à força, não causam dano ao corpo, mas as lições
que se fazem entrar à força na alma nela não permanecerão.
Glauco E a pura verdade.
Sócrates Assim, caríssimo, não uses de violência para
educar as crianças, mas age de modo que aprendam brincando,
pois assim poderás perceber mais facilmente as tendências naturais
de cada uma.
Glauco Como sempre, tuas palavras têm lógica.
Sócrates Tu te lembras do que dissemos mais acima:
que era preciso levar as crianças para assistir ao combate em
cavalos, e, quando se pudesse fazê-lo sem expô-las ao perigo,
aproximá-las da luta e fazer com que provem o sangue, como
se faz aos cães novos?
Glauco Sim, lembro-me.
Sócrates Em todos estes labores, estes estudos e receios,
aquele que sempre se mostrar mais ágil deverá ser posto num
grupo à pane.
Glauco Com que idade?
Sócrates Quando acabar o curso obrigatório de exercidos
ginásticos, pois este tempo de exercício, que deve ser de dois a
três anos, não se aplicará em outra coisa, porque a fadiga e o sono
são inimigos do estudo. Esta é uma das pmvas, e não a menor,
que consistirá em observar como cada um se comporta na ginástica.
Glauco E certo.
Sócrates Ao fim deste tempo, os que tiverem sido escolhidos
entre os jovens com aproximadamente vinte anos terão
distinções mais honrosas do que os demais e lhes serão apresentadas
em conjunto as ciências que estudaram desordenadamente
na infância, com o fim de que abaxquem num rápido olhar as
relações dessas ciências entre elas mesmas e a natureza do Ser.
Glauco E certo que só um conhecimento assim se fixa
com solidez na alma em que penetra.
Sócrates E também um excelente método de distinguir
o espírito que está predisposto à dialética daquele que não está:
o espírito que tem capacidade de síntese é dialético, os outros
não o são.
Glauco Concordo com tua opinião.
Sócrates Esta, porém, é uma coisa que terás de examinar.
Aqueles que, com as melhores qualidades neste sentido, forem
sólidos nas ciências, na guerra e nos outros trabalhos prescritos
pela lei, quando completarem trinta anos serão apartados dentre
os jovens já escolhidos para elevá-los a maiores honras e se descobrir,
experimentando-os por intermédio da dialética, quais são
capazes de, sem a ajuda dos olhos nem de nenhum outro sentido,
erguer-se até o próprio Ser tão-somente pelo poder da verdade.
E esta é, vê bem, uma tarefa que exige muita atenção, caro Glauco.
Glauco Por quê?
Sócrates Não percebes o mal que hoje atinge a dialética
e os progressos que faz?
Glauco Que mal é esse?
Sócrates Aqueles que se entregam a ela estão cheios de
desordem.
Glauco Isso é mesmo verdade.
Sócrates Mas te parece que existe nisso algo de surpreendente
e não os perdoas?
Glauco De que modo posso perdoá-los?
Sócrates Imagina que uma criança adotada, criada no
seio das riquezas de uma família numerosa e nobre, no meio
de uma multidão de aduladores, descobrisse, ao tomar-se tiomem,
que não é o filho daqueles que se dizem seus pais, sem
ter meios de descobrir aqueles que o geraram. Podes adivinhar
os sentimentos que experimentaria para com os seus aduladores
e os pais adotivos, antes de ter conhecimento da sua adoção e
depois disso? Ou queres ouvir o que penso eu a esse respeito?
Glauco Dize-me.
Sócrates Penso que começará por honrar mais o pai e
a mãÉ verdadeiros e os adotivos do que seus aduladores, que
os desprezará menos se se encontrarem em dificuldades, que
estará menos disposto a faltar-lhes com palavras e ações, que
lhes desobedecerá menos, quanto ao essencial, que aos seus
aduladores, enquanto não souber a verdade.
Glauco E possível.
Sócrates Porém, quando vier a saber a verdade, adivinho
que o seu respeito e as suas honras diminuirão para com os
pais e aumentarão para com os aduladores, que obedecerá a
estes muito mais do que. fazia antes, dirigirá a sua conduta
pelos seus conselhos e viverá abertamente na sua companhia,
ao mesmo tempo que não se importará com o pai e os supostos
antepassados, a não ser que seja de índole muito indulgente.
Glauco Dizes a verdade. Mas como se aplica essa comparação
aos que se dedicam à dialética?
Sócrates Digo-te. Ouvimos desde a infância máximas
sobre a justiça e a honestidade: fomos formados por elas como
se fossem nossos pais, obedecendo-lhes e respeitando-as.
Glauco Assim e.
Sócrates Veja, há máximas opostas a essas, que são práficas
sedutoras que lisonjeiam a nossa alma e exercem sobre
ela atração, mas não convencem os homens minimamente prudentes.
Estes honram as máximas paternas e lhes obedecem.
Glauco É verdade.
Sócrates Pois bem. Se eu perguntar a um homem destes:
O que é a honestidade? Quando ele responder o que aprendeu
com o legislador, refutemo-lo muitas vezes e de várias maneiras,
Ievemo-lo a achar que o que considera como tal não é mais honesto
que desonesto. Façamos o mesmo para o justo, o bom e todos os
princípios que ele mais honra. Depois disto, como ele se comportará
em relação a eles no aspecto do respeito e da obediência?
Glauco E evidente que não os respeitará, nem lhes obedecerá
da mesma maneira.
Sócrates Mas, quando não mais acreditar que estes princípios
são dignos de respeito e preciosos à sua alma, sem, contudo,
ter descoberto os princípios verdadeiros, será possível que
chegue a um género de vida diferente do que o lisonjeia?
Glauco Não é possível.
Sócrates Então, veremos esse homem, de submisso que
era, tornar-se rebelde às leis.
Glauco Assim terá de ser.
Sócrates Portanto, é muito natural o que ocorre às pessoas
que se dedicam à dialética e, como eu dizia, elas merecem
perdão.
Glauco E compaixão.
Sócrates Para não expormos os teus homens de trinta
anos a essa compaixão, não é preciso que tomemos todas as
precauções possíveis antes de os consagrarmos à dialética?
Glauco Com certeza.
Sócrates Bem, não é uma precaução importante impedi-
los de tomar gosto à dialética enquanto são novos? Deves
ter percebido, penso, que os adolescentes, depois de terem experimentado
uma vez a dialética, abusam e fazem dela um jogo.
Utilizam-se dela para contestar a todo momento e, imitando os
que os refutam, por sua vez refutam os outros e sentem prazer,
como cãezinhos, em assediar e dilacerar com argumentos todos
os que deles se acercam.
Glauco Com efeito, sentem com isso um prazer espantoso.
Sócrates Depois de terem refutado muita gente e de terem
sido refutados muitas vezes também, bem rápido acabam por não
mais acreditar em nada do que antes acreditavam. Desse modo,
eles e toda a fflosofia ficam desacreditados na opinião pública.
Glauco Assim é.
Sócrates Mas um homem mais velho não quererá se
envolver em semelhante costume; imitará aquele que quer discutir
e procurar a verdade, e não o que se diverte e contesta
por simples prazer. Será mais comedido e tomará a profissão
dialética mais honrada, em vez de a rebaixar.
Glauco É verdade.
Sócrates Esse mesmo espírito de prevenção nos fez dizer
que não se devia admitir nos exercícios da dialética senão índoles
disciplinadas e firmes e que não se devia, como agora,
deixar aproximar dela alguém que para tal não revele a mínima
inclinação. Não foi assim?
Glauco Sim, foi.
Sócrates Então, o estudo da dialética, quando nos entregamos
a ele sem tréguas e com ardor, sem fazer nenhum outro
trabalho, da mesma forma como se fazia para os exercícios do
corpo, exigirá algo como o dobro dos anos consagrados a estes.
Glauco Seriam então quatro ou seis anos?
Sócrates Isso não é importante, vamos dizer que sejam
cinco anos. Depois faremos com que desçam de novo à caverna
e os obrigaremos a exercer os cargos militares e todas as tarefas
adequadas aos jovens, para que, no que diz respeito à experiência,
não se atrasem em relação aos outros. Tu os exercitarás
na prática dessas tarefas, para ver se, tentados de todos os lados,
se mantêm firmes em seu propósito ou se deixam abalar.
Glauco E que tempo será necessário para tal?
Sócrates Quinze anos. E, ao atingir os cinqüenta anos,
os que tiverem se saído bem destas provas e se tiverem distinguido
em tudo e de toda maneira, no seu agir e nas ciências,
deverão ser levados até o limite e forçados a elevar a parte
luminosa da sua alma ao Ser que ilumina todas as coisas. Então,
quando tiverem vislumbrado o bem em si mesmo, usá-lo-ão
como um modelo para organizar a cidade, os particulares e a
sua própria pessoa, cada um por sua vez, pelo resto da sua
vida. Passarão a maior parte do seu tempo estudando a filosofia,
quando chegar a vez deles, suportarão trabalhar nas tarefas de
administração e governo, por amor à cidade, pois que verao
nisso não uma ocupação nobre, mas um dever indispensável.
Assim, depois de terem formado sem cessar homens que lhes
sejam semelhantes, para lhes deixarem a guarda da cidade, irão
habitar as ilhas dos bem-aventurados. A cidade consagrará a
eles monumentos e sacrifícios públicos, a título de divindades,
se a Pítia assim permitir, senão a título de almas bem-aventuradas
e divinas.
Glauco São mesmo belíssimos, Sócrates, os governantes
que modelaste como um escultor!
Sócrates E as governantas também, Glauco, porque nao
penses tu que o que eu disse se aplica mais aos homens do
que às mulheres que tiverem aptidões naturais suficientes.
Glauco . Está claro, já que tudo deve ser igual e comum
entre elas e os homens.
Sócrates Pois! Concordais agora que as nossas idéias
concernentes ao Estado e à constituição não são simples utopias,
que a sua realização é difícil, mas possível, de alguma maneira,
e não de modo diferente do que foi dito? Que, quando os verdadeiros
filósofos, quer vários, quer apenas um, tomados senhores
de um Estado, desprezarem as honras que ora procuram,
considerando-as indignas de um homem livre e desprovidas
de todo valor, fizerem maior caso do dever e das honras, que
são na verdade a sua recompensa e, considerando a justiça como
o bem mais importante e mais necessário, servindo-a e trabalhando
para a sua prosperidade, organizarão a sua cidade de
acordo com as leis?
Glauco Como?
Sócrates Todos os que na cidade tiverem passado da
idade de dez anos serão mandados para os campos. Estando
distantes da influência dos costumes atuais, que são os dos pais,
serão educados conforme com seus próprios costumes e os seus
princípios, que são os que expusemos há pouco. Este será, sem
dúvida, o meio mais rápido e mais fácil de estabelecer um Estado
regido pela constituição de que falamos, de o tornar feliz e garantir
as maiores vantagens ao seu povo.
Glauco Sim, é certo. E parece-me, Sócrates, que mostraste
bem como se realizará, se um dia isso vier a ocorrer.
Sócrates Não discutimos o suficiente sobre esta cidade
e o homem que se lhe assemelha? Em verdade, é fácil ver que
homem deve ser esse segundo os nossos princípios.
Glauco Sim. E, mais uma vez, tens razão, o assunto
parece-me esgotado.
LIVRO VIII
Sócrates Pois bem. Então, estamos de acordo, Glauco,
em que na cidade que busca uma organização perfeita haverá
a comunidade das mulheres, a comunidade dos filhos e de toda
a educação, assim como a das ocupações em tempo de guerra
e de paz, e serão reconhecidos como soberanos os que se revelarem
os melhores como filósofos e como guerreiros.
Glauco Sim, estamos de acordo.
Sócrates Também estamos de acordo que, depois da
sua nomeação, os chefes deverão conduzir e instalar os soldados
em casas como as que descrevemos, onde ninguém terá nada
de seu, e onde tudo será comum a todos. Além da questão do
alojamento, detenninamos também, se bem te lembras, a dos
bens que eles poderão possuir.
Glauco Sim, lembro-me. Entendemos que não deviam
possuir nada do que têm os guerreiros dos nossos dias, mas
que, como atletas, guerreiros e soldados, receberão todos os
anos dos outros cidadãos, como salário da sua guarda, o que
é necessário à sua subsistência, pois devem zelar pela segurança,
a sua própria e a do resto da cidade.
Sócrates Exatamente. Visto que já tratamos dessa questão,
tentemos lembrar do ponto em que nos desviamos, para
que voltemos ao primeiro caminho.
Glauco Não vejo nisso dificuldade. Depois de teres esgotado
o que diz respeito ao Estado, dizias quase o mesmo que
agora, afirmando que achavas bom o Estado que acabavas de
descrever e o homem que lhe era semelhante, e isso, ao que
tudo indica, apesar de teres a capacidade de nos falar de um
Estado e de um homem ainda mais belos. No entanto, tu acrescentaste
que as outras formas de governo são falhas, uma
vez que aquela é boa. Dessas outras formas, ao que me lembro,
afirmaste haver quatro espécies dignas de atenção e das quais
importava ver os defeitos, assim como os dos homens que
lhes são semelhantes, com o fito de que, depois de tê-los analisado
e reconhecido qual o melhor e qual o pior, estivéssemos
aptos a julgar se o melhor é o mais feliz, e o pior, o mais
infeliz, ou se não é assim. Então, como eu indaguei quais
seriam as quatro formas de governo, Polemarco e Adimanto
interromperam-nos, e aí iniciaste a discussão que nos conduziu
até este ponto.
Sócrates Lembras-te disso com muita clareza.
Glauco Assim, faz igual aos pugilistas e concede-me
outra vez a mesma posição e, tendo em vista que te faço a
mesma questão, procura dizer o que estavas para responder.
Sócrates Farei, se o puder.
Glauco Desejo saber quais são os quatro governos de
que falavas. É fácil satisfazer-te, pois que os governos a
que me refiro são conhecidos. O primeiro e muito elogiado é
o de Creta e da Lacedemônia; o segundo, que só se louva em
segundo lugar, chama-se oligarquia. Trata-se de um governo
repleto de vícios vários. Oposto a este vem, em seguida, a democracia.
Por fim, vem a soberba tirania, contrária a todos os
outros e que é a quarta e a última doença do Estado. Conheces
acaso outro governo que se possa ordenar numa classe bem
distinta? As monarquias hereditárias, os principados venais e
governos que se lhes assemelham não são, em dada medida,
senão formas intermediárias e encontram-se tanto entre os bárbaros
como entre os gregos.
Glauco Realmente dizem que os há muitos e estranhos.
Sócrates Sabes que há tantas espécies de caráter como
formas de governo? Ou pensas que essas formas provêm dos
carvalhos e da rocha, e não dos costumes dos cidadãos, que
arrastam todo o resto para o lado para que pendem?
Glauco Não podem originar-se senão daí.
Sócrates Portanto, se existem cinco espécies de cidades,
o caráter da alma, nos indivíduos, será, igualmente, em número
de cinco.
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates Analisamos anteriormente o que corresponde
à aristocracia e afirmamos, com razão, que é bom e justo.
Glauco Sim.
Sócrates Isto posto, não convirá passar em revista os
caracteres inferiores: em primeiro lugar, o que ama a vitória e
a honra, baseado no exemplo do governo da Lacedemônia; em
segundo o oligárquico, o democrático e o tirânico? Depois de
reconhecermos qual o mais injusto, oporemos este ao mais justo
e poderemos aí terminar o nosso exame e ver como a pura
justiça e a pura injustiça agem, respectivamente, no que diz
respeito à felicidade ou à infelicidade do indivíduo, para que
siga o caminho da injustiça, se nos deixarmos convencer por
Trasímaco, ou a da justiça, se cedermos às razões que se manifestam
a seu favor.
Glauco Concordo plenamente, é assim que se deve
proceder.
Sócrates E, já que começamos por examinar os costumes
dos Estados antes de analisarmos os dos particulares, sendo
este método o mais claro, não devemos agora considerar primeiro
o governo da honra, ao qual, como não tenho designação
a dar-lhe, chamarei timocracia, e passar logo após ao exame do
homem que se lhe assemelha, depois ao da oligarquia e do
homem oligárquico; então lançar vistas para a democracia e o
homem democrático; e por fim, em quarto lugar, considerar a
cidade tirânica, depois a alma do tirânico, e procurar julgar
com conhecimento de causa a indagação que nos propomos?
Glauco Isso seria agir com disciplina a essa análise e a
esse julgamento.
Sócrates Tentemos, caro Glauco, explicar de que maneira
se faz a transição da aristocracia para a timocracia. Não é uma
verdade inconteste que toda constituição se modifica de acordo
com quem detém o poder, quando a discórdia grassa entre os
seus membros, e assim, enquanto está de acordo consigo mesma,
por muito pequena que se mostre, é impossível abalá-la?
Glauco Assim me parece.
Sócrates Nesse caso, como a nossa cidade será abalada?
Por onde se infiltrará, entre os guardiões e os chefes, a discórdia
que cada um destes lançará contra o outro e contra si mesmo?
Desejas que, como Homero, conjuremos as Musas para que nos
digam: Quem os impeliu à discórdia? Suponhamos que, brincando
e se divertindo conosco como com crianças, falam, como
se os seus discursos fossem sérios, no tom inflamado da tragédia.
Glauco Como assim?
Sócrates Mais ou menos desta forma: é difícil que um
Estado constituído como o vosso venha a se alterar. Porém,
como tudo o que nasce é passível de corrupção, este sistema
de governo não durará eternamente, mas dissolver-se-á, e aqui
tens o modo. Há, para as plantas enraizadas na terra e para os
animais que vivem à sua superfície, ciclos de fecundidade ou
de esterilidade que afetam a alma e o corpo. Estes ciclos surgem
quando as revoluções periódicas completam as circunferências
dos círculos de cada espécie, e são curtas para as que têm uma
vida curta, longas para as que têm uma vida longa. Pois bem,
por muito sábios que sejam os chefes da cidade que vós educastes,
não conseguirão nada pelo cálculo unido à experiência,
quer suas gerações sejam boas ou não venham a existir. Estas
coisas escapar-lhes-ão e farão filhos quando não o deveriam
fazer. Para a raça divina há um período que compreende um
número perfeito. De modo contrário, para a raça humana é o
primeiro número no qual os produtos das raízes pelos quadrados
abrangendo três distâncias e quatro limites dos elementos
que fazem a igualdade e a desigualdade, o crescente e
o decrescente, estabelecem entre todas as coisas relações racionais.
Desses elementos, agrupado ao número cinco e multiplicado
três vezes, dá duas harmonias, sendo uma expressa por
um quadrado cujo lado é múltiplo de cem, e a outra por um
retângulo construído, por um lado, sobre cem quadrados das
diagonais racionais de cinco, diminuídos cada um de uma unidade,
ou das diagonais irracionais, diminuídos de duas unidades,
e, por outro lado, sobre cem cubos de três. É este número
geométrico total que determina os bons e os maus nascimentos
e, quando os vossos guardiões, não o conhecendo, unirem moças
e rapazes fora de propósito, os filhos que nascerem desses casamentos
não serão favorecidos nem pela natureza nem pela
fortuna. Os seus antecessores colocarão os melhores à cabeça
do governo, mas, como disso são indignos, logo que assumirem
os cargos dos seus pais passarão a menosprezar-nos, apesar de
serem guardiões, não honrando, como deveriam, primeiramente
a música, em seguida a ginástica. Assim, tereis uma geração
nova bem menos culta. Daí sairão chefes pouco capazes de zelar
pelo Estado e que não sabem notar a diferença nem das raças
de Hesíodo nem das vossas raças de ouro, prata, bronze e feno.
Deste modo, misturando-se o ferro com a prata e o bronze com
o ouro, resultará destas misturas um defeito de conveniência,
de regularidade e de harmonia que, uma vez instaurado, engendra
sempre a guerra e o ódio. E esta a origem que se deve
atribuir à discórdia, em toda parte que se declare.
Glauco Devemos reconhecer que as Musas responderam
bem.
Sócrates Certamente, visto que são Musas.
Glauco E então? O que dizem elas além disso?
Sócrates Uma vez instaurada a divisão, as duas raças de
feno e bronze aspiram a enriquecer e a adquirir posses de terras,
casas, ouro e prata, ao passo que as raças de ouro e prata, sendo
ricas por natureza, tendem para a virtude e a manter a antiga
constituição. Depois de muitas violências e lutas, concorda-se em
dividir as terras e ocupá-las, bem como às casas, e aqueles por
quem anteriormente zelavam como seus concidadãos, como homens
livres e amigos, agora subjugam-nos, tratam-nos como periecos
e servidores, e continuam eles a ocupar-se da guerra e da
guarda dos outros.
Glauco Sim, parece-me que é daí que se origina essa
mudança.
Sócrates Aí está! Um tal governo não estará situado
entre a aristocracia e a oligarquia?
Glauco Estará, com certeza.
Sócrates Vês então como se fará a mudança. Mas qual
será a sua forma? Não é evidente que deverá imitar, por um
lado, a constituição anterior e, por outro, a oligarquia, mas que
terá também alguma coisa que lhe será própria?
Glauco Assim me parece.
Sócrates Pelo respeito aos chefes, pela aversão dos guerreiros
à agricultura, às artes manuais e às outras profissões liicrativas,
pela instituição das refeições em comum e a prática
dos exercícios ginásticos e militares, por todos estes aspectos,
não recordará a constituição anterior?
Glauco Sim.
Sócrates Mas o medo de nomear os sábios para as magistraturas,
visto que aqueles que se terão não serão mais simples
e firmes, mas de caráter dúbio; a inclinação para o caráter
irascível e mais simples, moldado mais para a guerra do que
para a paz; a estima em que se terão as manhas e os estratagemas
guerreiros; o hábito de ter sempre a arma à mão: a maior parte
dos aspectos deste gênero não lhe serão especfficos?
Glauco Sim.
Sócrates Tais homens serão cobiçosos de riquezas, como
os cidadãos dos Estados oligárquicos; adorarão com paixão, às
ocultas, o ouro e a prata, porquanto terão armazéns e tesouros
particulares, onde as suas riquezas estarão escondidas, e também
habitações protegidas por muros, verdadeiros ninhos privados,
nas quais gastarão à larga com mulheres e com quem
muito bem lhes apetecer.
Glauco Eis aí uma grandÉ verdade.
Sócrates Serão apegados às suas riquezas porque as
veneram e não as possuem às claras, e, por outro lado, pródigos
com os bens dos outros, para satisfazerem as suas paixões. Se
fartarão dos prazeres em segredo e, como crianças aos olhares
do pai, fugirão aos olhares da lei, em conseqüência de uma
educação não baseada na persuasão, mas na violência, em que
se desprezou a verdadeira Musa, a da dialética e da filosofia,
e se deu mais importância à ginástica do que à música.
Glauco E claramente a descrição de um Estado composto
de bem e mal.
Sócrates Isso mesmo, é composto. Há nele um único
aspecto que é nitidamente distinto, resultante do fato de nele
predominar o elemento irascível: é a ambição e o amor das
honrarias.
Glauco Certamente.
Sócrates Aí estão a origem e o caráter deste governo.
Fiz apenas um esboço, e não um retrato detalhado, porque S0
por este esboço podemos distinguir o homem mais justo do
homem mais injusto e, por outro lado, seria uma tarefa muitíssimo
longa descrever sem nada omitir todas as constituições
e todo caráter.
Glauco Tens razao.
Sócrates Agora, dize qual é o homem que corresponde
a este governo, como se compreende e qual é o seu caráter.
Adimanto Suponho que deve assemelhar-se a Glauco,
aqui presente, ao menos no que se refere à ambição.
Sócrates Talvez. Mas, ao que me parece, pelos aspectos
que vou dizer, a sua natureza é diferente da de Glauco.
Adimanto Quais são eles?
Sócrates Tu deves ser mais presunçoso e mais avesso
às Musas, apesar de amá-las, alegrando-se em escutar, mas não
sendo de maneira nenhuma orador. Para com os escravos, um
homem assim mostrar-se-á rígido, em vez de os desprezar, como
faz aquele que recebeu uma boa educação. Será cordial para
com os homens livres e muito submisso para com os magistrados.
Desejoso de alcançar o mando e as horas, aspirará a isso
não pela eloqüência, nem por nenhum outro predicado do mesmo
gênero, mas pelos seus feitos guerreiros e pelos talentos
militares e será um aficionado pela ginástica e pela caça.
Adimanto E esse mesmo o caráter que é similar a tal
forma de governo.
Sócrates Um homem desse tipo poderá, durante a mocidade,
desprezar as riquezas, mas com o correr dos anos mais
as amará, porque a sua natureza incita-o à avareza, e a sua
virtude, privada do seu melhor guardião, não é pura.
Adimanto Qual é esse guardião?
Sócrates A razão aliada à música. Só ela, quando entranhada
na alma, se mantém toda a vida como defensora
da virtude.
Adimanto Boas falas.
Sócrates Assim é que o jovem ambicioso é a imagem
do governo timoaático.
Adimanto Com certeza.
Sócrates Origina-se mais ou menos do seguinte modo:
por vezes é o jovem filho de um homem de bem, habitante de
uma cidade mal governada, que evita as honras, os cargos, os
processos e todos os incômodos deste gênero e que aceita a
mediocridade, para tentar se ver livre de aborrecimentos.
Adimanto E como se origina?
Sócrates Primeiramente, ouve a mãe queixar-se por o
marido não pertencer ao grupo dos governantes, o que a faz
se sentir diminuída junto das outras mulheres. Por vê-lo desinteressado
de enriquecer, não sabendo nem lutar nem usar a
censura, quer em particular, perante os tribunais, quer em público,
indiferente a tudo em tal matéria; por notar que está sempre
ocupado consigo mesmo e não tem por ela nem estima nem
desprezo. Indigna-se com tudo isso, dizendo ao jovem filho que
o seu pai não é um homem, que lhe falta energia e cem outras
coisas que as mulheres costumam dizer em tais casos.
Adimanto E mesmo essa a atitude que no mais das
vezes tomam conforme com a sua natureza.
Sócrates E tu sabes que até os criados dessas famiias
que parecem bem-intencionados costumam usar, em segredo,
a mesma linguagem com as crianças; e, quando percebem que
o pai não persegue um devedor ou uma pessoa que o ofendeu,
exortam o filho a se vingar de semelhante gente, quando for
grande, e a mostrar-se mais viril que o pai. Mal sai de casa,
passa a ouvir outros comentários semelhantes e vê que aqueles
que não se ocupam senão dos seus negócios na cidade são tratados
como imbecis e tidos em pouco apreço, ao contrário dos
que se ocupam dos negócios dos outros, que são honrados e
louvados. Então, o jovem, vendo e ouvindo isso tudo, por um
lado, e, por outro, escutando os discursos do pai, vê de perto
as suas ocupações e compara-as com as dos demais. Então, sente
atração pelos dois lados: pelo pai, que planta e faz crescer o
elemento racional da sua alma, e pelos outros, que fortalecem
os seus desejos e paixões. Como o seu caráter não é mau por
natureza, pois apenas esteve ele em más companhias, escolhe
o meio entre os dois partidos que o atraem, entrega o governo
da sua alma ao princípio intermédio de ambição e cólera e torna-
se um homem orgulhoso e amante de horas.
Adimanto Descreveste muito bem a origem e o desenvolvimento
desse caráter.
Sócrates Temos aí a segunda constituição e o segundo
tipo de homem.
Adimanto Temos.
Sócrates Agora, falaremos, como Ésquilo, de outro homem
alinhado em face de outro Estado, ou seria melhor, seguindo
a ordem que adotamos, começarmos pelo Estado?
Adimanto Assim me parece bem.
Sócrates Creio que a oligarquia é o governo que se segue
ao precedente.
Adimanto Que espécie de governo entendes por oligaiquia?
Sócrates O governo fundamentado no recenseamento,
em que os ricos mandam e onde o pobre não participa no poder.
Adimanto Entendo.
Sócrates Não devemos começar por dizer como se passa
da timocracia à oligarquia?
Adimanto Sim, devemos.
Sócrates Na realidade, até um cego seria capaz de ver
como se faz esta passagem.
Adimanto Como?
Sócrates Esse tesouro que cada um enche de ouro põe
a perder a timocracia. Em primeiro lugar, os cidadãos descobrem
motivos de despesa e, para os satisfazer, deturpam a lei e desobedecem-
lhe, eles e as suas mulheres.
Adimanto E verossímil.
Sócrates Depois, pelo que suponho, um vê o outro e
se põe a imitá-lo, e assim a massa acaba por se lhes assemelhar.
Adimanto Deve ser assim.
Sócrates A partir disso, a sua avidez pelo ganho progride
rapidamente e quanto mais amor têm pela riqueza menos o
têm pela virtude. Em verdade, o que há de diferente entre a
riqueza e a virtude não é que, colocadas cada uma num prato
de uma balança, tomam sempre uma direção contrária?
Adimanto Com toda certeza.
Sócrates Concluo, então, que, quando a riqueza e os
homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens
virtuosos são tidos em menor estima.
Adimanto E evidente.
Sócrates E de nossa natureza entregarmo-nos ao que é
honrado e desprezarmos o que é desdenhado.
Adimanto Realmente.
Sócrates Deste modo, de amantes que eram da conquista
e das honras, os cidadãos acabam por tornar-se avarentos e
ambiciosos, louvando o rico, admirando-o e levando-o ao poder,
e desprezando o pobre.
Adimanto E isso.
Sócrates Promulgam então uma lei que é o traço distintivo
da oligarquia, fixando um censo, que é mais elevado
quanto mais forte é a oligarquia, tanto mais baixo quanto mais
fraca ela é, e proíbem aqueles cuja fortuna não atinge o limite
fixado de terem acesso aos cargos públicos. O cumprimento
desta lei é feito pela força das armas ou então, antes de chegarem
a isso, impõem este tipo de governo pela intimidação. Não é
assim mesmo que ocorre?
Adimanto De fato.
Sócrates Tens aqui, mais ou menos, como se procede
a esta instituição.
Adimanto Sim. Porém qual é o teor dessa constituição
e quais são os defeitos que lhe censuramos?
Sócrates O primeiro defeito é o seu próprio princípio.
Considera o que aconteceria se os navegantes fossem escolhidos
segundo o censo e se afastasse o pobre, embora fosse ele mais
capaz de segurar o leme...
Adimanto A navegação talvez se tomasse perigosa.
Sócrates E não seria dessa forma para outro comando
qualquer?
Adimanto Penso que sim.
Sócrates Exceto no que se refere ao comando de uma
cidade ou incluindo também este?
Adimanto Este, sobretudo, visto que é o mais difícil e
o mais importante.
Sócrates Assim, a oligarquia começará por ter este grave
defeito.
Adimanto Ao que parece.
Sócrates Então analisa se o defeito que se segue é menor.
Adimanto Qual é ele?
Sócrates E preciso que tal cidade não seja una, mas
dupla, a dos pobres e a dos ricos, que vivem sobre o mesmo
solo e conspiram sem cessar uns contra os outros?
Adimanto Por Zeus! Esse defeito não é menor que o
primeiro.
Sócrates Também não é uma vantagem para os oligarcas
ficarem na quase impossibilidade de combater, porque haveriam
de precisar armar a multidão, e aí iriam receá-la mais do que
ao inimigo, ou, dispensando-a, mostrar-sÉ verdadeiramente aligdrquicos
no combate. Além disso, não quererão se prejudicar
com as despesas da guerra, ciosos como são das suas riquezas.
Adimanto Não é, portanto, uma vantagem.
Sócrates E o que censuramos há pouco, a multiplicidade
das ocupações: agricultura, comércio, guerra, a que se
entregam as mesmas pessoas numa cidade? É isto um bem,
na tua opinião?
Adimanto Não, absolutamente.
Sócrates Vê agora se, de todos estes males, o que vou
dizer não é o maior, de que a oligarquia é a primeira a ser
atingida.
Adimanto Qual.é?
Sócrates A liberdade que a cada um é dada de dispor
de todos os seus bens ou de adquirir os dos outros, e, depois,
de tudo se desfazer, permanecer na cidade sem exercer nenhuma
função, nem de comerciante, nem de artesão, nem de
cavaleiro, nem de soldado, sem outro título a não ser o de
pobre e indigente.
Adimanto É verdade, a oligarquia é a primeira a ser
atingida por esse mal.
Sócrates Não se pode evitar esta desordem nos governos
deste gênero; do contrário, uns não seriam excessivamente ricos
e outros não estariam na mais completa miséria.
Adimanto É verdade.
Sócrates Repara também nisto: esse homem, quando
era rico e gastava os seus bens, era mais útil à cidade nas funções
a que acabamos de nos referir? Ou, embora se fazendo passar
por um dos chefes, não era, na realidade, nem chefe nem servidor
do Estado, mas apenas dissipador dos seus bens?
Adimanto Sim. E precisamente dessa forma, Sócrates,
não era mais que um dissipador.
Sócrates Poderemos então dizer desse homem que, como
o zangão nasce numa célula para ser o flagelo da colmeia, ele,
também um zangão, nasce numa família para ser o flagelo da
cidade?
Adimanto Tenho certeza disso.
Sócrates Mas não é verdade, Adimanto, que o Criador
fez nascer sem ferrão todos os zangões alados, ao passo que,
entre os zangões com dois pés, se uns não têm ferrão, outros
os têm, e terríveis? Pertencem à primeira classe os que morrem
indigentes na velhice; à segunda, todos os que denominamos
malfeitores.
Adimanto E a pura verdade.
Sócrates Fica claro, então, que em toda cidade onde
vires pobres se esconderão também ladrões, salteadores de templos
e artesãos de todos os crimes dessa espécie.
Adimanto Fica claro.
Sócrates Ora, não vês mendigos nas cidades oligárquicas?
Adimanto Com exceção dos chefes, quase todos os
cidadãos o são.
Sócrates Não devemos acreditar, dessa forma, que há
nas cidades muitos malfeitores providos de ferrões, que as autoridades
contêm deliberadamente pela força?
Adimanto Devemos crer, com efeito.
Sócrates E não diremos que é a ignorância, a má educação
e a forma de governo que fazem com que surjam aí pessoas
de tal espécie?
Adimanto Sim, diremos.
Sócrates Este é, pois, o caráter da cidade oligárquica, e
aí estão os seus vícios, e talvez haja mais.
Adimanto Assim creio.
Sócrates Mas vamos considerar terminado o quadro desta
constituição a que chamamos oligarquia, onde o censo faz
os magistrados. Agora, analisemos o homem que lhe conesponde,
como se forma e qual o seu caráter.
Adimanto Concordo.
Sócrates Não é justamente deste modo que ele passa
do espírito timoaático ao oligárquico?
Adimanto Como?
Sócrates O filho do timocrático começa por imitar o
pai e a seguir os seus passos. Mas depois, quando o vê despedaçar-
se subitamente contra o Estado, como contra um rochedo,
e, depois de ter dilapidado a riqueza e se ter dissipado
a si mesmo à frente de um exército ou no exercício de uma
alta função, cair diante de um tribunal, ultrajado por delatores,
condenado à morte, ao exílio ou à perda da honra e de
todos os bens...
Adimanto Isso é comum.
Sócrates Ao ver este tipo de coisa, meu amigo, estas
desgraças e ao compartilha-las, estando despojado do patrimônio
e tendo receio por sua própria pessoa, penso que logo derruba
do trono que lhes tinha erguido na alma a ambição e a
soberba. Então, humilhado pela sua pobreza, volta-se para o
negócio e, pouco a pouco, à custa de muito trabalho e fazendo
economias, junta haveres. Não achas que então colocará nesse
trono mterior o espírito de cupidez e de avareza, que fará dele,
no seu íntimo, o Grande Rei, cingindo-o com a fiara, o colar e
a cimitarra?
Adimanto Acho.
Sócrates Quanto ao espírito racional e corajoso, deita-
os ao chão, suponho eu, de um e outro lado desse rei, e
aí, tendo-os reduzido a escravos, não permite que o primeiro
tenha outros pontos de interesse e pesquisa que não sejam
os meios de aumentar a sua fortuna, que o segundo admire
e honre outra coisa que não seja a riqueza e os ricos e ponha
a sua dignidade em algo diferente da posse de grandes bens
e do meio de consegui-lo.
Adimanto Não há outra estrada por onde um homem
possa passar com mais rapidez e com mais segurança da ambição
à avareza.
Sócrates Então podemos dizer que esse homem é um
oligarca?
Adimanto Com certeza, no momento em que se deu a
mudança, era ele semelhante à constituição de que teve origem
a oligarquia.
Sócrates Vejamos então se se assemelha a esta.
Adimanto Vejamos, pois.
Sócrates Primeiramente, não te parece que se lhe assemelha
pelo enorme caso que faz da fortuna?
Adimanto Parece-me.
Sócrates Além do mais, se lhe assemelha pelo espírito
poupador e astucioso, que satisfaz unicamente os seus desejos
prementes, privando-o de qualquer outro gasto e dominando
os outros anseios que considera frívolos.
Adimanto Não é mais que a verdade.
[1 Trata-se das insígnIas do Grande Rei, nome dado pelos gregos ao rei dos persas]
Sócrates E um indivíduo sórdido, que faz dinheiro de
tudo e só pensa em acumular. É, por fim, um desses homens
que a multidão ovaciona. Mas um tal indivíduo não é semelhante
ao governo oligárquico?
Adimanto Assim me parece, pois que, como esse governo,
honra mais que tudo as riquezas.
Sócrates Tenho para mim que esse homem não pensou
muito em instruir-se.
Adimanto Parece que não. Caso contrário, não teria
aceitado um cego para guiar o coro dos seus desejos e não o
teria na mais alta conta.
Sócrates Muito bem, mas considera o que te digo. Não
diremos que a falta de instrução fez nascer nele desejos da natureza
do zangão, uns mendigos, outros malfeitores, que dominam
pela força os seus maus pendores?
Adimanto Sim, com certeza.
Sócrates Sabes tu onde deves fixar o olhar para descobrires
o malefício desses desejos?
Adimanto Onde?
Sócrates Olha para ele quando é encarregado de uma
tutela ou de qualquer outro encargo, onde terá toda a liberdade
de agir mal.
Adimanto Muito bem.
Sócrates E isso não põe em evidência que, nos outros
misteres, onde é avaliado por uma aparência de justiça, contém
os seus maus pendores por um tipo de violência sensata, não
fazendo-os crer que é preferível não lhes ceder, nem acalmando-
os por meio da razão, mas vigiando-os devido à obrigação
e ao medo, dado que treme por seus haveres?
Adimanto Indubitavelmente.
Sócrates Por Zeus, meu amigo! Quando se tratar de
gastar os bens alheios, encontrarás nessas pessoas desejos que
se aparentam com o caráter do zangão.
Adimanto E assim que parece.
Sócrates Um homem desses não estará livre da revolta
[1 Referência a Plutão, deus das riquezas. Júpiter privou-o da visão, e então Plutão,
tendo caído nas mãos de intrigantes, só proporcionava a riqueza a individuos não
merecedores de possuí-Ia.]
interior. Não será uno, mas duplo. E quase sempre os seus melhores
pendores dominarão os piores.
Adimanto Exato.
Sócrates Penso que, por isso, terá um exterior mais digno
que muitos outros, mas a verdadeira virtude da alma una e
harmoniosa se apartará dele.
Adimanto Também penso o mesmo.
Sócrates Está claro para mim que este homem parcimonioso
é um fraco adversário nos concursos da cidade, onde
se disputa uma vitória particular ou qualquer outra honra, pois
ele não quer gastar dinheiro com a fama que se alcança nestas
espécies de combates, com receio de despertar em si os desejos
pródigos e chamá-los em seu auxilio para vencer. Como verdadeiro
oligarca, luta apenas com uma pequena parte das suas
forças e, no mais das vezes, é derrotado, mas mantém as suas
riquezas.
Adimanto É exato.
Sócrates Poderemos duvidar que este parcimonioso, este
homem de negócios, se situa junto da cidade oligárquica em
virtude da sua semelhança com ela?
Adimanto De modo algum.
Sócrates Parece-me que agora devemos estudar a democracia,
como se forma e qual sua origem, para conhecermos
o caráter do homem que lhe assemelha e fazê-lo comparecer
em juízo.
Adimanto Sim, devemos seguir esse caminho.
Sócrates Pois bem. Não é por efeito da insaciável cobiça
do indivíduo de possuir os bens e de tornar-se tão rico quanto
possível que se passa da oligarquia à democracia?
Adimanto Como dizes?
Sócrates Os chefes, neste regime, devem a sua autoridade
aos grandes bens que possuem. Dessa forma, recusar-seão,
suponho, a fazer uma lei para reprimir a libertinagem dos
jovens e a dissipação de seu patrimônio, visto que têm a intenção
de comprá-lo ou de o conseguirem pela usura, para se tornarem
ainda mais ricos e poderosos.
Adimanto Sem dúvida, é isso.
Sócrates Então, não fica claro que, num Estado, os cidadãos
não podem honrar a riqueza e ao mesmo tempo adquire
a temperança conveniente, mas que são obrigados a renunciar
a uma ou a outra?
Adimanto Fica claro.
Sócrates Desse modo, nas oligarquias, os chefes, pela
sua negligência e as facilidades que concedem à libertinagem,
reduzem por vezes à indigência homens nobres.
Adimanto É verdade.
Sócrates E ao que me parece, assim temos estabelecidas
nas cidades as pessoas providas de ferrões e bem armadas, umas
atoladas em dívidas, outras em infâmia, outras ainda nas duas
coisas ao mesmo tempo; e cheias de ódio por aqueles que adquiriram
os seus bens, conspiram contra eles e contra o resto
dos cidadãos. Esses desejam vivamente a revolução.
Adimanto Realmente.
Sócrates Porém os usurários seguem de cabeça baixa,
sem parecerem ver as suas vítimas. Prejudicam com o seu
dinheiro quem quer que lhes dê oportunidade para isso entre
os cidadãos e, ao mesmo tempo que multiplicam os juros do
seu capital, fazem multiplicar na cidade a raça do zangão e
do mendigo.
Adimanto E poderia ser de outro modo?
Sócrates Vê que não desejam de modo algum pôr fim
a essa crueldade, impedindo os particulares de disporem arbitrariamente
dos seus bens, nem fazendo uma lei que suprima
tais abusos.
Adimanto Qual seria essa lei?
Sócrates Uma que se serviria de alternativa para a outra
contra os dissipadores e que obrigaria os cidadãos à honestidade.
Se o legislador estabelecesse que as transações voluntárias
se fizessem em geral com risco daquele que empresta, a imprudência
seria menor na cidade e ver-se-iam menos desses
males a que nos referíamos há pouco.
Adimanto Muito menos, é cedo.
Sócrates Ao passo que, hoje, pelo seu comportamento,
os governantes reduzem os governados a esta triste situação.
E, no que diz respeito a eles próprios e aos seus descendentes,
não é verdade que estes jovens são dissolutos, fracos para os
exercícios físicos e inteleduais, indolentes e incapazes de resistir
quer ao prazer, quer ao desgosto?
Adimanto Estou inteiramente de acordo.
Sócrates E eles próprios, com o único fito de enriquecer
e desprezando todo o resto, inquietar-se-ão mais com a virtude
do que os pobres?
Adimanto Não.
Sócrates Pois bem, com tais disposições, quando os
governantes e os governados se encontram, em viagem ou
em qualquer outra circunstância, numa embaixada, no exército,
em mar ou em terra, e se analisam mutuamente nas
ocasiões de perigo, não são os pobres que são desprezados
pelos ricos; no mais das vezes, ao Contrário, quando um pobre
esquálido e queimado de sol se vê na refrega ao lado de um
rico alimentado à sombra e com o corpo carregado de gordura
e o encontra ofegante e embaraçado, não crês que diz para
si mesmo que esses homens não devem as suas riquezas senão
à covardia dos pobres? E, quando estes se encontram entre
si, não dizem uns aos outros: Estes homens estão à nossa
mercê, porque de nada servem?
Adimanto Tenho absoluta certeza de que pensam e falam
desse modo.
Sócrates Então, como é suficiente para um corpo débil
um pequeno choque externo para que fique doente, como às
vezes até a desordem se manifesta nele sem causa exterior, não
é certo também que uma cidade, numa situação semelhante, é
atingida pelo mal e destrói a si mesMa por um pretexto qualquer,
sendo que um dos partidos terá pedido auxilio a um Estado
oligárquico ou democrático? E, às vezes, a própria discórdia
não chega a se disseminar sem intervenção de fora?
Adimanto Sim, é certo.
Sócrates Pois, a meu ver, a democracia surge quando
os pobres, tendo vencido os ricos, eliminam uns, expulsam outios
e dividem por igual com os que ficam o governo e os cargos
públicos. E, devo dizer, na maior parte das vezes estes cargos
são atribuídos por sorteio.
Adimanto E assim mesmo, Sócrates, que se institui a
democracia, quer pelas ar quer pelo medo que obriga os ricos
a fugirem.
Sócrates Então analisemos de que modo esses indivíduos
administram e o que pode ser uma tal constituição. Assim,
é evidente que o homem que se lhe assemelha nos mostrará as
características do homem democrático.
Adimanto Evidenta
Sócrates Em primeiro lugar, não são eles livres, a cidade
não é sobejamente livre e de linguagem sincera e se pode fazer
o que se quer?
Adimanto Ao menos, é isso o que se diz.
Sócrates Desse modo, fica claro que em todo lugar onde
tal liberdade impera cada um organiza a sua vida como melhor
Lhe convém.
Adimanto Sim, fica clara
Sócrates Encontraremos, segundo suponho, homens de
toda espécie neste governo, mais do que em qualquer outro.
Adimanto Como não?
Sócrates Desse modo, é provável que seja o mais belo
de todos. Como um traje colorido que ostenta toda a gama das
tonalidades, oferecendo toda a variedade dos caracteres, poderá
parecer de uma beleza irretocável. E talvez muita gente, semelhante
às crianças e mulheres que admiram as miscelâneas de
cores, decida que é o mais belo.
Adimanto Com certeza.
Sócrates E é aí, bem-aventurado amigo, onde é cômodo
procurar uma constituição.
Adzmanto Por quê?
Sócrates Porque aí estão todas elas, graças à liberdade
reinante, e parece que quem pretende fundar uma cidade, o
que fazíamos há pouco, é obrigado a dirigir-se a um Estado
democrático, como a um bazar de constituições, para escolher
a que prefere e, a partir desse modelo, realizar em seguida o
seu projeto.
Adimanto É bastante provável que não lhe faltem
modelos.
Sócrates Nesse Estado não há a obrigação de mandar
se não se for capaz de tal, nem a obedecer se não se quiser,
assim como a fazer a guerra quando os outros a fazem, nem a
ficar em paz quando os outros ficam, se não se pretender a
paz. No entanto, mesmo que a lei proiba ser magistrado ou
juiz, isso não evita que se possam exercer essas funções, se se
desejar. À primeira vista, não é uma condição divina e deliciosa?
Adimanto Talvez à primeira vista.
Sócrates Pois bem! A mansidão das democracias para
com certos condenados não é elegante? Não viste ainda num
governo desta natureza homens feridos por uma sentença de
morte ou de exílio continuarem na sua pátria e circularem em
publico? O condenado, como se ninguém se preocupasse com
ele nem o visse, passeia como um herói invisível.
Adimanto Tenho visto muitos assim.
Sáaates E o espírito indulgente e que não se atém a
questiúnculas deste governo, mas sim cheio de desprezo pelas
máximas que enunciamos com tanto respeito ao lançarmos as
bases da nossa cidade, quando dizíamos que, a não ser que
fosse dotado de excelente caráter, ninguém poderia tornar-se
homem de bem se, desde a infância, não tivesse brincado no
meio das coisas belas e cultivado tudo o que é belo; com que
soberba um tal espírito, calcando aos pés todos estes princípios,
despreza preocupar-se com os trabalhos em que se formou o
homem político, mas honra-o se afirmar apenas a sua benevolencia
para com o povo!
Adimanto É um espírito muito generoso, sem dúvida.
Sócrates Tais são as vantagens da democracia, com outras
semelhantes. É esse, como vês, um governo agradável, anárquico
e variado, que dispensa uma espécie de igualdade, tanto
ao que e desigual como ao que é igual.
Adimanto Não dizes nada que não seja conhecido de todos.
Sócrates Considera agora o homem que lhe é seme-
]hante. Ou, antes, não devemos examinar, como fizemos para
o governo, de que maneira se origina?
Adimanto Sim, é claro.
Sócrates Por exemplo, julgo eu que o filho de um homem
parcimonioso e oligárquico foi educado pelo seu pai à maneira
deste último.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Imagino então que, semelhante ao pai, dominará
os desejos que o impelem para o esbanjamento e são mitnlgos
do ganho, desejos a que chamamos supérfluos.
Adimanto Concordo contigo.
Sócrates Mas não seria bom que, para evitar toda a
obscuridade na nossa discussão, definíssemos primeiramente
os desejos necessários e os desejos supérfluos?
Adimanto Sim, com efeito.
Sócrates Não é com razão que chamamos necessários
aos que não podemos rejeitar e a todos aqueles que nos convém
satisfazer, pois que estas duas espécies de desejos são necessidades
naturais? Não é assim?
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates É justo, pois, que consideremos estes desejos
necessários.
Adimanto Sim.
Sócrates Mas aqueles de que podemos desfazer-nos a
tempo, cuja presença, além disso, não produz nenhum bem, e
os que fazem mal, se chamarmos a todos estes desejos supérfluos,
não estaremos a dar-lhes a qualificação adequada?
Adimanto Sim, estaremos.
Sócrates Vamos ver um exemplo de cada um, para enquadrá-
los numa forma geral?
Adimanto Sim, vejamos.
Sócrates O desejo de comer, este desejo da alimentação
simples e dos temperos, não é necessário na medida em que a
saúde e a conservação das forças o exigem?
Adimanto Penso que assim seja.
Sócrates O desejo da alimentação é necessário por duas
razões: porque é útil e porque não é possível manter-se vivo
sem o satisfazer.
Adimanto Assim e.
Sócrates E o dos temperos também, na medida em que
contribui para a conservação das forças.
Adimanto Realmente.
Sócrates Mas não devemos considerar supérfluo o desejo
que vai além e incide sobre pratos mais requintados, e
que, reprimido desde a infância pela educação, pode desaparecer
na maioria dos homens, tornando-se prejudicial ao
corpo e não menos prejudicial à alma no aspecto da prudência
e da temperança?
Adimanto Certamente!
Sócrates Diremos, pois, que estes são desejos dissipado
e os outros, proveitosos, porque nos tomam capazes de agir.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates E não diremos o mesmo dos desejos amorosos
e dos demais?
Adimanto Exatamente.
Sócrates Bem, aquele a quem há instantes chamávamos
zangão é o homem cheio de paixões e vontades, governado
pelos desejos supérfluos, e aquele homem que é governado pelos
desejos necessários é o parcimonioso e oligárquico.
Adimanto Com certeza.
Sócrates Voltemos agora a explicar como um oligarca
se faz democrata. Parece-me que, na maior parte das vezes, se
passa da maneira seguinte.
Adimanto Como?
Sócrates Quando um jovem, como dissemos atrás, criado
na ignorância e na parcimônia provou o mel dos zangões e se
viu na companhia desses insetos ardentes e terríveis que podem
proporcionar-lhe prazeres de toda espécie, infinitamente diversificados
e matizados, é então, crê, que o seu governo interior
começa a passar da oligarquia à democracia.
Adimanto E forçoso que seja dessa forma.
Sócrates Então, como o Estado mudou de forma quando
um dos partidos foi socorrido de fora por aliados de um partido
semelhante, de igual modo o jovem não muda de costumes
quando alguns dos seus desejos são socorridos de fora por desejos
da mesma família e da mesma natureza?
Adimanto Indubitavelmente.
Sócrates E se, como suponho, os seus sentimentos oligárquicos
receberem de uma aliança qualquer auxffio contrário, sob
a fonna das advertências e reprimendas do pai ou dos parentes,
então nascerão nele a revolta, a oposição e a guerra interna.
Adimanto Certamente.
Sáaates Suponho também que, por vezes, a facção democrática
tenha cedido à oligárquica. Aí então, ao surgir na alma
do jovem uma espécie de pudor, alguns desejos frram destruidos,
outros expulsos, e a ordem, assim, ficou restabelecida.
Adimanto Com efeito, às vezes isso é possível.
Sócrates Mas, não tendo sabido o pai educar o filho,
desejos assemelhados aos que foram expulsos, uma vez alimentados
secretamente, multiplicaram-se e fortificaram-se.
Adimanto Sim, isso costuma acontecer.
Sócrates Arrastaram-no então para as mesmas companhias
e, deste comércio clandestino, geraram uma multidão de
outros desejos.
Adimanto Com certeza.
Sócrates Por fim, imagino eu, ocuparam a acrópole da
alma do jovem, tendo-a sentido vazia de ciência, de hábitos
nobres e de princípios verdadeiros, que são certamente os melhores
guardiões e protetores da razão nos humanos amados
pelos deuses.
Adimanto São mesmo os melhores.
Sócrates Então, acorreram máximas, opiniões falsas e
presunçosas e tomaram posse do seu lugar.
Adimanto E mesmo exato.
Sócrates Pois bem, o jovem, tendo regressado para junto
dos lotófagos, instala-se abertamente no meio deles. E se, da
parte dos seus parentes, algum auxilio chega ao partido contrário,
que é a parte melhor da sua alma, essas presunçosas
máximas fecham nele as portas da fortaleza real e não deixam
entrar nem esse reforço nem a embaixada dos conselhos salutares
que lhe dirigem sábios anciãos. E são estas máximas que
o arrebatam no combate. Então, tratando o pudor de imbecilidade,
repelem-no e exilam-no vergonhosamente; chamando à
moderação covardia, ridicularizam-na e expulsam-na; e, fazendo
passar a moderação e o comedimento nas despesas por rusticidade
e baixeza, põem-nos fora, secundadas em tudo isso por
uma multidão de desejos inúteis.
Adimanto E a mais pura verdade.
Sócrates Após terem esvaziado e purificado destas virtudes
a alma do jovem que têm em seu poder, como que para
iniciá-lo nos Grandes Mistérios, introduzem nela, com muito
brilho, seguidas de um numeroso coro e coroadas, a insolência,
a anarquia, a licenciosidade, a impudência, que louvam e decoram
com belos nomes, chamando nobre educação à insolência,
liberdade à anarquia, magnificência ao deboche, coragem à impudência.
Não é assim que um jovem habituado a satisfazer
[1 Aiusâo aos companheiros de LJlisses. que, depois de terem comido frutos de Iótus
se esqueceram da pátria. Também o jovem que mergulha nos prazeres vulgares esquece a
sua pátria celeste.]
apenas os desejos necessários acaba passando da liberdade à
dissolução, emancipando os desejos supérfluos e perniciosos e
dando a eles livre curso?
Adimanto Sim, isso está claro.
Sócrates E como vive a partir daí? Julgo que não dispensa
menos dinheiro, esforços e tempo para os prazeres supérfluos
do que para os necessários. E, se é bastante feliz para
não levar a sua loucura dionisíaca demasiado longe, mais avançado
em idade, uma vez tendo ultrapassado o perigo do tumulto,
acolhe uma parte dos sentimentos banidos e deixa de
entregar-se por inteiro aos que os tinham suplantado. Estabelece
uma espécie de igualdade entre os prazeres, confiando o comando
da sua alma àquele que se apresenta como se lhe fosse
oferecido pela sorte, até que seja saciado, e em seguida a outro.
Não menospreza nenhum, mas trata-os em pé de igualdade.
Adimanto É verdade.
Sócrates No entanto, em vão alguém virá lhe dizer que
certos prazeres derivam de desejos belos e honestos, e outros
de desejos proibidos, que é preciso procurar e honrar os pnmeiros,
reprimir e domar os segundos. Ele responde a tudo isto
com sinais de incredulidade e defende que todos os prazeres
são da mesma natureza e se deve estimá-los igualmente.
Adimanto Na disposição de espírito em que se encontra,
terá de agir desse modo.
Sócrates Vive assim dia após dia e abandona-se ao desejo
que se apresenta. Hoje embriaga-se ao som da flauta, amanhã
beberá água pura e jejuará. Ora se exercita na ginástica, ora se
entrega ao ócio e não se preocupa com nada; ora parece dedicado
na filosofia. Muitas vezes ocupa-se de política e, saltando para
a tribuna, diz ou faz o que lhe passa pela cabeça. Sucede-lhe
entusiasmar-se pela gente de guerra, e ei-lo que se torna guerreiro.
Interessa-se pelo comércio, e ei-lo que se lança nos negócios.
A sua vida não conhece nem ordem nem necessidade, mas
considera-a agradável, livre, feliz e se mantém fiel a ela.
Adimanto Descreveste com perfeição a vida de um amigo
da igualdade.
Sócrates Creio que ele reúne todas as espécies de traços
e caracteres e que é realmente o homem matizado que corresponde
à cidade democrática. Por isso muitas pessoas de ambos
os sexos invejam o seu estilo de existência, em que se encontra
a maior parte dos modelos de governos e costumes.
Adimanto Compreendo.
Sócrates Pois quê! Classifiquemos este homem em face
da democracia, visto que foi com razão que o denominamos
democrático.
Adimanto Sim, façamo-lo.
Sócrates Resta-nos agora estudar a mais bela forma de
governo e o mais belo caráter: quero dizer, a tirania e o tirano.
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates Vejamos, meu caro amigo, sob que aspectos
se apresenta a tirania, dado que, quanto à sua origem, é quase
evidente que se origina da democracia.
Adimanto E claro.
Sócrates Desse modo, afirmo que a passagem da democracia
à tirania se faz da mesma maneira que a da oligarquia
à democracia.
Adimanto Como?
Sócrates O b se propunha e que deu origem à oligarquia
era a riqueza, não era?
Adimanto Sim, era.
Sócrates Dissemos que a paixão insaciável da riqueza
e a indiferença que ela inspira por todo o resto é que perderam
este governo. É verdade.
Sócrates Sendo assim, diz: não é o desejo insaciável
daquilo que a democracia considera o seu bem supremo que
a perde?
Adimanto E que bem é esse?
Sócrates A liberdade. Com efeito, num Estado demoaático
ouvirás dizer que é o mais belo de todos os bens, motivo
por que um homem nascido livre só poderá habitar nessa cidade.
Adimanto Sim, é isso o que se ouve muitas vezes.
Sócrates O que eu ia dizer há pouco é: não é o desejo
insaciável desse bem, e a indiferença por todo o resto, que muda
este governo e o obriga a recorrer à tirania?
Adimanto Como?
Sócrates Quando um Estado democrático, sedento de
liberdade, passa a ser dominado por maus chefes, que fazem
com que ele se embriague com esse vinho puro para além de
toda a decência, então, se os seus magistrados não se mostram
inteiramente dóceis e não lhe concedem um alto grau de liberdade,
ele castiga-os, acusando-os de serem criminosos e oligarcas.
Adimanto E isso mesmo o que ele faz.
Sócrates E ridiculariza os que obedecem aos magistrados
e trata-os de homens servis e sem valor. Por outro lado, louva
e honra, em particular e em público, os governantes que parecem
ser governados e os governados que parecem ser governantes.
Não é inevitável que, num Estado assim, o espírito de liberdade
se estenda a tudo?
Adimanto Claro, como não?
Sócrates E que penetre, Adimanto, no interior das familhas
e que, por último, a anarquia se transmita até aos próprios
animais?
Adimanto O que queres dizer?
Sócrates Que o pai se habitua a tratar o filho como seu
igual e a temer os filhos dele. Que o filho se assemelha ao pai
e não respeita nem teme os pais, porque quer ser livre. Que o
meteco se torna igual ao cidadão, o cidadão ao meteco e do
mesmo modo todo estrangeiro.
Adimanto Na verdade, é assim.
Sócrates Aqui tens o que acontece e outros pequenos
abusos como estes. O mestre receia os discípulos e lisonjeia-os,
os discípulos fazem pouco-caso dos mestres e dos pedagogos.
De modo geral, os jovens imitam os mais velhos e disputam
com eles em palavras e ações. Os idosos, por seu lado, sujeitam-
se às maneiras dos jovens e mostram-se cheios de gentileza
e petulância, imitando a juventude, com medo de serem considerados
enfadonhos e despóticos.
Adimanto E assim, realmente.
Sócrates Mas, meu caro, o limite extremo do excesso
de liberdade que um tal Estado oferece é atingido quando as
pessoas dos dois sexos que se compram como escravos não são
menos livres do que aqueles que as compraram. E quase nos
esquecíamos de dizer até onde vão a igualdade e a liberdade
nas relações entre os homens e as mulheres.
Adimanto Mas por que não havemos de dizer, segundo
a expressão de Ésquio, o que tínhamos na ponta da língua?
Sócrates Está certo, e é isso o que faço. Até que ponto
os animais domesticados pelos homens são aqui mais livres do
que em outra parte é coisa que custa a acreditar quando se não
a viu. Na verdade, como diz o provérbio, as cadelas comportam-
se aí como as donas; os cavalos e os burros, habituados a
uma marcha livre e altiva, atropelam todos os que encontram
no caminho, quando estes não lhes cedem a vez. E o mesmo
sucede com o resto: tudo transborda de liberdade.
Adimanto Estás a relatar-me o meu próprio sonho,
visto que é rara a vez que isso não me aconteça, quando vou
ao campo.
Sócrates Bem, vês o resultado de todos estes abusos
acumulados? Compreendes que tornam a alma dos cidadãos
tão melindrosa que, à mínima aparência de opressão, estes se
indignam e revoltam? E acabam, como sabes, por não se importar
com as leis escritas ou não escritas, para que não venham
a ter nenhum senhor.
Adimanto Sei disso muitíssimo bem.
Sócrates Pois então, meu amigo, é este governo tão belo
e arrogante que dá origem à tirania, pelo menos a meu ver.
Adimanto Arrogante, com efeito! Mas o que acontece
em seguida?
Sócrates O mesmo mal que, tendo se desenvolvido na
oligarquia, causou a sua ruiria, desenvolve-se aqui com mais amplitude
e força, devido ao desregramento geral, e reduz a demo-
cracia à escravidão, porque é certo que todo excesso costuma provocar
uma viva reação nas estações, nas plantas, nos nossos coq
e nos governos, mais do que em qualquer outra coisa.
Adimanto E natural que seja assim.
Sócrates Desse modo, o excesso de liberdade conduz
um excesso de servidão, tanto no indivíduo como no Estado.
Adimanto E o que me parece.
Sócrates Verdadeiramente, a tirania não se originou
nenhum outro governo senão da democracia, seguindo-se ai
liberdade extrema, penso eu, uma extrema e cruel servidão.
Adimanto Concordo.
Sócrates Mas creio que não era isso o que tu me
guntavas. Queres saber que mal é esse, comum à oligarquia
à democracia, que reduz a última à escravidão.
Adimanto É isso.
Sócrates Que seja! Entendia por isso essa raça de homens
ociosos e dissipadores, uns mais corajosos, que vão à
frente, outros mais covardes, que os seguem. Compara-mo-los
a zangões, os primeiros munidos de ferrão, os segundos desprovidos
dele.
Adimanto E com justeza.
Sócrates Vê, quando estas duas espécies de homens
aparecem num corpo político, perturbam-no totalmente, como
fazem a fleuma e a bis no corpo humano. E preciso que o
sábio legislador, no papel de médico do Estado, se acautele
previamente, tal como o prudente apicultor, em primeiro lugar,
para impedir que elas aí nasçam, ou, se não o conseguir, para
as suprimir com os próprios alvéolos.
Adimanto Sim, por Zeus! E isso mesmo o que deve
ser feito.
Sócrates Agora sigamos este processo, para vennos mais
claramente o que procuramos.
Adimanto Qual?
Sócrates Dividamos, em pensamento, uma cidade democrática
em três classes, tal como é, na realidade. A primeira
é essa casta que, em conseqüência do desregramento público,
não se desenvolve menos do que na oligarquia.
Adimanto Assim é.
Sócrates Com a diferença de que é muito mais ardente
nesta última.
Adimanto Por quê?
Sócrates Na oligarquia, já que é desprovida de crédito
e mantida à margem do poder, fica inativa e não ganha poder.
Na democracia, pelo contrário, é ela que governa quase com
exclusividade. Os mais ousados do grupo falam e atuam. Os
demais, sentados perto da tribuna, se intimidam e fecham a
boca ao contraditor, de modo que, num tal governo, todos
os assuntos são regulados por eles, com exceção de um pequeno
número.
Adimanto E isso.
Sócrates Há também uma outra classe, que se distingue
sempre da multidão.
Adimanto Qual é?
Sócrates Como toda a gente trabalha para enriquecer,
os que são naturalmente mais disciplinados tornam-se, em geral,
os mais ricos.
Adimanto E o que parece.
Sócrates E aí, suponho, que há mel em abundância para
os zangões e que é mais fácil de extrair.
Adimanto É verdade. Afinal, como se poderia tirá-lo
daqueles que pouco têm?
Sócrates Por esse motivo, é a esses ricos que se dá o
nome de erva de zangões.
Adimanto Parece-me que sim.
Sócrates A terceira classe é o povo, todos os que trabalham
com as mãos e os que são estranhos aos negócios e não
possuem quase nada. Numa democracia, esta classe é a mais
numerosa e a mais poderosa. quando está unida.
Adimanto É verdade. Mas não se dispõem muito à
união, a menos que lhe caiba uma parte de mel.
Sócrates Por isso mesmo, cabe-lhe sempre algum, na
medida em que os chefes podem apoderar-se da fortuna dos
possuidores e distribuí-la pelo povo, embora guardando para
eles a maior e melhor parte.
Adimanto Sem dúvida é assim que recebe alguma coisa.
Sócrates No entanto, os ricos despojados são, penso,
obrigados a defender-se: falam ao povo e servem-se de todos
os meios ao seu alcance.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Os demais, por sua vez, acusam-nos, embora
não desejem a revolução, de conspirarem contra o povo e de
serem oligarcas.
Adimanto Com efeito.
Sócrates Quando vêem que o povo, não por má vontadê,
mas por ignorância, e porque é enganado pelos seus calunia-.
dores, tenta prejudicá-los, então, quer queiram, quer não, tornam-
sÉ verdadeiros oligarcas, e isso não se faz de sua livre e>
espontânea vontade: uma vez mais, é o zangão que provoc4.
este mal, picando-os.
Adimanto É isso!
[1 Alusão ao adágio grego: os zangôn alimentam-se do tnbalho alheio. ]
Sócrates Vêm daí perseguições, processos e lutas entre
uns e outros.
Adimanto Sem dúvida nenhuma.
Sócrates Agora, o povo não tem o costume invariável de
pôr à sua frente um homem cujo poder alimenta e engmndece?
Adimanto Com efeito, tem esse costume.
Sócrates Então, é claro que, se o tirano surge em alguma
parte, é na raiz desse protetor, e não em alguma outra, que fixa
o seu caule.
Adimanto Está claro e evidente.
Sócrates Mas onde começa a transformação do protetor
em tirano? Não é, com certeza, quando se põe a fazer o que se
relata na fábula do templo de Zeus Liceano, na Arcádia?
Adimanto O que diz a fábula?
Sócrates Que aquele que comeu entranhas humanas,
cortadas em pedaços com as de outras vítimas, se transforma,
inevitavelmente, em lobo. Nunca ouviste isto?
Adimanto Ouvi.
Sócrates Do mesmo modo, quando o chefe do povo,
seguro da obediência inconteste da multidão, não sabe abster-se
do sangue dos homens da sua tribo, mas, acusando-os injustamente,
como é costume dos seus iguais, e levando-os até os
tribunais, se mancha de crimes mandando tirar-lhes a vida,
quando, com uma língua e uma boca ímpias, prova o sangue
da sua família, exila e mata, deixando ao mesmo tempo entrever
a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras, então
um tal homem não deve necessariamente, e como por uma lei
do destino, morrer à mão dos seus inimigos ou tomar-se tirano,
e de homem se transformar em lobo?
Adimanto E forçoso, com certeza.
Sócrates Aqui está o homem que fomenta a revolta contra
os ricos.
Adimanto Sim.
Sócrates Pois bem. Se depois de ter sido expulso ele ainda
voltar, apesar dos seus inimigos, não será um tirano completo?
Adimanto E evidente que sim.
Sócrates Porém, se os ricos não podem expulsá-lo, nem
provocar a sua morte indispondo-o contra o povo, buscam fazêlo
perecer em segredo, por morte violenta.
Adimanto Sim, isso costuma acontecer.
Sócrates E nesse ponto que todos os ambiciosos inventam
o famoso pedido do tirano, que consiste em solicitar ao
povo guardas de corpo, para lhe conservar o seu protetor.
Adimanto E o povo aceita porque, se bem receie pelo
seu protetor, possui muita confiança em si mesmo.
Sócrates Com efeito, assun e.
Adimanto Sem dúvida.
Sócrates Mas, quando um homem rico, e por isso suspeito
de ser o inimigo do povo, percebe tal coisa, aí, meu amigo,
toma o partido que o oráculo aconselhava a Creso e, ao longo
do Hermo de leito pedregoso, foge, não se importando que lhe
chamem covarde.
Adimanto E assim não recearia essa censura duas vezes!
Sócrates Se o apanham em fuga, suponho que é condenado
à morte.
Adimanto Inevitavelmente.
Sócrates Quanto a esse protetor do povo, é evidente
que não jaz em terra ocupando com o seu grande corpo um
grande espaço. Ao contrário, depois de ter abatido um grande
número de rivais, sobe para o carro da cidade e de protetor
transforma-se em tirano completo.
Adimanto Era de esperar essa atitude.
Sócrates Vejamos agora a felicidade deste homem e da
cidade onde se formou semelhante mortal.
Adimanto Muito bem.
Sócrates Nos primeiros dias, sorri e acolhe bem todos
os que encontra, declara que não é um tirano, promete muito
em particular e em público, adia dívidas, distribui terras pelo
povo e pelos seus prediletos e finge ser bom e amável para
com todos. Não costuma ser assim?
Adimanto Forçosamente.
Sócrates No entanto, depois de se desembaraçar dos seus
inimigos do exterior, reconciliando-se com uns, arruinando os outros,
e ao se sentir tranqüilo deste lado, começa sempre por piovocar
guerras, para que o povo tenha necessidade de um chefe.
Adimanto E bem assim.
Sócrates E também para que os cidadãos, empobrecidos
pelos impostos, sejam obrigados a pensar nas suas necessidades
cotidianas e conspirem menos contra ele.
Adimanto E evidente.
Sócrates E ocorre que, se alguns têm o espírito demasiado
livre para lhe permitirem comandar, encontra na guerra,
creio eu, um pretexto para se ver livre deles, entregando-os aos
golpes do inimigo. Por todas estas razões, é inevitável que um
tirano suscite sempre a guerra.
Adimanto E natural.
Sócrates Mas, ao fazê-lo, torna-se cada vez mais odioso
aos cidadãos.
Adimanto Como ser diferente?
Sócrates E não acontece que, entre aqueles que contribuíram
para a sua elevação, alguns falem livremente, quer diante
dele, quer entre eles próprios, e critiquem o que se passa?
Pelo menos os mais corajosos?
Adimanto Sim.
Sócrates É necessário, desse modo, que o tirano os elimine,
se quiser continuar a ser o chefe, e que acabe por não
deixar, tanto entre os seus amigos como entre os inimigos, nenhum
homem de al,gum valor.
Adimanto E evidente.
Sócrates Com olhar arguto, deve distinguir os que têm
coragem, grandeza de alma, prudência, riquezas, e a sua felicidade
é tanta que se vê forçado, quer queira, quer não, a declarar
guerra a todos e a preparar-lhes armadilhas, até que consiga
depurar o Estado.
Adimanto Linda maneira de depurá-lo!
Sócrates Sim, é o oposto da que utilizam os médicos
para curar o corpo. Estes últimos fazem desaparecer o que há
de mau e deixam o que há de bom: o tirano faz o contrário.
Adimanto Será obrigado a isso, se quiser conservar o poder.
Sócrates Então ele se vê ligado por uma bem-aventurada
necessidade, que o obriga a viver com gente desprezível ou a
ren,mciar à vida.
Adimanto E essa mesma a sua situação.
Sócrates vê, não é verdade que quanto mais odioso se
tornar aos cidadãos pelo seu agir mais necessidade terá de uma
guarda numerosa e fiel?
Adimanto Sem dúvida alguma.
Sócrates Mas quais serão esses soldados fiéis? De onde
os mandará vir?
Adimanto De livre vontade, muitos correrão até ele, se
lhes pagar.
Sócrates Com quê! Parece-me que te referes a zangões
estrangeiros e de todas as espécies.
Adimanto Acertaste, Sócrates.
Sócrates E da sua própria cidade? Acaso não pretendera...
Adimanto O quê?
Sócrates Tirar os escravos aos cidadãos e, depois de os
ter libertado, fazê-los entrar para o seu exército?
Adimanto Mas é claro. E serão esses os seus soldados
mais fiéis.
Sócrates Com efeito, segundo o que dizes, é bem acertada
a situação do tirano, se fizer de tais homens amigos e
confidentes, depois de ter feito morrer os primeiros!
Adimanto E, a meu ver, não poderia fazer outros.
Sócrates Portanto, esses companheiros admiram-no, e
os novos cidadãos vivem na sua companhia. Mas a gente honrada
odeia-o e evita-o, não lhe parece?
Adimanto E como pode ser de outro modo?
Sócrates Não é sem razão que a tragédia costuma ser
vista como uma arte de sabedoria, e Eurípides, um mestre extraordinário
nesta arte.
Adimanto Por quê?
Sócrates Porque enunciou esta máxima de sentido profundo:
os tiranos se tornam sábios pela convivência com o~
sábios. E entenda-se por sábios os que vivem na companh
do tirano.
Adimanto Sabemos que Eurípides e os outros po~
louvam a tirania como divina e tecem-lhe muitos outros elogios.
Sócrates Assim, enquanto indivíduos sábios, os po
trágicos hão de perdoar-nos, a nós e àqueles cujo governo
próximo do nosso, por não os admitirmos no nosso Estad
visto que são os cantores da tirania.
Adimanto Julgo que nos perdoarão, pelo menos os qi
têm espírito sutil.
Sócrates Eles podem, creio, percorrer as outras cidad
reunir as multidões e, contratando belas vozes, potentes e per
suasivas, arrastar os governos para a democracia e a tirania.
Adimanto E isso.
Sócrates Mesmo porque são pagos para isso e cumu
lados de honras, em primeiro lugar pelos tiranos, em segundo
pelas democracias. No entanto, à medida que sobem a encosta
das nossas constituições, a sua fama enfraquece, como se a falta
de fôlego a impedisse de seguir adiante.
Adimanto Assim é.
Sócrates Mas acabamos nos afastando do assunto. Voltemos
ao exército do tirano, essa tropa fOrmosa, numerosa, diversa
e sempre renovada, e vejamos conj0 se mantém.
Adimanto Está claro que, se a cidade possuir tesouros
sagrados, o tirano servir-se-á deles e, enquanto o pmduto da
sua venda bastar, não imporá ao povo itllpostos muito altos.
Sócrates Mas quando começarem a lhe faltar esses
recursos?
Adimanto Então passará a viver dos bens paternos, ele,
os seus comensais, os seus companheiros e as suas amantes.
Sócrates Então, o povo que deu origem ao tirano é quem
vai alimentá-lo, a ele e aos seus.
Adinianto Não haverá outra saída.
Sócrates Mas o que estás a dizer? Se o povo se rebela
e decide que não é justo que um filho n~ flor da idade esteja
a expensas do pai, e que, pelo contrário, o pai deve ser cuidado
pelo filho; que não o trouxe ao mundo e o criou para ele próprio
se tomar, quando o filho for grande, o escr~,O dos seus escravos
e para o alimentar com esses escravos e O 8rupo que o rodeiam,
mas, ao contrário, para ser desembaraçad% sob o seu governo,
dos ricos e daqueles a quem se chama gente honrada na cidade;
que agora lhe ordene que saia do Estado com os seus amigos,
como um pai expulsa o filho de casa, com os seus indesejáveis
convivas...
Adimanto Então aí o povo saberá o erro que cometeu
quando procriou, acariciou, criou semelhante filho, e aqueles
que pretende expulsar são mais fortes do que ele, por Zeus!
Soaates O que estás a dizer?! Ous~riao tirano ser violento
com o seu próprio pai e até feri-lo, se ele não o obedecesse?
Adimanto Sim, depois de o ter desarw.ado.
Sócrates Pelo que dizes, o tirano é um parricida e um
triste apoio dos idosos. Então, ao que me parece, chegamos ao
que se costuma chamar de tirania: o povo, de acordo com o
ditado, evitando a fumaça da submissão a homens livres, caiu
no fogo do despotismo dos escravos e, em troca de uma liberdade
excessiva e inoportuna, vestiu a farda mais dura e mais
amarga das servidões.
Adimanto Em verdade, é o que acontece.
Sócrates Ora bem! Implicará erro se dissermos que explicamos
de modo adequado a transição da democracia à tirania
e o que é esta, uma vez formada?
Adimanto A explicação cabe com perfeição.
LIVRO IX
SÓCRATES Resta-rios analisar o homem tirânico, como
se origina do homem democrático, o que é, uma vez formado,
e como é a sua vida, infeliz ou feliz.
Adimanto Sim, falta analisá-lo.
Sócrates Sabes o que ainda quero?
Adimanto Que é?
Sócrates No que concerne aos desejos, à sua natureza
e às suas espécies, parece-me que não demos suficientes explicações,
e, uma vez que este ponto seja deficiente, o inquérito
que realizamos terá pouca clareza.
Adimanto Mas ainda temos tempo de voltar atrás?
Sócrates Certamente que sim. Analisa o que quero ver
neles. Aqui está. Entre os prazeres e os desejos não necessários,
alguns parecem-me ilegítimos. Creio que sejam inatos em cada
um de nós, mas, reprimidos pelas leis e pelos desejos melhores,
com a ajuda da razão, podem ser totalmente extirpados em
alguns ou ficarem só em pequeno número e enfraquecidos, ao
passo que nos outros subsistem mais fortes e em maior número.
Adimanto A que desejos te referes?
Sócrates Àqueles que despertam durante o sono, quando
repousa essa parte da alma que é racional, benigna e feita para
comandar a outra, e a parte bestial e selvagem, empanturrada
de comida ou de bebida, estremece e, depois de ter sacudido
o sono, parte em busca da satisfação dos seus maus pendores.
Tu sabes que em tais casos ela ousa tudo, como se fosse desembaraçada
e livre de toda vergonha e de toda prudência.
Não receia tentar, em pensamento, unir-se à sua mãe ou a quem
quer que seja, homem, deus ou animal, envolver-se em qualquer
tipo de crime e não deixar de ingerir nenhuma espécie de alimento.
Numa palavra, não há loucura nem impudência de que
não seja capaz.
Adimanto É verdade o que dizes.
Sócrates Mas quando um homem, saudável de corpo
e moderado, se entrega ao sono depois de ter despertado o
elemento racional da sua alma e tê-lo alimentado de belos pensamentos
e nobres especulações, pensando a respeito de si mesmo;
quando evitou tanto reduzir à fome como saciar o elemento
concupiscível, a fim de que se mantenha em repouso e não
cause perturbações, pelas suas alegrias ou tristezas, ao princípio
melhor, mas o deixe, só consigo mesmo e liberto, examinar e
esforçar-se por apreender que ignora do passado, do presente
e do futuro; quando este homem dominou de igual modo o
elemento irascível e não adormece com o coração tomado de
ira contra alguém; quando acalmou estes dois elementos da
alma e estimulou o terceiro, em que reside a sabedoria, e, por
fim, repousa, então, como sabes, toma contato com a verdade
melhor do que nunca, e as visões dos seus sonhos não são de
modo nenhum desregradas.
Adimanto Estou convicto disso.
Sócrates Mas alongamos em demasia este ponto. O que
queríamos constatar era que há em cada um de nós, mesmo
nos que parecem totalmente disciplinados, uma espécie de desejos
terríveis, selvagens, sem leis, e isso é posto em relevo pelos
sonhos. Vê se o que digo te parecÉ verdadeiro e se concordas
comigo.
Adimanto Sim, concordo.
Sócrates Lembra-te agora do homem democrático tal
como o representamos, formado desde a infância por um pai
parcimonioso, honrando apenas os desejos pelo lucro e desprezando
os desejos supérfluos, que não têm por objeto senão a
diversão e o luxo. Não é assim?
Adimanto E.
Sócrates Mas, tendo convivido com homens mais requintados
e cheios desses desejos que descrevíamos instantes atrás,
entrega-se a todos os excessos e adota o comportamento desses
homens, por aversão pela parcimônia do seu pai. Contudo, como
é de caráter melhor que os seus corruptores, sacudido em dois
sentidos opostos, acaba por ocupar o meio entre esses dois gêneros
de existência e, pedindo a cada um prazeres que julga
moderados, leva uma vida isenta de mesquinhez e desregramento;
assim, de oligárquico tomou-se democrático.
Adimanto Era e continua a ser essa a idéia que temos
de tal pessoa.
Sócrates Supõe agora que, ao estar avançado em anos,
tem um filho educado em hábitos iguais aos seus.
Adimanto Muito bem.
Sócrates Supõe, também, que lhe acontece a mesma coisa
que ao pai, que é arrastado para um desregramento completo,
chamada liberdade completa por que aqueles que o arrastam,
que o seu pai e os seus parêntes protegem os desejos intermédios,
e os outros, o partido contrário. Quando estes hábeis mágicos
e fabricantes de tiranos se vêem desesperados por querer
reter o jovem a qualquer custo, esforçam-se por fazer nascer
nele um amor que presida aos desejos ociosos e pródigos: qualquer
zangão alado e grande. Ou achas que o amor é algo diferente
em tais homens?
Adimanto Não, não acho.
Sócrates Quando os outros desejos, zumbindo em torno
deste zangão, numa profusão de incensos, perfumes, coroas,
vinhos e todos os prazeres que se encontram em tais
companhias, o alimentam, o fazem crescer até o último limite
e lhe espetam o ferrão do apetite, então este tirano da alma,
escoltado pela demência, é tomado por acessos de fúria e, se
deita a mão a opiniões ou desejos considerados prudentes e
que conservam ainda um certo pudor, mata-os ou expulsa-os
de si, até que tenha depurado a sua alma e a tenha enchido
de loucura estranha.
Adimanto Desaeveste com perfeição a origem do homem
tirânico.
Sócrates Então, não é por este motivo que costuma se
dizer que o amor é um tirano?
Adiznanto Parece-me que sim.
Sócrates Eo homem ébrio, meu amigo, não pensa como
o tirano?
Adimanto É provável.
Sócrates E o homem furioso, que tem o espírito perturbado,
não pretende comandar não só os homens, mas também
os deuses, imaginando-se capaz disso?
Adimanto Sim, é certo.
Sócrates Desse modo, caro Adimanto, nada falta a um
homem para ser tirânico, quando a natureza, as suas práticas
ou as duas juntas o fizeram bêbedo, apaixonado e louco.
Adimanto Realmente nada.
Sócrates Segundo vejo, aí está como se origina o homem
tirânico. Mas como vive ele?
Adimanto Responderei, como é costume, brincando contigo:
será tu quem me dirás.
Sócrates Pois vou te dizer. A meu ver, doravante não
há senão festas, orgias, cortesãs e prazeres de toda espécie naquele
que deixou o tirano Eros instalar-se na sua alma e governar
todos os seus movimentos.
Adimanto E forçoso.
Sócrates Penso que crescerão cada dia e cada noite, ao
lado dessa paixão, numerosos e terríveis desejos, cujas exigências
serão múltiplas.
Adimanto Sim, crescerão em grande número.
Sócrates Assim, os lucros que talvez venha a ter se
esgotarão.
Adimanto Como não haveria de ser?
Sócrates E depois virão os pedidos de empréstimo e o
esbanjar de seu patrimônio.
Adimanto E certo.
Sócrates E, quando mais nada houver, não é inevitável
que a multidão ardente das paixões que se aninham na alma
deste homem se ponha a soltar gritos e que ele próprio, picado
por esses ferrões, e sobretudo pelo amor, que os outros desejos
servem como a um chefe, seja tomado de transportes furiosos
e procure uma presa de que possa apoderar-se, por fraude ou
por violência?
Adimanto Sim.
Sócrates Então, será para ele uma necessidade pilhar por
toda a parte ou suportar grandes dores e grandes dificuldades.
Adimanto Sim, uma necessidade.
Sócrates E, como as novas paixões surgidas na sua alma
se sobrepuseram às antigas e a despojaram, não pretenderá, da
mesma forma, ele, que é mais novo, se sobrepor ao pai e à mãe,
e apoderar-se dos bens paternos assim que tiver esbanjado a
sua parte?
Adimanto Sem sombra de dúvida.
Sócrates E, se os pais não cederem, não tentará primeiramente
roubá-los e ludibriá-los?
Adimanto Certamente.
Sócrates Porém, se não o conseguir, na certa arrancarlhes-
á os bens pela força.
Adimanto Creio que sim.
Sócrates Agora, meu caro, se o velho pai e a velha mãe
resistirem e enfrentarem a luta, terá ele cuidado e evitará cometer
qualquer ação tirânica?
Adimanto Não me sinto tranqüilo quanto aos pais desse
homem.
Sócrates Mas, por Zeus, Adimanto! Por uma cortesã,
uma conquista recente e que não é para ele senão um capricho,
esquecerá dessa amiga antiga e necessária que é a sua mãe?
Ou por um jovem na flor da vida que conheceu ontem, esquecerá
do pai, cuja juventude passou, mas que é o mais necessário e
o mais antigo dos seus amigos? Esquecerá deles ao ponto de
feri-los e submetê-los a essas criaturas, se as puser para dentro
de casa?
Adimanto Sim, por Zeus!
Sócrates Parece uma enorme felicidade ter dado à luz
um filho de caráter tirânico!
Adimanto Sim, enorme!
Sócrates Pois bem! Quando tiver esbanjado os bens do
pai e da mãe e as paixões se tiverem juntado como uni enxame
na sua alma, não se voltará para a parede de uma casa ou para
a túnica de um viajante noturno para neles pôr as mãos, indo
depois saquear os templos? E, em meio a estas conjunturas, as
antigas opiniões, consideradas justas, que tinha desde a infância
sobre a honestidade e a desonestidade, cederão lugar às opiniões
adquiridas recentemente, que servem de escolta ao amor, e
triunfarão com ele, e que se manifestavam somente em sonho,
durante o sono, porque então estava sujeito às leis e ao seu pai,
e a democracia reinava na sua alma. Mas agora, escravizado
pelo amor, será no estado de vigilia o homem em que às vezes
se tornava em sonho; não se absterá de cometer nenhum crime,
de ingerir nenhum alimento proibido, de praticar nenhuma perversidade.
Eros, que vive nele como um tirano numa desordem
e num desregramento completos, porque é o único senhor, incitará
o infeliz cuja alma ocupa, tiranicamente, a ousar tudo
para alimentá-lo, a ele e ao tumulto dos desejos que o rodeiam:
os que vierem do exterior através das más companhias e os
que, nascidos no interior, de disposições semelhantes às suas,
romperam os seus laços e se libertaram. Não é acaso esta a
vida que leva um homem assim?
Adimanto É.
Sócrates Ora, se num Estado os homens deste gênero
são em pequeno número e o resto do povo é sensato, eles partem
para ir servir de soldados a um tirano qualquer ou se alistarem
como mercenários, se houver guerra em qualquer parte. Mas,
se a paz e a tranqüilidade reinam por todo lado, ficam na cidade
e cometem aí um grande número de pequenos delitos.
Adimanto E que delitos seriam esses?
Sócrates Por exemplo, furtam, abrem fendas nas paredes,
cortam as bolsas, roubam os transeuntes, capturam e traficam
escravos e por vezes, quando sabem falar, são delatores,
falsas testemunhas e prevaricadores.
Adimanto Esses só serão pequenos delitos se esses homens
forem em pequeno número!
Sócrates Sim, pois que as pequenas coisas só são pequerias
em comparação com as grandes, e todos estes delitos,
no que tange à sua influência sobre a miséria e a infelicidade
da cidade, nem sequer se aproximam, como se diz, da tirania.
Com efeito, quando tais homens e os que os seguem são numerosos
num Estado e tomam consciência do seu número, são
eles que, ajudados pela estupidez do povo, engendram o tirano
na pessoa daquele que tem na sua alma o tirano maior e mais
completo.
Adimanto E natural, porque será o mais tirânico.
Sócrates E então pode ocorrer que a cidade se submeta
de boa vontade; mas, se resistir, assim como outrora maltratava
o pai e a mãe, ele castigará a sua pátria, se tiver poder para
isso, e introduzirá nela novos companheiros e, entregando-lhes
aquela que outrora lhe foi querida, a sua mdtria, como dizem
os cretenses, irá reduzi-la à escravidão. E a esse ponto que levará
a paixão do tirano.
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates Dize: na vida particular, e antes de chegarem
ao poder, esses homens não se comportam da mesma maneira?
Em primeiro lugar, vivem com pessoas que são para eles aduladores
prontos a obedecer-lhes em tudo ou, se têm necessidade
de alguém, cometem baixezas, atrevem-se a desempenhar todas
as funções para lhe demonstrarem a sua dedicação, com o inconveniente
de se recusarem a conhecê-lo, uma vez alcançados
os seus fins.
Adimanto E isso..
Sócrates Não serão jamais amigos de ninguém, e sim
déspotas ou escravos quanto à liberdade e à amizade autênticas,
pois um caráter tirânico não aninha em seu íntimo tais
sentimentos.
Adimanto Indubitavelmente.
Sócrates Assim, é com razão que lhes chamamos homens
sem fé.
Adimanto Como não?
Sócrates E injustos até o último grau, se falamos acertadamente,
a propósito da natureza da justiça.
Adimanto Sem dúvida que assim e.
Sócrates Resumamos, porém, o que é o perfeito celerado:
aquele que, no estado de vigília, é igual ao homem em estado
de sonho que descrevemos.
Adimanto Perfeitamente.
Sócrates Vê, torna-se um celerado aquele que, dotado
da natureza mais tirânica, consegue governar sozmho, e é mais
capaz disso quanto viveu mais tempo no exercício da tirania.
Glauco E inevitável que seja assim.
Sócrates No entanto, aquele que se mostrou como o
pior deverá se revelar também o mais infeliz. E aquele que tiver
exercido a tirania por mais tempo e de forma mais absoluta
terá sido extremamente infeliz e durante mais tempo, na verdade,
apesar de a multidão ter a esse respeito opiniões diversas.
Glauco Não poderia ser de outro modo.
Sócrates Ora, não é verdade que o homem tirânico é
feito à semelhança da cidade tirânica, como o homem democrático
à da democracia, e assim para os outros?
Glauco É verdade.
Sócrates E o que uma cidade é para outra cidade em
virtude e ~licidade, não o é um homem para outro homem?
Glauco Como não?
Sócrates Qual é, então, quanto à virtude, a relação entre
o Estado tirânico e o Estado monárquico, tal como definimos?
Glauco São exatamente contrárias. Uma é a melhor, a
outra é a pior.
Sócrates Não te perguntarei qual das duas é a melhor
ou a pior, pois isso é evidente. Mas, no que se refere à felicidade
e à infelicidade, pensas o mesmo ou de modo diferente? E aqui
não nos deixemos deslumbrar pela vista do tirano e dos poucos
eleitos que o rodeiam: devemos penetrar na cidade para considerá-
la no seu conjunto, insinuarmonos por toda a parte e
vermos tudo, antes de formarmos uma opinião.
Glauco O que pedes é justo e é evidente para toda
gente que não há cidade mais infeliz do que a tirânica, nem
mais feliz do que a monárquica.
Sócrates Incorrerei em erro se pedir os mesmos cuidados
para analisar os indivíduos e não conceder o direito de julgá-los
senão àquele que pode, pelo pensamento, penetrar no caráter
de um homem e vê-lo com clareza, que não se deixa enganar
pelas aparências, como a pompa que o tirano ostenta para os
profanos, mas sabe ver o fundo das coisas? Se eu achasse que
todos devemos ouvir aquele que seria capaz de julgar, que,
além disso, tivesse convivido sob o mesmo teto que o tirano,
sendo assim testemunha dos atos da sua vida doméstica e das
relações que mantém com os seus familiares, pois entre eles,
mais que tudo, se mostra como realmente é, e também da sua
conduta nos perigos públicos; se eu obrigasse aquele que viu
tudo isto a pronunciar-se sobre a felicidade ou a infelicidade
do tirano em comparação aos outros homens...
Glauco Também aqui pedirias apenas o justo.
Sócrates Achas que devemos nos considerar do número
dos que são capazes de julgar e que se encontraram
com tiranos, a fim de termos alguém que possa responder
às nossas indagações?
Glauco Com certeza.
Sócrates Segue-me, então, neste exame. Lembra-te da
semelhança do Estado e do indivíduo e, considerando-os ponto
por ponto, cada um por sua vez, diz-me o que acontece a um
e a outm.
Glauco O que lhes acontece?
Sócrates Começando pela cidade que é governada por
um tirano. Poderás dizer que é livre ou escrava?
Glauco E escrava, tanto quanto se pode ser.
Sócrates E, no entanto, vês nela senhores e homens livres.
Glauco Vejo, mas em pequeno número, pois que quase
todos os cidadãos, inclusive os mais honrados, são reduzidos
a uma indigna e miserável servidão.
Sócrates Se o indivíduo se assemelha à cidade, não é
inevitável que se encontre nele o mesmo estado de coisas, que
a sua alma esteja cheia de servidão e baixeza, que as partes
mais nobres dessa alma sejam reduzidas à escravidão e que
uma minoria, formada pela parte pior e mais furiosa, a domine?
Glauco E.
Sócrates Nesse caso, dirás de tal alma que é escrava ou
que é livre?
Glauco Direi, é óbvio, que é escrava.
Sócrates Não é certo que a cidade escrava e dominada
por um tirano de modo nenhum faz o que quer?
Glauco Por certo que nao.
Sócrates Então, referindo-me à alma em sua totalidade,
também a alma tiranizada não fará o que quer. Mas sim ficará
cheia de perturbação e remorsos, incessantemente, e será arrastada
de forma violenta por um desejo furioso.
Glauco Como não haveria de ser?
Sócrates Mas a cidade governada por um tirano é necessariamente
rica ou pobre?
Glauco Pobre.
Sócrates Portanto, é necessário também que a alma tirânica
seja sempre pobre e insatisfeita.
Glauco Sim.
Sócrates Mas como? Não é forçoso também que uma
tal cidade e um tal homem estejam cheios de temor?
Glauco Indubitavelmente.
Sócrates Achas possível encontrar em qualquer outro
Estado mais lamentações, gemidos, queixas e dores?
Glauco De modo nenhum.
Sócrates E em qualquer outro indivíduo mais do que
neste homem tirânico, que o amor e os outros desejos tornam
enlouquecido?
Glauco Não o creio.
Sócrates Ora, foi após julgares sobre todos estes males
e outros semelhantes que concluíste que esta cidade era a mais
infeliz de todas.
Glauco Não tive eu razão?
Sócrates Tiveste. Mas, no que se refere ao tirano, o que
dizes ao veres nele os mesmos males?
Glauco Que é de longe o mais infeliz de todos os homens.
Sócrates Nesse ponto já não tens razão.
Glauco Como assim?
Sócrates No meu entender, não é ainda tão infeliz quanto
é possível ser.
Glauco Quem o será então?
Sócrates Talvez este te pareça mais infeliz.
Glauco Qual?
Sócrates O que, nascido tirano, não passa a sua vida
numa condição privada, mas é bastante desafortunado para que
um acaso funesto faça dele tirano de uma cidade.
Glauco Parece-me, conforme com o que dissemos antes,
que tens razão.
Sócrates Sim, mas não podemos nos satisfazer com conjecturas
em semelhante matéria. Temos de examinar, à luz da
razão, os dois indivíduos que nos ocupam. Com efeito, o inquérito
incide sobre o mais importante dos temas: a felicidade
e a infelicidade da vida.
Glauco E certo.
Sócrates Vê então se tenho razão. No meu entender,
é preciso ter uma idéia da situação do tirano a partir do que
vou dizer.
Glauco O que é?
Sócrates A partir da situação de um desses ricos particulares
que, em certas cidades, possuem muitos escravos. Eles
têm este ponto de semelhança com os tiranos que comandam
muita gente; a diferença está só no número.
Glauco É verdade.
Sócrates Sabes bem que esses particulares vivem em
segurança e não temem os seus servidores.
Glauco O que teriam a temer?
Sócrates Nada. Mas vês a razão?
Glauco Com efeito, toda a cidade presta assistência a
cada um desses particulares.
Sócrates Bem pensado. Mas se um deus, afastando da
cidade um desses homens que têm cinqüenta escravos, o transportasse,
com a sua mulher, os filhos, os seus bens e servidores,
para um deserto, onde não pudesse esperar auxflio de nenhum
homem livre, não achas que viveria numa extrema e contínua
apreensão de morrer às mãos dos escravos, ele e toda a sua
família?
Glauco Com certeza, a sua apreensão seria extrema.
Sócrates Não seria aí forçado a lisonjear alguns deles,
a aliciá-los com promessas, a libertá-los sem necessidade, enfim,
a tomar-se adulador dos seus escravos?
Glauco Seria obrigado a passar por isso se não quisesse
perecer.
Sócrates O que seria dele então se o deus fizesse morar
à volta da sua casa vizinhos em grande número, decididos a
não suportar que um homem pretenda mandar em outro como
senhor e a punir com o último suplício os que fossem surpreendidos
em semelhante caso?
Glauco Creio que a sua situação se agravaria ainda mais,
se tal sucedesse.
Sócrates Então, com esse caráter que descrevemos, cheio
de temores e paixões de todo tipo, não é numa prisão semelhante
que o tirano está acorrentado? Embora a sua alma seja ávida,
é o único na cidade que não pode viajar, nem ir ver o que
excita a curiosidade dos homens livres. Vive a maior parte do
tempo enclausurado em casa como uma mulher, invejando os
cidadãos que viajam e vêem o que é belo.
Glauco É verdade.
Sócrates Desse modo, para além de tais dissabores, o
homem que governa mal a si mesmo, aquele que há instantes
consideravas o mais infeliz de todos, o tirânico, quando não
passa a vida numa condição privada, mas se vê obrigado por
um capricho da sorte a exercer uma tirania e, impotente para
dominar a si mesmo, se dedica a mandar nos outros, é semelhante
a um doente que não tem o domínio do corpo e, em vez
de levar uma existência retirada, será forçado a passar a vida
a bater-se com os outros e a lutar nos concursos públicos.
Glauco Tu comparas com uma exatidão impressionante,
Sócrates.
Sócrates Não é este, meu caro Glauco, o cúmulo da
infelicidade? E aquele que exerce uma tirania não leva uma
vida mais penosa ainda que aquele que, no teu entender, levava
a vida mais penosa?
Glauco Sim, com certeza.
Sócrates Assim, na verdade, e apesar do que pensam
certos indivíduos, o verdadeiro tirano é um verdadeiro escravo,
condenado a uma baixeza e a uma servidão extremas, e o adulador
dos homens mais perversos, pois, não podendo, de maneira
nenhuma, satisfazer os seus desejos, parece, àquele que
sabe ver o fundo da sua alma, desprovido de uma quantidade
de coisas, e na verdade pobre. Ele passa a vida num terror
contínuo, sujeito a convulsões e a sofrimentos, se é verdade
que a sua condição é semelhante à da cidade que governa. Mas
ela assemelha-se a ele, não é?
Glauco Assemelha-se, e muito.
Sócrates Porém, além destes sofrimentos, não se deve
atribuir também a este homem aqueles de que falamos anteriormente,
visto que é para ele uma necessidade, devido ao
exercício do poder, tomar-se, muito mais que antes, invejoso,
pérfido, injusto, hostil, hospedeiro e sustentáculo de todos os
vícios: tudo aquilo por que é o mais infeliz dos homens e toma
semelhantes a ele os que dele se aproximam?
Glauco Nenhum homem de bom senso dirá outra coisa.
Sócrates Ora, chegou o momento; como o árbitro da
prova final pronuncia a sua sentença, declara tu também qual
e, na tua opinião, o primeiro no que concerne à felicidade, qual
o segundo, e classifica os cinco por ordem: o monárquico, o
timocrático, o oligárquico, o democrático, o tirânico.
Glauco Esse julgamento é fácil. E pela sua ordem de
entrada em cena, como os coros, que os classifico, em relação
à virtude e ao vício, à felicidade e à infelicidade.
Sócrates Agora, contrataremos um arauto ou proclamarei
eu próprio que o filho de Aríston considerou que o homem
melhor e o mais justo é também o mais feliz e que é o mais
monárquico e que se governa a si mesmo como rei, ao passo
que o pior e o mais injusto é também o mais infeliz e sucede
que é o homem que, sendo o mais tirânico, exerce sobre si mesmo
e sobre a cidade a tirania mais absoluta?
Glauco Proclama tu mesmo.
Sócrates Devo acrescentar que não interessa de modo
nenhum que passem ou não passem por tais aos olhos dos
homens e dos deuses?
Glauco Acrescenta.
Sócrates Pois bem. Eis uma primeira demonstração. Vê
agora se esta segunda te parece ter algum valor.
Glauco Qual?
Sócrates Se, assim como a cidade está dividida em três
corpos, a alma de cada indivíduo está dividida em três elementos,
a nossa tese admite, ao que me parece, outra demonstração.
Glauco Qual é?
Sócrates Visto que há três elementos, parece-me que
há também três espécies de prazeres próprios de cada um deles
e igualmente três ordens de desejos e de mandamentos.
Glauco Como explicas isso?
Sócrates Digamos que o primeiro elemento é aquele
pelo qual o homem aprende, e o segundo, aquele pelo qual se
irrita. Quanto ao terceiro, como tem muitas formas diferentes,
não pudemos encontrar para ele uma denominação única e apropriada
e designamo-lo pelo que tem de mais importante e predominante;
chamamos-lhe concupiscível, por causa da violência
dos desejos referentes ao comer, ao beber, ao amor e aos outros
prazeres semelhantes. Também o consideramos amigo do dinheiro,
porque é sobretudo por meio deste que se satisfazem
estas espécies de desejos.
Glauco E tivemos razao.
Sócrates Pois bem. Se afirmássemos que o seu prazer
e o seu amor estão no ganho, não estaríamos em condições,
tanto quanto possível, de nos apoiarmos na discussão sobre
uma noção única que o resume, de modo que, sempre que falássemos
deste elemento da alma, víssemos com clareza do que
é? Assim, ao chamá-lo de amigo do ganho e do lucro, lhe daríamos
o nome mais adequado, não achas?
Glauco Acho.
Sócrates Mas não dissemos que o elemento irascível
não pára de aspirar totalmente ao domínio, à vitória e à fama?
Glauco Dissemos.
Sócrates Se, portanto, lhe chamássemos amigo da vitória
e da honraria, a designação seria apropriada?
Glauco Totalmente apropriada.
Sócrates Quanto ao elemento pelo qual conhecemos,
não fica daro aos olhos de todos que tende sem cessar e inteiramente
a conhecer a verdade tal como é e que é ele o que
menos se preocupa com as riquezas e a glória?
Glauco Está certo.
Sócrates Chamando-lhe amigo do saber e da sabedoria
daremos a ele, então, o nome que lhe é adequado.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E também não é verdade que nas almas existe
este elemento que governa ou um dos outros dois, conforme
o caso?
Glauco Sim, é verdade.
Sócrates Por isso é que dizíamos que há três classes
principais de homens: o filósofo, o ambicioso e o interesseiro.
Glauco Com certeza.
Sócrates E três espécies de prazeres análogos a cada
um desses caracteres.
Glauco Efetivamente.
Sócrates Agora, sabes bem que, se perguntasses alternadamente
a cada um desses três homens qual é a vida mais
agradável, cada um elogiaria sobretudo a sua. O homem interesseiro
diria que, em comparação com o ganho, o prazer das
honras e da ciência não é nada, a não ser que com ele seja
possível fazer dinheiro.
Glauco É bem verdade.
Sócrates E o ambicioso? Deve considerar vulgar o prazer
de amealhar e simples fumo e frivolidade o de conhecer, quando
não traz honra, não lhe parece?
Glauco Assim e.
Sócrates Quanto ao filósofo, que caso faz, segundo
nós, dos demais prazeres, em comparação com o conhecimento
da verdade tal como é e o prazer semelhante que goza
sempre ao aprender? Não pensa que são muito diferentes
dele e, se os considera realmente necessários, não é em virtude
da necessidade que tem de os usar, visto que prescindiria
deles, se pudesse?
Glauco Estamos certos disso.
Sócrates Visto que discutimos os prazeres e a própria
vida de cada um desses três caracteres de homens, não para
saber qual é a mais honesta ou a mais desonesta, a pior ou a
melhor, mas a mais agradável e a mais isenta de dificuldade,
como reconhecer qual deles é que fala mais verdade?
Glauco Não sei responder.
Sócrates Examina o caso, amigo Glauco, do seguinte
modo: quais são as qualidades requeridas para julgar bem? Não
são a experiência, a sabedoria e o raciocínio? Existem critérios
melhores do que estes?
Glauco Não seria possível.
Sócrates Então repara. Qual destes três homens tem
mais experiência de todos os prazeres que acabamos de referir?
Achas que o homem interesseiro, se se dedicasse a conhecer a
verdade em si mesma, teria mais experiência do prazer da ciência
do que o filósofo teria do prazer do ganho?
Glauco A diferença é grande. AfinaL é uma necessidade
para o filósofo gozar desde a infância os outros prazeres, ao
passo que para o homem interesseiro, se ele se dedica a conhecer
a natureza das essências, não é uma necessidade gozar todo o
regalo deste prazer e adquirir a sua experiência. Além do mais,
seria difícil para ele levar a coisa a sério.
Sócrates Assim, o filósofo está bem acima do homem
interesseiro, pela experiência que tem destas duas espécies de
prazeres.
Glauco Sim, de longe.
Sócrates E que dizer do ambicioso? O filósofo tem menos
experiência do prazer ligado às honras do que o ambicioso do
prazer que acompanha a sabedoria?
Glauco A honra favorece cada um deles quando atingem
o objetivo que se propõem, porque o rico, o valente e o sábio
são honrados pela multidão, de modo que todos conhecem, por
experiência, a natureza do prazer ligado às honrarias. Mas ninguém,
a não ser o filósofo, pode gozar o prazer que a contemplação
do ser proporciona.
Sócrates Em conseqüência disso, no que diz respeito à
experiência, dos três, é ele quem julga melhor.
Glauco De longe.
Sócrates E é o único em quem a experiência é acompanhada
da sabedoria.
Glauco Com certeza.
Sócrates Realmente, o instrumento que é necessário para
julgar não pertence ao homem interesseiro, nem ao ambicioso,
mas ao filósofo.
Glauco Que instrumento?
Sócrates Dissemos que era preciso servir-se do raciocínio
para julgar, não dissemos?
Glauco Sim.
Sócrates O raciocínio é o principal instrumento do fllósofo,
não é?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Porém, se o fausto e o ganho fossem a melhor
regra para julgar as coisas, os louvores e as censuras do homem
interesseiro seriam, forçosamente, os mais conformes à verdade.
Glauco Forçosamente.
Sócrates E se fossem as honras, a vitória e a coragem,
seria preciso apelar para as decisões do homem ambicioso e
amigo da vitória.
Glauco É evidente.
Sócrates E, visto que é a experiência, a sabedoria e o
raciocimo...
Glauco É imprescindível que os louvores do fflósofo e
do amigo da razão sejam os mais verdadeiros.
Sócrates Assim, dos três prazeres em questão, o desse
elemento da alma pelo qual conhecemos é o mais agradáveL
o homem em quem esse elemento comanda tem a vida -
ditosa.
Glauco Não poderia ser de outro modo. O louvor do
sábio é decisivo, e ele louva a sua própria vida.
Sócrates O juiz porá, então, que vida e que prazer em
segundo lugar?
Glauco Sem dúvida, será o prazer do guerreiro e do
ambicioso, porque se aproxima mais do seu do que daquele do
homem interesseiro.
Sócrates O último lugar caberá, portanto, ao prazer do
homem interesseiro, segundo parece.
Glauco É isso.
Sócrates Aí estão, portanto, duas demonstrações que
se sucedem, duas vitórias que o justo obtém sobre o injusto.
Quanto à terceira, disputada à maneira olímpica em honra
de Zeus salvador e olímpicó, considera que, com exceção ao
do sábio, o prazer dos outros não é nem bem real nem puro;
não é nada além de uma espécie de simples esboço do prazer,
como julgo tê-lo ouvido dizer a um sábio. Essa poderia ser,
realmente, para o homem injusto a mais grave e a mais decisiva
das derrotas.
Glauco De longe. Mas como tu podes prová-lo?
Sócrates Direi a maneira, contanto que me respondas
enquanto procuro contigo.
Glauco Pergunta, então.
Sócrates Diz-me: não afirmamos que a dor éo contrário
do prazer?
Glauco Afirmamos.
Sócrates E não há um estado em que não se sente nem
alegria nem tristeza?
Glauco Há.
Sócrates Esse estado está igualmente afastado desses
dois sentimentos, e consiste num repouso em que a alma se
encontra em relação a um e outro. Não é assim?
Glauco E.
Sócrates Ora, tu te recordas do que dizem os doentes
quando padecem?
Glauco O que é?
Sócrates Que não há nada mais agradável do que ter
saúde, mas que, antes de estarem doentes, não tinham se dado
conta da sua importância.
Glauco Lembro-me disso.
Sócrates E não ouves dizer aos que sentem uma dor
violenta que não há nada melhor do que deixar de sofrer?
Glauco Ouço-o sempre.
Sócrates E, em muitas outras circunstâncias semelhantes,
não notaste que os homens que sofrem exaltam a cessação
da dor e a sensação do repouso como a coisa mais agradável,
e não a fruição?
Glauco Isso se dá talvez porque então o repouso se
torna ameno e agradável.
Sócrates E, quando um homem deixa de experimentar
um gozo, o repouso passa a ser penoso, em relação ao prazer.
Glauco Talvez.
Sócrates Assim, este estado de repouso, de que falávamos
liA instantes que era intermédio entre os outros dois, será
às vezes prazer, ~s vezes dor?
Glauco E o que parece.
Sócrates E será possível que o que não é nem um nem
outro se tome um e outro?
Glauco Não creio.
Sócrates E o prazer e a dor, quando se produzem na
alma, são uma espécie de movimento, não é verdade?
Glauco Sim, é.
Sócrates Então, acabamos de reconhecer que o estado
em que não se sente nem prazer nem dor é um estado de repouso,
que se situa entre estas duas sensações.
Glauco Sim, ao que parece.
Sócrates Como se pode então crer racionalmente que a
ausência de dor seja um prazer, e a ausência de prazer, uma dor?
Glauco Não se pode, de maneira alguma.
Sócrates Portanto, este estado de repouso parece ser,
por vezes, um prazer por oposição à dor; por vezes, uma dor
por oposição ao prazer. E não há nada de saudável nestas visões
quanto à realidade do prazer, pois que se trata de uma espécie
de prestígio.
Glauco Sim, é isso o que o raciocínio demonstra.
Sócrates Considera agora os prazeres que não se seguem
a dores, para não seres induzido a acreditar, baseado nestes
exemplos, que, por natureza, o prazer não é senão a ausência
da dor, e a dor, a ausência do prazer.
Glauco A que caso e a que prazeres te queres referir?
Sócrates Existem vários, mas considera, sobretudo,
os prazeres do olfato. Estes produzem-se de súbito, com uma
intensidade extraordinária, sem terem sido precedidos de nenhuma
aflição, e, quando cessam, não deixam depois deles
nenhuma dor.
Glauco Isso é verdade.
Sócrates Assim, não devemos nos deixar enganar, imaginando
que o prazer puro é a ausência da dor, ou a dor, a
ausência do prazer.
Glauco Não.
Sócrates Contudo, os pretensos prazeres que passam à
alma através do corpo, e que são talvez os mais numerosos e
maiores, pertencem a esta classe: são libertadores da dor.
Glauco Com efeito.
Sócrates Não sucede o mesmo com os prazeres e as
dores antecipados, que a expectativa causa?
Glauco Assim e.
Sócrates Sabes, Glauco, o que são esses prazeres e com
o que mais se parecem?
Glauco Com o quê?
Sócrates Pensas que há na natureza um alto, um baixo
e um meio?
Glauco Com certeza!
Sócrates Ora, na tua opinião, um homem transportado
de baixo para o meio poderia evitar pensar que foi transportado
para o alto? E, quando se encontrasse no meio e olhasse para
o sítio que deixou, julgar-se-ia noutra parte que não fosse o
alto, se não tivesse visto o alto autêntico?
Glauco Por Zeus! Pelo que creio, não seria a ele possível
fazer outra suposição.
Sócrates Mas se, em seguida, fosse transportado em
sentido inverso, julgaria estar voltando para baixo, no que não
se enganana.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E ele imaginaria tudo isso porque não conhece
por experiência o alto, o meio e o baixo verdadeiros, não é?
Glauco Evidentemente.
Sócrates Tu não deves então te espantar que os homens
que não têm a experiência da verdade tenham uma opinião
falsa de muitos objetos e que, no que concerne ao prazer, à
dor e ao seu intermédio, se achem dispostos de tal maneira
que, quando passam à dor, a sensação que experimentam é
exata, porque sofrem dÉ verdade, ao passo que, quando vão
da dor ao estado intermédio e acreditam firmemente que atingiram
a plenitude do prazer, enganam-se, porque, à semelhança
das pessoas que oporiam o cinzento ao preto, por não
conhecerem o branco, opõem a ausência de dor à dor, por
não conhecerem o prazer.
Glauco Por Zeus que o contrário é que me espantaria!
Sócrates Pensa agora da seguinte maneira: a fome, a
sede e as outras necessidades semelhantes não são espécies de
vazios no estado do corpo?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E a ignorância e o contra-senso não são um
vazio no estado da alma?
Glauco São.
Sócrates Mas é possível preencher estes vazios tomando
alimento ou adquirindo inteligência?
Glauco E claro.
Sócrates Assim, a plenitude mais verdadeira provém
do que tem mais ou do que tem menos realidade?
Glauco É evidente que do que tem mais realidade.
Sócrates Então, a teu ver, destes dois gêneros de coisas,
qual participa mais da existência pura: o que inclui, por exemplo,
o pão, a bebida, a came e a alimentação em geral ou o da opinião
verdadeira, da ciência, da inteligência e, numa palavra, de todas
as virtudes? Pensa do seguinte modo: o que se liga ao imutável,
ao imortal e à verdade, que é de natureza semelhante e se produz
num indivíduo semelhante, parece ter mais realidade do que
o que se liga ao mutável e ao mortal, que é ele próprio de
natureza semelhante e se produz num indivíduo semelhante?
Glauco O que se liga ao imutável tem muito mais realidade,
sem sombra de dúvida.
Sócrates Mas o Ser do imutável participa mais da essência
do que da ciência?
Glauco Não.
Sócrates E do que da verdade?
Glauco lambem nao.
Sócrates Bem, se participa menos da verdade, não participa
menos da essência?
Glauco Com certeza.
Sócrates Portanto, as coisas que servem para a conservaçao
do corpo costumam participar menos da verdade e da
essência do que as que servem para a conservação da alma.
Glauco Assim é.
Sócrates E comparado com a alma, o próprio corpo não
está também neste caso?
Glauco Está.
Sócrates Assim, o que se enche de coisas mais reais, e
que é, ele mesmo, mais real, está mais realmente cheio do que
aquele que o está de coisas menos reais e que é, ele mesmo,
menos real?
Glauco Com efeito!
Sócrates Desse modo, se é agradável encher-se de coisas
conformes à sua natureza, o que se enche mais realmente e de
coisas mais reais gozará mais realmente e mais verdadeiramente
do verdadeiro prazer, e o que recebe coisas menos reais será
cheio de modo menos verdadeiro e menos sólido e gozará um
prazer menos certo e menos verdadeiro.
Glauco Não há como ser diferente.
Sócrates Assim, os indivíduos que não têm a experiência
da sabedoria e da virtude, que estão sempre nas festas e nos
prazeres afins, são, ao que me parece, transportados para a região
baixa, depois de novo para a média, e erram assim durante
toda a vida. Não sobem mais alto; nunca viram as verdadeiras
alturas, nunca para lá foram transportados, nunca foram realmente
cheios do Ser e não experimentaram prazer sólido e puro.
A semelhança dos animais, de olhos sempre voltados para baixo,
de cabeça inclinada para a terra e para a mesa, pastam na pastagem
gorda e acasalam-se; e, para satisfazerem ainda mais seus
apetites, escoicinham, batem-se com seus chifres e matam-se
uns aos outros no furor do seu apetite insaciável, porque não
encheram de coisas reais a parte real e estanque de si mesmos.
Glauco Tu pareces um autêntico oráculo, Sócrates, ao
descreveres a vida da maior parte dos homens.
Sócrates Eles não têm a necessidade de viver no meio
de prazeres mesclados de dores, sombras e esboços do verdadeiro
prazer, que só tomam cor quando vistos de perto, mas
que então parecem tão vivos que fazem nascer amores desenfreados
nos insensatos, que se batem para as possuir, como se
bateram em Tróia pela sombra de Helena, no dizer de Estesícoro,
por não saberem a verdade.
Glauco E necessário que assim seja.
Sócrates Ora bem! Toma-se então inevitável que a mesma
coisa aconteça a propósito do elemento irascível, quando
um homem faz até o fim o que este quer, entregando-se à ânsia
por ambição, à violência por desejo de vencer, à cólera por temperamento
truculento e perseguindo a satisfação da honra, da
vitória e da cólera, sem discernimento nem razão.
Glauco De fato, a mesma coisa deve acontecer.
Sócrates Mas então não ousaremos afirmar que os desejos
relativos ao interesse e à ambição, quando seguem a ciência
e a razão e procuram com elas os prazeres que a sabedoria lhes
indica, alcançam os prazeres mais verdadeiros que lhes é possível
experimentar e os prazeres que lhes são próprios, porque
a verdade os dirige, se é verdade que o que há de melhor para
cada coisa é também o que lhe é mais próprio?
Glauco Mas é exatamente assim.
Sócrates Então, quando toda a alma segue docilmente
o elemento filosófico e não se produz nela nenhuma revolta,
cada uma das suas partes mantém-se nos limites das suas funções,
pratica a justiça e, também, recolhe os prazeres que lhe
são próprios, os melhores e os mais verdadeiros que lhe é possível
gozar.
Glauco E certo.
Sócrates No entanto, quando se trata de um dos dois
outros elementos que domina, como resultado se tem que este
elemento não encontra o prazer que lhe é próprio. Além disso,
obriga os outros dois a procurarem um prazer estranho e falso.
Glauco E assim mesmo.
Sócrates Mas não é o que se afasta mais da filosofia e~
da razão, mais que tudo, o que provocará tais efeitos?
Estesícoro: poeta lírico grego, autor das palinódlas a Helena. Aí se diz
que ela súo foi a
TreMa. mas sim o seu fantasma.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates O que, então, mais se distancia da razão não
é justamente o que mais se afasta da lei e da ordem?
Glauco Parece-me evidente.
Sócrates Mas já vimos que os desejos amorosos e tirânicos
são os que mais se afastam.
Glauco Sim, com efeito.
Sócrates Com exceção dos desejos monárquicos e
moderados.
Glauco Certo.
Sócrates Em conseqüência, o mais afastado do prazer
autêntico e próprio do homem será, penso, o tirano; o menos
afastado, o rei.
Glauco Assim creio.
Sócrates A vida menos agradável será então a do tirano,
e a mais agradável, a do rei.
Glauco E incontestável.
Sócrates Mas és capaz de dizer quanto a vida do tirano
é menos agradável do que a do rei?
Glauco Saberei, se mo disseres.
Sócrates Há, ao que parece, três prazeres, sendo um legítimo
e dois ilegítimos. Pois bem. O tirano, evitando a razão e
a lei, transpõe o limite dos prazeres ilegítimos e vive no meio de
uma escolta de prazeres servis; dizer em que medida é inferior
ao outro não é nada fácil, exceto talvez da maneira seguinte.
Glauco Como?
Sócrates A partir do homem oligárquico, o tirano está
no terceiro grau, porque entre eles está o homem demoaático.
Glauco Sim.
Sócrates Não coabita ele com uma sombra de prazer,
que será a terceira a partir da do oligarca, se o que dissemos
atrás é verdade?
Glauco Assim é.
Sócrates Mas o oligarca é de igual modo o terceiro a
partir do rei, se contarmos como um só o homem real e o homem
aristocrático.
Glauco O terceiro, sem dúvida.
Sócrates Podemos conduir, assim, que é de três vezes
três graus que o tirano está afastado do verdadeiro prazer.
Glauco Parece ser assim.
Sócrates Portanto, a sombra de prazer do tirano, se a
considerarmos de acordo com o seu comprimento, pode ser
expressa por um número da segunda potência.
Glauco Sim.
Sócrates E elevando este número ao quadrado. depois
ao cubo, vê-se com clareza a distância que o separa do rei.
Glauco Sim, isso é claro para um matemático.
Sócrates E se, de igual forma, quisermos exprimir a
distância que separa o rei do tirano, quanto à realidade do prazer,
descobriremos, uma vez feita a multiplicação, que o rei é
setecentas e vinte e nove vezes mais feliz do que o tirano e que
este é mais infeliz em igual proporção.
Glauco Que cálculo incrível fazes da diferença desses
dois homens, o justo e o injusto, no que se refere ao prazer e
à dor!
Sócrates E, em verdade, o número é exato e aplica-se
à vida deles, se tivermos em conta os dias, as noites, os meses
e os anos.
Glauco Levamos isso em conta.
Sócrates Pois bem, se o homem bom e justo se sobrepõe
tanto em prazer ao homem mau e injusto, não se lhe sobreporá
infinitamente mais em decência, em beleza e em virtude?
Glauco Sim, por Zeus!
Sócrates Agora, tendo chegado a este ponto da discussão,
retomemos o que foi dito no princípio e que nos trouxe
até aqui. Dizíamos, creio, que a injustiça era vantajosa para o
perfeito celerado, contanto que ele passasse por justo. Não foi
o que afirmamos?
Glauco Foi, com certeza.
Sócrates Travemos então diálogo com o homem que
falou assim, visto que estamos de acordo quanto aos efeitos de
uma conduta injusta e de uma conduta justa.
Glauco Como?
Sócrates Formemos em pensamento uma imagem da~
alma, para que o autor desta afirmação conheça o seu alcance.
Glauco Que imagem é essa?
Sócrates lima que se assemelhe a essas criaturas antigaS~
de que fala a fábula: Quimera, Cila, Cérbero e muitos outros,
que, segundo contam, reuniam formas múltiplas num único corpo.
Glauco E o que dizem.
Sócrates Modela uma espécie de animal multiforme,
contendo várias cabeças, dispostas em círculo, de animais dóceis
e de animais ferozes, e capaz de mudar e tirar de si mesmo
tudo isso.
Glauco Urna tal obra exige um escultor hábil. Mas, como
o pensamento é mais fácil de modelar do que a cera ou qualquer
outra materia semelhante, fado-e,.
Sócrates Modela agora duas outras formas: uma de um
leão, outra de um homem, .de modo que a primeira seja, de
longe, a maior das três e que a segunda ocupe, em grandeza,
o segundo lugar.
Glauco Isso é mais fácil. Já está pronto.
Sócrates Junta essas três formas numa só, de modo que,
umas com as outras, componham um único todo.
Glauco Estão juntas.
Sócrates Por fim, dai a elas a forma externa de um
único ser, a forma humana, de maneira que, aos olhos de alguém
que não possa ver o interior e só veja o invólucro, o conjunto
pareça um único ser: um homem.
Glauco Está recoberto.
Sócrates Digamos agora àquele que pretende que é vantajoso
para este homem ser injusto, e que não lhe serve de nada
praticar a justiça, que isso equivale a pretender que é vantajoso
para ele alimentar com cuidado, por um lado, o animal multiforme,
o leão e a sua comitiva, e fortificá-los, e, por outro, reduzir
à fome e debilitar o homem, de modo que os outros dois possam
arrastá-lo para onde quiserem. Além disso, em vez de os habituar
a viverem unidos em boa harmonia, deixá-los lutarem,
morderem-se e devorarem-se uns aos outros.
Glauco Será isso mesmo o que o panegirista da injustiça
defenderá.
Sócrates E, de igual modo, afirmar que é útil ser justo
não é afirmar que é preciso fazer e dizer o que dará ao homem
interior a maior autoridade possível sobre o homem na sua
totalidade e lhe permitirá velar pela cria de muitas cabeças à
maneira do agricultor, que alimenta e domestica as espécies
pacificas e impede as selvagens de crescer; criá-lo assim com a
ajuda do leio e, dividindo os seus cuidados por todos, mantê-los
em boa harmonia entre eles e consigo mesmo?
Glauco E isso mesmo o que afirmará o partidário da
justiça.
Sócrates De qualquer maneira, aquele que faz o elogio
da justiça tem razão, e o que louva a injustiça está errado, pois,
em relação ao prazer, à boa reputação ou à utilidade, o que
louva a justiça fala verdade, e o que a censura não diz nada
de saudável e nem sequer sabe o que censura.
Glauco Ao que me parece, não o sabe de modo nenhum.
Sócrates Tentemos então desenganAlo de maneira gentil,
dado que o seu erro é involuntário, e perguntemos-lhe: Caro
amigo, não podemos dizer que a distinção habitual do honesto
e do desonesto tira a sua origem do fato de que, por um lado,
o honesto é o que submete ao homem, ou, antes, talvez, o que
submete ao elemento divino o elemento bestial da nossa natureza,
e, por outro, o desonesto é o que escraviza o elemento
pacifico ao elemento selvagem. Estará ele de acordo? Senão,
que responderá?
Glauco Estará de acordo, se quiser confiar em mim.
Sócrates Ora, segundo esta explicação, será útil a alguém
apoderar-se de ouro ir4ustamente, se não o puder fazer sem escravizar
ao mesmo tempo a melhor parte de si à mais vil? Se
aceitasse ouro para entregar o filho ou a filha como escravos a
senhores selvagens e maus, não tiraria daí nenhuma vantagem,
mesmo que recebesse por isso somas enormes. No entanto, se
escravizar o elemento mais divino de si mesmo ao elemento mais
ímpio e mais impuro, sem sentir um mínimo de comiseração, não
será um infeliz e não conseguirá o seu oumà custa de uma morte
ainda mais horrível do que aquela de que Erífila se tornou culpada,
ao vender por um colar a vida do seu marido~
Glauco Sim, é claro. Respondo como teu interlocutor.
Sócrates Não achas que, se desde sempre se censurou
Enfia era a mulher do adivfrho Anfiarau, que partilhou o trono de Argos
com Adrasto.
Tendo sido avisado pelos deuses de que morreria se participasse da guerra
contra Tebas.
declarada peio seu genro Polinices. esoonden-se. mas foi traído por Enfia,
que se deixo.
subornar por um colar de ouro oferecido por Polinkes
a libertinagem, foi porque dá rédeas a essa criatura terrível,
enorme e multiforme, mais do que seria aconselhavel?
Glauco É evidente.
Sócrates E, se se censura a arrogância e o caráter irritável,
nao e porque estes desenvolvem e fortalecem sobremaneira o
elemento em forma de leão e de serpente?
Glauco Assim é.
Sócrates E o que faz censurar o luxo e a languidez não
é o relaxamento. o ato de pôr à vontade esse elemento que
provoca a covardia?
Glauco Sim, é certo.
Sócrates E também censura a lisonja e a baixeza, porque
escravizam esse elemento irascível ao monstro turbulento e porque
este o torna vil pelo seu apego insaciável pelas riquezas e,
desde a infância, o transforma de leão em macaco.
Glauco E isso mesmo.
Sócrates Na tua opinião, de onde se origina a profissão
de artesao e de sarrafaçal, que implica uma espécie de censura?
Não é porque no artesão o elemento melhor se apresenta tão
naturalmente fraco que não pode dominar esses animais friteflores,
antes os lisonjeia e só pode aprender a satisfazê-los?
Glauco Parece-me que sim.
Sócrates E então para que esse homem seja governado
por uma autondade semelhante à que governa o melhor que
dizemos que deve ser escravo do melhor, em quem predomina
o elemento divino, não porque pensemos que essa escravidão
deva resultar em seu prejuízo, como supunha Trasímaco a propósito
dos governados, mas porque não há nada mais vantajoso
para cada indivíduo do que ser governado por um mestre divino
e sábio, quer habite dentro de nós mesmos, o que seria o melhor,
quer nos governe de fora, a fim de que, sujeitos ao mesmo
regime, nos tornemos todos, tanto quanto possível, semelhantes
uns aos outros e amigos.
Glauco Muito boas falas.
Sócrates A lei mostra justamente esta mesma intenção,
visto que dá o seu apoio a todos os membros da cidade. E não
é esse o nosso objetivo na maneira de educar as crianças? Não
as temos sob nossa guarda até estabelecermos uma constituição
na sua alma, como num Estado, até o momento em que, depois
de havermos cultivado através do que há de melhor em nós o
que há de melhor nelas, pomos este elemento no nosso lugar,
para que seja um soldado e um chefe semelhante a nós, após
o que as deixamos livres?
Glauco Parece-me claro que seja assim.
Sócrates Em que então, Glauco, e sob que aspecto diremos
que é vantajoso cometer uma ação injusta, licenciosa ou
vergonhosa, contanto que, ao tornar-se pior, se possam adquirir
novas riquezas ou qualquer outro poder?
Glauco Sob nenhum aspecto.
Sócrates Por fim, como imaginar que é vantajoso para
o injusto evitar os olhares e o castigo? O mau que não é descoberto
se torna pior ainda, ao passo que, quando descoberto
e castigado, o elemento bestial se acalma e suaviza, o elemento
pacífico toma a frente e toda a alma, colocada em condições
excelentes, se eleva a um estado cujo valor é superior ao do
corpo que adquire a força e a beleza com a saúde de toda a
superioridade da alma sobre o corpo!
Glauco Com toda certeza.
Sócrates Portanto, o homem de bom senso não viverá
com todas as suas forças voltadas para esse objetivo, honrando
em primeiro lugar as ciências capazes de elevar a sua alma até
esse estado e desprezando os demais?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E, no que conceme ao bom estado e à alimentação
do seu corpo, este homem não se entregará ao prazer
bestial e irracional e não viverá voltado para ele, não se importará
também com a saúde, nem com o que o pode tornar forte,
saudável e belo, se com isso não se tornar moderado, mas, ao
contrário, o veremos sempre procurando regular a harmonia
do corpo para manter o acordo perfeito da alma.
Glauco Eo que deverá fazer, se quiser ser mesmo músico.
Sócrates Mas não agirá de igual modo, observando o mesmo
acoMo perfeito na aquisição das riquezas? Não se deslumbrará
pela opinião da multidão aceita da felicidade e não aumentará a
massa dos seus bens até ao infinito, para ter males infinitos?
Glauco Não creio.
Sócrates Mas, lançando os olhos para o governo da sua
alma, terá o cuidado de não abalar nada por excesso ou falta
de fortuna e, seguindo esta regra, aumentará essa fortuna ou
gastará segundo suas possibilidades.
Glauco É verdade.
Sócrates Quanto às honras, ele buscará o mesmo objetivo:
aceitará, experimentará de boa vontade aquelas que considerar
adequadas a torná-lo melhor, mas evitará, tanto na vida
particular como na pública, as que possam destruir nele a ordem
estabelecida.
Glauco Mas então, se se puser a preocupar-se com isso,
não poderá ocupar-se dos negócios públicos.
Sócrates Não, pelo Cão! Ocupar-se-á deles na sua propna
cidade, mas não, talvez, na sua pátria, a não ser que um
divino acaso lhe permita isso.
Glauco Compreendo. Tu falas da cidade cujo plano traçamos
e que se fundamenta apenas nos nossos discursos, visto
que, tanto quanto sei, não existe em parte alguma da terra.
Sócrates Mas talvez haja um modelo no céu para quem
quiser contemplá-lo e, a partir dele, regular o governo da sua
alma. Aliás, não importa que essa cidade exista ou tenha de
existir um dia: é somente às suas leis, e de nenhuma outra, que
o sábio fundamentará a sua conduta.
LIVRO X
Sócrates E se afinno que a nossa cidade foi fundada
da maneira mais correta possível, é, sobretudo, pensando no
nosso regulamento sobre a poesia que o digo.
Glauco Que regulamento?
Sócrates O de não admitir em nenhum caso a poesia
imitativa. Parece-me mais do que evidente que seja absolutamente
necessário recusar admiti-lo, agora que estabelecemos
uma distinção clara entre os diversos elementos da alma.
Glauco Não compreendi bem.
Sócrates Digo, sabendo que não ireis denunciar-me aos
poetas trágicos e aos outros imitadores, que, segundo creio, todas
as obras deste gênero arruinam o espírito dos que as escutam,
quando não têm o antídoto, isto é, o conhecimento do
que elas são realmente.
Glauco Por que falas assim?
Sócrates E preciso dizê-lo, embora uma certa ternura e
um certo respeito que desde a infância tenho por Homero me
impeçam de falar. Na verdade parece ter sido ele o mestre e o
chefe de todos esses belos poetas trágicos. Mas não se deve
testemunhar a um homem mais consideração do que à verdade
e, como acabei de dizer, é um dever falar.
Glauco Com certeza.
Sócrates Escuta então, ou, antes, responde-me.
Glauco Interroga.
Sócrates Poderás dizer-me o que é, em geral, a imitação?
É que eu não concebo bem o que ela se propõe.
Glauco E como queres, então, que eu o conceba?
Sócrates Não haveria nisso nada de espantoso. Muitas
vezes, os que têm a vista fraca apercebem os objetos antes
daqueles que a têm penetrante.
Glauco Isso acontece. Mas, na tua presença, nunca ousarei
dizer o que poderia parecer-me evidente. Vê tu, portanto.
Sócrates Muito bem! Queres que partamos deste ponto,
no nosso inquérito, segundo o nosso método habitual? Realmente,
temos o hábito de supor uma certa forma, e uma só,
para cada grupo de objetos múltiplos a que damos o mesmo
nome. Compreendes isto?
Glauco Compreendo.
Sócrates Tomemos então aquele que quiseres desses
grupos múltiplos. Por exemplo, há um sem-número de camas
e mesas.
Glauco Pois bem.
Sócrates Mas, para esses dois móveis, há apenas duas
formas, uma de cama, outra de mesa.
Glauco Assim é.
Sócrates Não costumamos também dizer que o fabricante
de cada um desses móveis preocupa-se com a forma, para
fazer, um, as camas, o outro, as mesas de que nos servimos, e
assim para os outros objetos? E que a forma em si mesma ninguém
a modela, não é assim?
Glauco Por certo que não.
Sócrates Mas dize-me agora que nome darás a este obreiro.
Glauco Qual?
Sócrates Aquele que faz tudo o que fazem os diversos
obreiros, cada um no seu gênero.
Glauco Estás a falar de um homem hábil e maravilhoso!
Sócrates Espera um pouco mais e afirmarás mais acertadamente.
Este adesão de que falo não é apenas capaz de fazer
todas as espécies de móveis, mas também produz tudo o que
brota da terra, modela todos os seres vivos, incluindo ele próprio,
e, além disso, fabrica a terra, o céu, os deuses e tudo o
que há no céu e tudo o que há sob a terra, no Hades.
Glauco Aí está um sofista maravilhoso!
Sócrates Duvidas de mim? Mas diz-me: achas que não
existe um artesão assim? Ou que, de ceda maneira, se possa
criar tudo isso e, de outra, não se possa? Mas tu mesmo observas
que poderias criá-lo, de certa maneira.
Glauco E que maneira é essa?
Sócrates É simples. Pratica-se muitas vezes e rapidamente,
muito rapidamente até, se quiseres pegar num espelho e andar com
ele por todos os lados. Farás imediatamente o Sol e os astros do céu, a
Terra, tu mesmo e os outros seres vivos, e os móveis e as plantas e tudo
aquilo de que falávamos há
instantes.
Glauco Sim, mas serão aparências, e não objetos reais.
Sócrates Bem, chegas ao ponto mais importante do discurso.
Suponho que seja verdade que entre os artesãos desta
natureza é preciso contar também com o pintor, não achas?
Glauco Como não?
Sócrates Mas tu me dirás, penso eu, que o que ele faz
não é verdadeiro. Contudo, de certo modo, o pintor também
faz uma cama. Ou não?
Glauco Sim, pelo menos uma cama aparente.
Sócrates E o marceneiro? Não disseste há pouco que
não fazia a forma ou, segundo nós, o que é a cama, mas uma
cama qualquer?
Glauco Disse, é verdade.
Sócrates Pois bem. Se não faz o que é, não faz o objeto
real, mas um objeto que se assemelha a este, sem ter a sua
realidade, e se alguém dissesse que a obra do marceneiro ou
de qualquer outro artesão é real, seria acertado dizer que isso
seria falso?
Glauco Seria a conclusão a que chegariam os que se
ocupam de tais questões.
Sócrates Por conseguinte, não devemos nos admirar que
essa obra seja algo de obscuro, se comparado com a verdade.
Glauco Não.
Sócrates Apoiando-nos nestes exemplos, procuremos
agora descobrir o que pode ser o imitador.
Glauco Se tu o quiseres.
Sócrates Vejamos que há três espécies de camas: uma
que existe na natureza das coisas e de que podemos dizer, aeio,
que Deus é o criador. Quem mais seria, senão ele?
Glauco Ninguém, na minha oprniao.
Sócrates Uma segunda é a do marceneiro.
Glauco Sim.
Sócrates E uma terceira, a do pintor.
Glauco Seja.
Sócrates Assim, o pintor, o marceneiro e Deus são três
que presidem à forma destas três espécies de camas.
Glauco Sim, são efetivamente três.
Sócrates E Deus, ou porque não quis agir de modo
diferente, ou porque uma necessidade qualquer o obrigou a
não fazer senão uma cama na natureza, fez unicamente essa
que é a cama real; mas duas camas desta espécie, ou várias,
Deus nunca as produziu nem as produzirá.
Glauco Por quê?
Sócrates Pois, se fizesse somente duas, manifestar-se-ia
uma terceira de que essas duas reproduziriam a forma, e esta
cama é que seria a cama real, não as outras duas.
Glauco Tens razão.
Sócrates Deus, sabendo isso, penso eu, e querendo ser o
criador venladeiro de uma cama real, e não o fabricante particular
de uma cama particular, criou essa cama única por natureza.
Glauco Assim me parece.
Sócrates Queres então que demos a Deus o nome de criador
natural deste objeto ou qualquer outro nome semelhante?
Glauco Nada mais justo, visto que criou a natureza
desse objeto e de todas as outras coisas.
Sócrates E o marceneiro? Devemos chamá-lo de obreiro
da cama, não é verdade?
Glauco Sim, é.
Sócrates E chamaremos ao pintor o obreiro e o criador
desse objeto?
Glauco De modo nenhum.
Sócrates Dize-me então o que é ele em relação à cama.
Glauco Parece-me que o nome que lhe conviria melhor
é o de imitador daquilo de que os outros dois são os artífices.
Sócrates Que seja. Chamas portanto, imitador ao autor
de uma produção afastada três graus da natureza.
Glauco Com certeza.
Sócrates Desse modo, o autor de tragédias, se é um
imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da
verdade, assim como todos os outros imitadores.
Glauco E provável.
Sócrates Então estamos nós de acordo quanto ao imitador.
Mas, sobre o pintor, responde-me ainda: tenta ele, a teu
ver, imitar cada uma das coisas que existem na natureza ou as
obras dos artesãos?
Glauco As obras dos artesãos.
Sócrates Tais como são ou tais como parecem ser? Distingue
mais isto.
Glauco O que queres dizer?
Sócrates Vê, caro Glauco: uma cama, quer a olhes de
lado, quer de frente, quer de qualquer outra maneira, é diferente
de si mesma ou, sem diferir, parece diferente? E acontece o
mesmo com as outras coisas?
Glauco Sim, o objeto parece diferente, mas não é.
Sócrates Agora, considera este ponto: qual destes dois
objetivos se propâe a pintura no que se refere a cada objeto:
representar o que é tal como é ou o que parece tal como parece?
É a imitação da aparência ou da realidade?
Glauco Da aparência.
Sócrates Sendo assim, a imitação está longe da verdade
e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a uma
pequena parte de cada um, a qual, por seu lado, não passa de
uma sombra. Diremos, por exemplo, que o pintor nos representará
um sapateiro, um carpinteiro ou qualquer outro artesão,
sem ter o mínimo conhecimento do seu ofício. Contudo, se for
bom pintor, tendo representado um carpinteiro e mostrando-o
de longe, enganará as crianças e os homens tolos, porque terá
dado à sua pintura a aparência de um carpinteiro autêntico.
Glauco É correto.
Sócrates Aí está! No meu modo de ver, o que se deve
pensar de tudo isto é o seguinte: quando um indivíduo vem
nos dizer que encontrou um homem conhecedor de todos os
ofícios, que sabe tudo o que cada um sabe do seu ramo, e com
mais exatidão do que qualquer outro, devemos assegurá-lo de
que é um ingénuo e que, ao que parece, deparou com um charlatão
e um imitador, que o iludiu a ponto de lhe parecer onisciente,
porque ele mesmo não era capaz de distinguir a ciência,
a ignorância e a imitação.
Glauco É a mais pura verdade.
Sócrates Devemos, assim, considerar agora a tragédia
e Homero, que é o seu pai, visto que ouvimos certas pessoas
dizerem que os poetas trágicos são versados em todas as artes,
em todas as coisas humanas relativas à virtude e ao vício e até
nas coisas divinas. Dizem elas que é necessário que o bom poeta,
se quer criar uma obra bela, conheça os assuntos de que trata,
pois, de outro modo, não será capaz de criar. Precisamos, assim,
ver se essas pessoas, tendo deparado com imitadores desta natureza,
não foram enganadas pela contemplação das suas obras,
não notando que estão afastadas no terceiro grau do real e que,
mesmo desconhecendo a verdade, é fácil executá-las, porque
os poetas criam fantasmas, e não seres reais, ou se a sua afirmação
tem algum sentido e se os bons poetas sabem realmente
aquilo de que, no entender da multidão, falam tão bem.
Glauco Certamente, temos de ver isso.
Sócrates Achas que, se um homem fosse capaz de fazer
tanto o objeto a imitar como a imagem, preferiria consagrar a
sua atividade à fabricação das imagens e poria esta ocupação
no primeiro plano da sua vida, como se para ele não houvesse
nada melhor?
Glauco Penso que não.
Sócrates Porém, se fosse mesmo versado no conhecimento
das coisas que imita, suponho que se dedicaria muito
mais a criar do que a imitar, que procuraria deixar atrás de si
um grande número de obras belas, assim como monumentos,
e que estaria muito mais interessado em ser honrado pelos outros
do que em honrar.
Glauco Creio que sim, porque não há, nesses dois papéis,
igual honra e proveito.
Sócrates Sendo assim não peçamos contas a Homero
nem a nenhum outro poeta sobre vários assuntos. Não lhes
perguntemos se um deles foi médico, e não apenas imitador
da linguagem destes, que curas se atribuem a um poeta qualquer,
antigo ou moderno, como a Esculápio, ou que discípulos
eruditos em medicina deixou atrás de si, como Esculápio deixou
os seus descendentes. De igual modo, no que concerne às outras
artes, não os interroguemos, vamos deixá-los em paz. Mas sobre
os assuntos mais importantes e mais belos que Homero decide
tratar: as guerras, o comando dos exércitos, a administração
das cidades, a educação do homem, talvez seja justo interrogá-lo
e dizer-lhe: Caro Homero, se é verdade que, no que respeita
à virtude, não estás afastado no terceiro grau da verdade, artífice
da imagem, como definimos o imitador, se te encontras no segundo
grau e nunca foste capaz de saber que práticas tornam
os homens melhores ou piores, na vida particular e na vida
pública, diz-nos qual, entre as cidades, graças a ti, se governou
melhor, como, graças a Licurgo, o Lacedemônio, e graças a muitos
outros, muitas cidades, grandes e pequenas? Que Estado
reconhece que foste para ele um bom legislador e um benfeitor?
A Itália e a Sicília tiveram Carondas, e nós, Sólon, mas a ti que
Estado pode citar? Poderia indicar um só que fosse?
Glauco Não acredito. Os próprios homéridas não dizem
nada.
Sócrates Menciona-se alguma guerra, no tempo de 1-lomero,
que tenha sido bem conduzida por ele ou pelos seus
conselhos?
Glauco Nenhuma.
Sócrates Citam-se então dele, como de um homem hábil
na prática, várias invenções engenhosas que digam respeito às
artes ou a outras atividades, como se faz acerca de Tales de
Mileto e de Anacársis, o Cita?
Glauco Não, não se diz nada.
Sócrates Ora, se Homero não prestou serviços públicos,
diz-se, ao menos, que tenha, durante a vida, estado à frente da
educação de alguns particulares, que o tenham amado ao ponto
de se prenderem à sua pessoa e tenham transmitido à posteridade
um plano de vida homérica, como foi o caso de Pitágoras,
que inspirou uma profunda dedicação deste gênero e cujos seguidores
ainda hoje chamam pitagórico ao modo de existência
pelo qual parecem distinguir-se dos outros homens?
Glauco Não, também nesse aspecto não se diz nada,
porque Creófilo, o discípulo de Homero, expôs-se talvez mais
ao ridículo pela sua educação do que pelo seu nome, se é verdade
o que se fala de Homero. Na verdade, diz-se que este foi
estranhamente desprezado em vida por essa personagem.
Sócrates E isso o que se diz. Mas achas, Glauco, que
se Homero tivesse estado mesmo em condições de instruir os
homens e torná-los melhores, possuindo o poder de conhecer,
e não o de imitar, não teria feito muitos discípulos que o teriam
honrado e estimado? Ora! Protágoras de Abdera, Pródico de
Cós e muitos outros chegam a persuadir os seus contemporâneos,
em conversas privadas, de que não poderão administrar
nem a sua casa nem a sua cidade, se eles mesmos não presidirem
à sua educação, e por esta sabedoria fazem-se amar tanto que
os seus discípulos os levariam sobre os ombros quase em triunfo.
Se Homero tivesse sido capaz de ajudar os homens de seu tempo
a serem virtuosos, tê-lo-iam deixado, a ele ou a Hesíodo, errar
de cidade em cidade recitando os seus versos? Não os amariam
mais do que a todo o ouro do mundo? Não os teriam forçado
a ficar junto deles, no seu país ou, se não tivessem podido convencê-
los, não o teriam seguido por toda parte, até que recebessem
uma educação suficiente?
Glauco O que dizes, Sócrates, parece-me a pura verdade.
Sócrates Tomemos como princípio que todos os poetas,
a começar por Homero, são simples imitadores das aparências
da virtude e dos outros assuntos de que tratam, mas que não
atingem verdade. São semelhantes nisso ao pintor de que falávamos
há instantes, que desenhará uma aparência de sapateiro,
sem nada entender de sapataria, para pessoas que, não percebendo
mais do que ele, julgam as coisas segundo a aparência?
Glauco Sim.
Sócrates Diremos também que o poeta aplica a cada
arte cores adequadas, com as suas palavras e frases, de tal modo
que, sem ser competente senão para imitar, junto daqueles que,
como ele, só vêem as coisas segundo as palavras, passa por
falar muito bem, quando fala, observando o ritmo, a métrica e
a harmonia, quer de sapataria, quer de arte militar, quer de
outra coisa qualquer, tal o encanto que esses ornamentos têm
naturalmente e em si mesmos! Despojadas do seu colorido artístico
e citadas pelo sentido que encerram, sabes bem, creio
eu, que figura fazem as obras dos poetas, visto que também tu
assististe a isso.
Glauco É verdade.
Sócrates Não se parecem rostos das pessoas que não
têm outra beleza além do viço da juventude, quando esse
viço passou?
Glauco E exato.
Sócrates Pois bem, leva isto em consideração: o criador 1
de imagens, o imitador, não entende nada da realidade, só conhece
a aparência.
Glauco Certo.
Sócrates Não deixemos o assunto a meio, vejamo-lo
mais a fundo.
Glauco Fala.
Sócrates Dizemos que o pintor pintará rédeas e um freio.
Glauco Sim.
Sócrates Mas o correeiro e o ferreiro é que os fabricarão.
Glauco Certo.
Sócrates É por acaso o pintor que sabe como devem
ser feitos o freio e as rédeas? Ou será aquele que os fabrica,
ferreiro ou correeiro? Não é antes aquele que aprendeu a servir-
se deles, o simples cavaleiro?
Glauco Exato.
Sócrates Não diremos que o mesmo se passa em relação
a todas as coisas?
Glauco Como assim?
Sócrates Há três artes que correspondem a cada objeto:
as do uso, da fabricação e da imitação.
Glauco Sim, há.
Sócrates Mas qual será o objetivo da beleza, da perfeição
de um móvel, de um animal, de uma ação, senão o uso, com
vista ao qual cada coisa é feita, quer pela natureza, quer pelo
homem?
Glauco Não será nenhum outro.
Sócrates Em sendo assim, é forçoso que aquele que utiliza
uma coisa seja o mais experimentado e informe o fabricante
das qualidades e defeitos da sua obra, baseado no uso que faz
dela. Por exemplo, o tocador de flauta informará o fabricante
acerca das flautas que poderão servir-lhe para tocar; dir-lhe-á
como deve fazê-las, e aquele obedecerá.
Glauco Indubitavelmente.
Sócrates Portanto, o que conhece vai se pronunciar sobre
as flautas boas e más, e o outro trabalhará confiando nele.
Glauco Certamente.
Sócrates Assim, em relação ao mesmo instrumento, o
fabricante tem, acerca da sua perfeição ou imperfeição, uma
confiança que será exata, porque está em ligação com aquele
que sabe e é obrigado a ouvir as suas opiniões, mas é quem
utiliza quem tem a ciência.
Glauco Perfeito.
Sócrates Mas o imitador estará na posse do uso da ciência
das coisas que representa, saberá se elas são belas e corretas
ou não, ou terá delas uma opinião justa porque será obrigado
a conviver com o que sabe e a receber as suas instruções, quanto
à maneira de representá-las?
Glauco Nem uma coisa nem outra.
Sócrates O imitador não tem, portanto, nem ciência nem
opinião justa no que diz respeito à beleza e aos defeitos das
coisas que imita?
Glauco Não, ao que me parece.
Sócrates Será então encantador o imitador em poesia,
pela sua sapiência dos assuntos tratados!
Glauco Nem tanto assim!
Sócrates No entanto, não deixará de imitar, sem saber
por que motivo uma coisa é boa ou má, mas deverá fazê-lo
daquilo que parece belo à multidão e aos ignorantes.
Glauco E o que mais poderia ser feito?
Sócrates Aí estão, segundo parece, dois pontos sobre
os quais estamos de acordo: em primeiro lugar, o imitador não
tem nenhum conhecimento válido do que imita, e a imitação é
apenas uma espécie de jogo infantil. Em segundo, os que se
consagram à poesia trágica, quer componham em versos jâmbicos,
quer em versos épicos, são imitadores em grau supremo.
Glauco Com toda a certeza.
Sócrates Mas, por Zeus! Essa imitação não está afastada
no terceiro grau da verdade?
Glauco Está.
Sócrates Além disso, sobre que outro elemento o homem
exerce o poder que tem?
Glauco Ao que te referires?
Sócrates Vê: mesma grandeza, olhada de perto ou de
longe, não parece igual.
Glauco Não.
Sócrates E os mesmos objetos parecem tortos ou inteiros
consoante os olhamos na água ou fora dela, ou côncavos ou
convexos devido à ilusão visual produzida pelas cores. E evidente
que tudo isto lança a perturbação na nossa alma. Dirigindo-
se a esta disposição da nossa natureza, a pintura sombreada
não deixa de tentar nenhum processo de magia, como
é também o caso do charlatão e de muitas outras invenções
deste gênero.
Glauco É verdade.
Sócrates Ora, não se descobriram na medida, no cálculo
e no peso excelentes auxiliares contra tais ilusões, de modo que
o que prevalece em nós não é a aparência de grandeza ou pequenez,
de quantidade ou peso, mas o parecer daquilo que contou,
mediu, pesou?
Glauco Sem dúvida.
Sócrates E estas operações competem ao elemento racional
da nossa alma, não é assim?
Glauco Sim, efetivamente.
Sócrates Mas não acontece diversas vezes, depois de
ter medido e assinalado que tais objetos são, em relação a outros,
maiores, menores ou iguais, receber ao mesmo tempo a impressão
contrária a propósito dos mesmos objetos?
Glauco Sim.
Sócrates Pois bem. Não declaramos que era impossível
que o mesmo elemento tivesse, sobre as mesmas coisas e ao
mesmo tempo, duas opiniões contrárias?
Glauco Sim, declaramos.
Sócrates Por conseqüência, o que, na alma, opina contrariamente
à medida não forma, com o que opina conformemente
à medida, um único e mesmo elemento?
Glauco Com efeito, não.
Sócrates Mas por certo que o elemento que confia na
medida e no cálculo é o melhor da alma.
Glauco Sim.
Sócrates Então, o que é contrário será um elemento
inferior de nós mesmos.
Glauco É como vejo.
Sócrates Era a esta conclusão que queria conduzir-vos
quando dizia que a pintura, e costumeiramente toda espécie
de imitação, realiza a sua obra longe da verdade, que se relaciona
com um elemento de nós mesmos que se encontra afastado da
sabedoria e não se propõe, com essa ligação e amizade, nada
de saudável nem de real.
Glauco Exato.
Sócrates Desse modo, a imitação só dará frutos medíocres,
sendo que é uma coisa medíocre unida a um elemento
medíocre.
Glauco Assim me parece.
Sócrates Mas será assim apenas com a imitação que se
dirige à vista ou também com a que se dirige ao ouvido, e a
que chamamos poesia?
Glauco Com certeza, será assim também com a última.
Sócrates Não vamos nos ater, no entanto, a esta semelhança
da poesia com a pintura. Voltemo-nos para esse elemento
do espírito com que está relacionada a imitação poética e vejamos
se é desprezível ou precioso.
Glauco E o que temos de fazer.
Sócrates Elaboremos a pergunta da seguinte maneira:
a imitação, segundo cremos, representa os indivíduos que agem
voluntariamente ou à força, pensando, segundo os casos, que
agiram bem ou mal e entregando-se em todas estas conjunturas
quer à dor, quer à alegria. Algo mais além disso?
Glauco Nada.
Sócrates Em todas estas situações, o homem está de
acordo consigo mesmo? Ou, do modo como estava em desacordo
a respeito da vista, tendo ao mesmo tempo duas opiniões
diferentes dos mesmos objetos, está igualmente, no que se refere
à sua conduta, em contradição e em luta consigo mesmo? Mas
algo me diz que não temos de concordar com este ponto. A
bem da verdade, no que dissemos atrás, reconhecemos tudo
isso e que a nossa alma está cheia de contradições desta natureza,
que nela se manifestam ao mesmo tempo.
Glauco E falamos com razao.
Sócrates É verdade, tivemos razão. Mas julgo necessário
analisar agora o que então omitimos.
Glauco O que seda?
Sócrates Dizíamos nós que um homem de caráter moderado,
a quem sucede uma desgraça, como a perda de um
filho ou qualquer outro objeto de seu apreço, suporta essa perda
mais facilmente do que qualquer outro.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Então, vejamos. Pensas que ele não ficará de
modo nenhum aflito ou, sendo impossível tal indiferença, mostrar-
se-á moderado na sua dor?
Glauco A segunda alternativa é a verdadeira, certamente.
Sócrates E quando achas que ele lutará contra a dor e
lhe resistirá? Quando estiver sendo observado pelos seus semelhantes
ou quando ficar só, à parte, consigo mesmo?
Glauco Procurará se dominar mais quando estiver sendo
observado.
Sócrates Porém, uma vez só, ousará, suponho, proferir
muitas palavras que teria vergonha que fossem ouvidas e fará
muitas coisas que não suportaria que o vissem fazer.
Glauco E como penso.
Sócrates Então, o que o obriga a conter-se não é a razão
e a lei, e o que leva a afligir-se não é o próprio sofrimento.
Glauco É verdade.
Sócrates Quando dois impulsos contrários se produzem
ao mesmo tempo no indivíduo, com relação aos mesmos objetos,
dizemos que bá necessariamente nele dois elementos, não é assim?
Glauco Como não?
Sócrates E um desses elementos está disposto a obedecer
à lei em tudo o que ela prescreve.
Glauco Como?
Sócrates A lei diz que não há nada mais belo do que
manter a calma, tanto quanto possível, na infelicidade, e não
se afligir, porque não se pode distinguir com clareza o bem do
mal que ela comporta; não se ganha nada em indignar-se, nenhuma
das coisas humanas merece ser tomada muito a sério,
e, numa ocasião dessas, agindo com destempero, seria impossível
ver o que estaria vindo em nosso socorro, porque nosso
desgosto nos impediria.
Glauco Do que falas?
Sócrates Reflito sobre o que nos aconteceu. Como num
lançamento de dados, devemos, de acordo com o lote que nos
toca, restabelecer os nossos assuntos pelos meios que a razão
nos prescreve como sendo os melhores e, indo de encontro a
qualquer coisa, não agir como as crianças, que, agarrando-se à
parte magoada, perdem o tempo a gritar, mas, pelo contrário,
lutar por habituar a nossa alma a ir o mais depressa possível
tratar o ferimento, erguer o que está por terra e fazer calar os
lamentos mediante a aplicação do remédio.
Glauco Temos aí, com certeza, o melhor a fazer nos
acidentes que nos ocorrem.
Sócrates Bem, segundo dizemos, é o melhor elemento
de nós mesmos que quer seguir a razão.
Glauco Evidentemente.
Sócrates E o elemento que nos leva a recordar a infelicidade
e os lamentos, de que não pode saciar-se, não diremos
que é irracional, ocioso e amigo da covardia?
Glauco Diremos, com razao.
Sócrates O caráter irascível presta-se a imitações numerosas
e variadas, ao passo que o caráter prudente e tranqüilo,
sempre igual a si mesmo, não é fácil de imitar, nem fácil de
compreender, uma vez expresso, sobretudo numa assembléia
em festa e pelos homens de todo tipo que se encontram reunidos
nos teatros. Estariam assim imitando sentimentos que lhes são
estranhos.
Glauco Correto.
Sócrates Então, é claro que o poeta imitador não se
mcina, por natureza, para um tal caráter da alma, e o seu talento
não se importa em agradar-lhe, visto que pretende salientar-se
no meio da multidão. Ao contrário, inclina-se para o caráter
irritável e instável, porque este é fácil de imitar.
Glauco É óbvio.
Sócrates Podemos, com razão, censurá-lo e considerá-lo
o par do pintor. Assemelha-se a ele por só produzir obras sem
valor, do ponto de vista da verdade, e assemelha-se também
por estar relacionado com o elemento inferior da alma, e não
com o melhor dela. Estamos, entao, bem fundamentados para
não o recebermos num Estado que deve ser regido por leis
sábias, visto que esse indivíduo desperta, alimenta e fortalece
o elemento mau da alma e assim arruina o elemento racional,
como ocorre num Estado que se entrega aos maus, deixando-os
tomar-se fortes e destruindo os homens mais nobres. Diremos
o mesmo do poeta imitador que introduz um mau governo na
alma de cada indivíduo, lisonjeando o que nela há de irracional,
o que é incapaz de distinguir o maior do menor, que, pelo
contrário, considera os mesmos objetos ora grandes, ora pequenos,
que só produz fantasias e se encontra a uma distância enorme
da verdade.
Glauco Certamente.
Sócrates E vê que ainda não acusamos a poesia do mais
grave dos seus malefícios. O que mais devemos recear nela é,
sem dúvida, a capacidade que tem de corromper, mesmo as
pessoas mais honestas, com exceção de um pequeno número.
Glauco Com certeza.
Sócrates Ouve e considera o caso dos melhores de
nós. Quando vemos Homero ou qualquer outro poeta trágico
imitar um herói na dor, que, no meio dos seus lamentos, se
estende numa longa tirada ou canta ou bate no peito, sentimos,
como sabes, prazer. Acompanhamos tudo isso com a
nossa simpatia e, no nosso entusiasmo, louvamos como um
bom poeta aquele que, no mais alto grau possível, provocou
em nós tais disposições.
Glauco Certo, como poderia eu ignorá-lo?
Sócrates Mas, quando uma desgraça doméstica nos fere,
já percebeste que fazemos força por manter a atitude contrária,
por ficarmos calmos e mostrar coragem, porque isso é próprio
de um homem e o comportamento que há instantes aplaudíamos
só fica bem às mulheres?
Glauco Sim, notei.
Sócrates Então, é belo elogiar um homem com o qual
não gostaríamos de nos parecer, que por sua atitude nos faria
corar, e, em vez de sentir repugnância, comprazermo-nos com
esse espetáculo e louvá-lo?
Glauco Não, por Zeus! Isso não me parece correto.
Sócrates Sem dúvida, sobretudo se analisares o caso
deste outro ponto de vista.
Glauco Qual?
Sócrates Se considerares que esse elemento da alma
que, nos nossos maiores infortúnios, reprimimos, que tem sede
de lágrimas e gostaria de se saciar de lamentações, coisas que
é de sua natureza desejar, é aquele mesmo que os poetas se
esforçam por satisfazer e contentar. E que, de outra feita, o
elemento melhor de nós mesmos, não estando suficientemente
formado pela razão e pelo hábito, desiste do seu papel de soldado,
em face desse elemento propenso às lamentações, com o
pretexto de que é simples espectador das desgraças dos outros;
que para ele não há vergonha, se um outro que se diz homem
de bem verte lágrimas vãs, em louvá-lo e lamentá-lo; que considera
o seu prazer algo de que não suportaria privar-se, desprezando
toda a obra. E bem verdade que é dado a poucas
pessoas ponderar que o que se sentiu a propósito das desgraças
do outro se sente a propósito das suas; por isso, depois de
termos alimentado a nossa sensibilidade com essas desgraças,
não é fácil contê-la nas nossas próprias?
Glauco Nada há mais verdadeiro que isso.
Sócrates O mesmo argumento não se aplica ao riso,
segundo penso. Embora tendo vergonha de fazer rir, sentes um
vivo prazer na representação de uma comédia ou, na vida particular,
numa conversa burlesca, detestas essas coisas por serem
vulgares, comportand~te do mesmo modo que nas emoções
patéticas. E que essa vontade de fazer rir que reprimias pela
razão, receando ganhar a reputação de desabusado, tu irás libertá-
la, e, se lhe deres força, sucede-te muitas vezes que, entre
os teus familiares, te abandones ao ponto de te tomares autor
cômico.
Glauco Tens razão.
Sócrates E, no que diz respeito ao amor, à cólera e a
todas as outras paixões da alma, que acompanham cada uma
das nossas ações, a imitação poética não provoca em nós semelhantes
efeitos? Fortalece-as regando-as, quando o certo seria
secá-las, faz com que reinem sobre nós, quando deveríamos
reinar sobre elas, para nos tornarmos melhores e mais felizes,
em vez de sermos mais viciosos e miseráveis.
Glauco Estás cedo, mais uma vez.
Sócrates Então, Glauco, quando encontrares panegiristas
de Homero, dizendo que este poeta educou-se na Grécia e que,
para administrar os negócios humanos ou ensinar a sua prática,
deve-se basear nele, estudá-lo e viver regulando de acordo com
ele toda a existência; deves saudá-los e acolhê-los com respeito,
como se fossem homens tão virtuosos quanto possível, e conceder-
lhes que Homero é o príncipe da poesia e o primeiro dos
poetas trágicos, mas saber também que em matéria de poesia
não se devem admitir na cidade senão os hinos em honra dos
deuses e os elogios das pessoas de bem. Se, pelo contrário, admitires
a Musa voluptuosa, o prazer e a dor serão os reis da
tua cidade, em vez da lei e desse princípio que, de comum
acordo, sempre foi considerado o melhor: a razão.
Glauco Exatamente.
Sócrates Tínhamos isto a ser dito, visto que voltamos
a falar da poesia, para nos justificar de termos banido do nosso
Estado uma arte desta natureza: a razão obrigava-nos a isso. E
digamos-lhe também, para que ela não nos acuse de dureza e
rudeza, que é antiga a dissidência entre a filosofia e a poesia.
Testemunham-no os seguintes aspectos: a cadela arisca que
ladra para o dono, o homem que passa por grande nas palavras
vãs dos loucos, o magote das cabeças magistrais, as pessoas
que se atormentam a subtrair porque estão na miséria e mil
outros que marcam a sua velha oposição. Declaremos, porém,
que, se a poesia imitativa puder provar-nos com boas razões
que tem o seu lugar numa cidade bem policiada, vamos recebê-la com
alegria, porquanto temos consciência do encanto que ela exerce sobre nós,
mas seria ímpio trair o que se considera a
verdade. Aliás, meu amigo, não te sentes seduzido também,
ainda mais quando a vês através de Homero?
Glauco Muito.
Sócrates Portanto, é justo que possa entrar, depois de
se ter justificado, quer numa ode, quer em versos de qualquer
outra medida.
Glauco Sem dúvida.
Sócrates Permitiremos até que os seus defensores que
não são poetas, mas que amam a poesia, falem por ela em prosa
e nos demonstrem que não é apenas agradável, mas também
útil, ao governo dos Estados e à vida humana. E iremos ouvi-los
com boa vontade, visto que será proveitoso para nós se ela se
revelar tão útil como agradável.
Glauco Por certo que teremos a lucrar.
Sócrates Porém, meu caro amigo, se ela não se nos apresentar
assim, faremos como aqueles que se amaram, mas que,
tendo reconhecido que o seu amor não era proveitoso, se desligam,
contrariados, é cedo, mas se desligam. Também nós, por
um efeito do amor que a educação das nossas belas repúblicas
fez nascer em nós por essa poesia, estaremos dispostos a ver
manifestar-se a sua excelência e altíssima verdade. No entanto,
enquanto não for capaz de justificar-se, escutá-la-emos repetindo,
como um encantamento que nos previna contra ela, as razões
que acabamos de enumerar, com receio de cair nesse amor de
infância que é ainda o da maioria dos homens. Repetiremos,
então, que não se deve tomar a sério uma tal poesia, como se,
sendo ela própria séria, chegasse à verdade, mas que, ao contrário,
é preciso, ao escutá-la, tomar cautela, receando pelo governo
da alma, e, enfim, ter como lei tudo o que dissemos acerca
da poesia.
Glauco Estou inteiramente de acordo conbgo.
Sócrates Com efeito, é um grande combate, amigo
Glauco, sim, maior do que se pensa, aquele em que se trata
de nos tornarmos bons ou maus; por isso, nem a glória, nem
as riquezas, nem a dignidade, nem mesmo a poesia, merecem
que nos deixemos resvalar para o desprezo da justiça e das
outras virtudes.
Glauco Estou de pleno acordo, e julgo que não há ninguém
que deixe de concordar também.
Sócrates Mas ainda não falamos das recompensas maiores
e dos prémios reservados à virtude.
Glauco Devem ser extraordinariamente grandes se são
maiores ainda do que os que enumeramos!
Sócrates Mas o que, sendo tão grande, poderia ter lugar
num curto espaço de tempo, visto que todo esse tempo que
separa a infância da velhice é bem curto em comparação com
a eternidade?
Glauco Não é nada.
Sócrates Ora! Achas que um ser imortal deva inquietar-
se com um período tão curto como esse, e não com a
eternidade?
Glauco Claro que não. Mas aonde queres chegar com
esse discurso?
Sócrates Não observaste que a nossa alma é imortal?
Glauco Por Zeus, não! E tu poderás prová-lo?
Sócrates Sim, com certeza, mas creio até que tu poderias
fazê-lo, pois não é difícil.
Glauco Para mim é, mas gostaria de te ouvir demonstrar
essa coisa fácil.
Sócrates Ouve.
Glauco Fala.
Sócrates Reconheces que bá um bem e um mal?
Glauco Sim.
Sócrates Mas os concebe como eu?
Glauco Como?
Sócrates O que destrói e corrompe as coisas é o mal; o
que as conserva e desenvolve é o bem.
Glauco De acordo.
Sócrates Pois bem. Quando um desses males se prende
a uma detenninada coisa não faz com que se deteriore e não
acaba por dissolvê-la e destruí-la totalmente?
Glauco Sim.
Sócrates Então, são o mal e o vício próprios, por natureza,
de cada coisa que a destroem, e, se esse mal não a destrói,
nada mais poderia fazê-lo. Na verdade, o bem nunca destruirá
o que quer que seja, assim como o que não é nem um bem
nem um mal.
Glauco Na verdade, como seria isso possível?
Sócrates Se encontrarmos na natureza um ser que o
seu mal torna vicioso, sem, no entanto, poder destruí-lo e perdê-
lo, saberemos de antemão que para um ser assim constituído
não há destruição possível?
Glauco Sim, ao que parece.
Sócrates Mas como? Não há nada que tome a alma má?
Glauco Sim, há todos os vícios que enumeramos: a injustiça,
a intemperança, a covardia, a ignorância.
Sócrates Será então que um desses vícios a dissolve e
a corrompe? Sendo assim, não nos enganamos ao julgar que o
homem injusto e insensato, apanhado em flagrante delito de
crime, é perdido pela injustiça, sendo esta o mal da alma. Encara antes o
assunto desta maneira: a doença, que é o vício do corpo, mina-o, o destrói e
o reduz a já não ser corpo; e todas as coisas
de que falávamos há instantes, devido ao seu próprio vício,
que se instala nelas e as destrói, acabam no aniquilamento, não
é assim?
Glauco E.
Sócrates Considera, então, a alma da mesma maneira:
é verdade que a injustiça ou qualquer outro vício, ao instalar-
se nela, a corrompe e a faz mirrar até levá-la à morte e
separá-la do corpo?
Glauco De modo nenhum.
Sócrates Por outro lado, seria absurdo imaginar que um
mal estranho pudesse destruir uma coisa, e o seu própno, nao.
Glauco Sim, um completo absurdo.
Sócrates Percebe então, Glauco, que a má qualidade
dos alimentos, que é o seu vício próprio, por falta de frescor,
por podridão, por qualquer outra deterioração, não é, segundo
nos parece, o que deve destruir o corpo. Se a má qualidade
dos alimentos provocar no corpo o mal que lhe é próprio,
diremos que no momento da alimentação o corpo pereceu
por causa da doença, que é propriamente o seu mal. Porém
nunca acreditaremos que tenha sido destruído pelo vício dos
alimentos, que são uma coisa, ao passo que ele é outra, ou
seja, por um mal estranho que não teria originado o mal ligado
à sua natureza.
Glauco Muito bem.
Sócrates Por conseguinte, se a doença do corpo não
provoca na alma a doença da alma, não devemos crer que a
alma seja destruída por um mal estranho, sem a intervenção
do mal que lhe é próprio, como se uma coisa pudesse ser destruída
pelo mal de outra.
Glauco O teu raciocínio está certo.
Sócrates Desse modo, creamos que estas provas são
falsas, ou então, enquanto não forem refutadas, evitemos dizer
que a febre, ou qualquer outra doença, ou o assassinato, mesmo
que o corpo fosse cortado em pedacinhos, podem contribuir
para a ruína da alma, a não ser que nos demonstrem que o
efeito destes acidentes do corpo é tornar a alma mais injusta e
ímpia. Mas, quando um mal estranho surge numa coisa, sem
que a ele se junte o mal particular, não deixemos que se diga
que essa coisa pode morrer disso.
Glauco E bem verdade que ninguém conseguirá provar
que as almas dos moribundos se tomam mais injustas por causa
da morte.
Sócrates Mas se alguém ousasse fazer face ao nosso
raciocínio e afirmar, para não ser forçado a reconhecer a imortalidade
da alma, que o moribundo se torna pior e mais ímpio,
concluiríamos que, se diz a verdade, a injustiça é, como a doença,
fatal para o homem que a tem dentro de si, e que é deste mal,
mortífero por natureza, que perecem aqueles que o recebem:
os mais injustos, mais cedo; os menos injustos, mais tarde; ao
passo que a causa real da morte dos maus é o castigo que lhes
é infligido pela sua injustiça.
Glauco Por Zeus! A injustiça não pareceria tão terrível
se fosse mortal para o que a recebe dentro de si, visto que seria
uma libertação do mal. Penso mesmo que, ao contrário, se descobrirá
que ela mata os outros, tanto quanto está em seu poder,
ao mesmo tempo que dá vitalidade e vigilância ao indivíduo
que a tem. Assim, está longe de ser uma causa de morte.
Sócrates Estás certo. Se a perversidade própria da alma,
se o seu próprio mal, não a pode matar nem destruir, um mal
destinado à destruição de uma coisa diferente levará muito tempo
a destruir a alma ou qualquer outro objeto que não seja
aquele a que está ligado.
Glauco Sim, assim aeio.
Sócrates Então, quando não existir apenas um único
mal, próprio ou estranho, que possa destruir uma coisa, é evidente
que essa coisa deve existir sempre. Assim, se existe sempre,
é imortal.
Glauco Certamente.
Sócrates Consideremos isto verdade. Porém, se assim
é, podes conceber que são sempre as mesmas almas que existem,
já que o seu número não pode diminuir, visto que nenhuma
morre, nem aumentar. Desse modo, se o número dos seres imortais
aumentasse, sabes que aumentaria com o que é mortal e,
nesse caso, tudo seria imortal.
Glauco E assim.
Sócrates Mas não acreditaremos nisso, pois iria contra a
razão, nem também que, na sua essência, a alma esteja cheia de
diversidade, de dessemelhança e de diferença consigo mesma.
Glauco Como?
Sócrates Não deve ser eterno, como vimos ocorrer
para a alma, um composto de várias partes, se essas partes
não formarem um conjunto perfeito.
Glauco Não me parece mesmo possível.
Sócrates Este argumento que acabo de apresentar e outros
obrigam-nos a concluir que a alma é imortal. Para conhecer
bem a sua natureza, outrossim, não devemos observá-la, como
vimos fazendo, no estado de degradação em que a põem a sua
união com o corpo e outras misérias. E preciso contemplá-la
com atenção com os olhos do espírito, tal como é quando é
pura. Então a veremos infinitamente mais bela e distinguiremos
com mais clareza a justiça e a injustiça e todas as coisas de que
acabamos de falar. O que dissemos da alma é verdadeiro em
relação ao seu estado presente. Por isso, a vimos no estado em
que poderíamos ver Glauco, o Marinheiro: teríamos muita dificuldade
em reconhecer a sua natureza primitiva, porque as
antigas partes do seu corpo foram umas partidas, outras gastas
e totalmente desfiguradas pelas águas, e formaram-se partes
novas, compostas de conchas, algas e seixos. Também vemos
assim a alma, desfigurada por mil males. Mas eis, Glauco, o
que se deve ver nela.
Glauco O quê?
Sócrates O seu amor pela verdade. Temos de considerar
que objetos ela atinge, que companhias procura, devido
ao seu parentesco com o divino, o imortal e o eterno. O que
viria a ser se se entregasse por completo a essa procura, se,
levada por um nobre impulso, se erguesse do mar em que
agora se encontra e sacudisse as pedras e as conchas que a
cobrem, porque se alimenta de terra, crosta espessa e rude
de areia e rocha que se desenvolveu à sua superfície nos festins
ditos bem-aventurados. Aí então seria possível ver a sua
verdadeira natureza, se é multiforme ou uniforme e como é
constituída. Quanto ao presente, julgo que descrevemos perfeitamente
as afecções que experimenta e as formas que toma
no decurso da sua existência
Glauco Com certeza.
Sócrates Mas quê! Não refutamos da discussão todas
as considerações estranhas, evitando louvar a justiça por causa
das recompensas ou da reputação que proporciona, como fizeram
l-lesíodo e Homero? Não descobrimos que a justiça é o
bem supremo da alma considerada em si mesma e que esta
deve realizar o que é justo, quer possua ou não o anel de Giges
e, para além desse anel, o elmo de Hades?
Glauco E a mais pura verdade.
Sócrates Então, Glauco, podemos, sem que nos censurem,
restituir à justiça e às outras virtudes, independentemente
das vantagens que lhes são próprias, as recompensas de toda
espécie que a alma delas retira, da parte dos homens e dos
deuses, durante a vida e depois da morte?
Glauco Certamente.
Sócrates Então me devolverás o que te emprestei durante
a discussão?
Glauco O que é?
Sócrates Concedi que o justo podia passar por mau e
o mau por justo. A bem da verdade, tu pedistes que, embora
fosse impossível enganar os deuses e os homens, te concedesse
isso, para que a justiça pura fosse julgada em relação à injustiça
pura. Não te lembras?
Glauco Não agiria bem se não me lembrasse.
Sócrates Assim, visto que foram julgadas, volto a pedir,
em nome da justiça, que a reputação que ela possui junto dos
deuses e dos homens lhe seja reconhecida por nós, com o fito
de que ganhe também os prêmios que recebe por essa reputação
e que distribui àqueles que a têm. Com efeito, demonstramos
que ela dispensa os bens que provêm da realidade e não engana
os que a recebem realmente na alma.
Glauco O que pedes é justo.
Sócrates Portanto, em primeiro lugar, restitui a mim
este ponto: que, pelo menos, os deuses não se enganem a respeito
do que são o justo e o injusto.
Glauco Pois bem, restituo.
Sócrates E, se os deuses não se enganam, têm amor
pelo primeiro, e, pelo segundo, ódio, como concordamos no
princípio.
Glauco Exato.
Sócrates Mas não havemos de reconhecer que tudo o
que vem dos deuses será, para aquele que eles amam, tão bom
quanto possível, a não ser que tenha atraído sobre si, por uma
fatia anterior, algum mal inevitável?
Glauco Sim, certamente.
Sõcrates Temos de admitir, então, que, quando um homem
justo está exposto à pobreza, à doença ou a qualquer outro
destes pretensos males, isso acabará por ser-lhe proveitoso, durante
a vida ou depois da morte, pois os deuses não podem
desprezar alguém que se esforça por ser justo e por tomar-se,
tanto quanto é possível ao homem, pela prática da virtude, semelhante
a ela.
Glauco E natural que um tal homem não seja desprezado
pelo seu semelhante.
Sócrates E em relação ao injusto, não se deve pensar o
contrário?
Glauco Sem dúvida alguma.
Sócrates São estes, com efeito, os prêmios que, por parte
dos deuses, pertencem ao justo.
Glauco Assim o penso.
Sócrates E por parte dos homens? Não é assim que as
Coisas acontecem, na verdade? Os patifes astutos não fazem
como esses atletas que conem bem até o limite do estádio, mas
não fazem o mesmo na volta? Começam por lançar-se com rapidez,
mas ao final as pessoas riem deles, quando os vêem, de
orelha caída, retirar-se precipitadamente sem serem coroados.
Ao contrário, os verdadeiros conedores chegam ao fim, ganham
o prêmio e recebem a coroa. Ora, não costuma se passar o mesmo
em relação aos justos? No termo de qualquer empreendimento,
do trato que têm com os outros e da sua vida, não adquirem
prestígio e não ganham os prêmios que os homens dão?
Glauco Certamente!
Sócrates Permitirás, portanto, que eu aplique aos justos
o que tu disseste dos maus. Pretendo que os justos, tendo chegado
à idade madura, obtenham na sua cidade as magistraturas
que queiram obter, que escolham a sua mulher onde quiserem
e dêem os seus filhos em casamento a quem melhor lhes aprouver.
E tudo aquilo que disseste desses, digo-o agora destes. E
direi também sobre os maus que a maioria deles, mesmo ao
esconder o que são durante a juventude, se deixam apanhar
no fim da sua carreira e se tomam motivo de troça. Quando
chegam à velhice, são insultados na sua miséria pelos estrangeiros
e pelos cidadãos, são chicoteados e sujeitados a esses
castigos que com razão qualificavas de atrozes. Depois, são torturados,
queimados com fenos em brasa. Vê se estou a enumerar
todos os suplícios que suportam e vê se me podes permitir que -
fale assim.
Glauco Certamente, pois que tens razão.
Sócrates São estes os prêmios, as recompensas e os
presentes que o justo recebe dos deuses e dos homens durante
a vida, para além dos bens que lhe proporciona a própria
justiça.
Glauco São belas e sólidas recompensas, bem o vejo.
Sócrates Porém não são nada, nem pelo número nem
pela grandeza, em compara5ão com o que aguarda, depois da
morte, o justo e o injusto. E isto que se deve entender, a fim
de que um e outro recebam até o fim o que lhes é devido pela
argumentação.
Glauco Dize, pois há bem poucas coisas que eu escute
com mais deleite.
Sócrates Não é a história de Alcino que te vou contar,
mas a de um homem valoroso: Er, filho de Armênio, originário
de Panfília. Ele morrera numa batalha; dez dias depois, quando
recolhiam os cadáveres já putrefatos, o seu foi encontrado intacto.
Levaram-no para casa, a fim de o entenarem, mas, ao
décimo segundo dia, quando estava estendido na pira, ressuscitou.
Assim que recuperou os sentidos, contou o que tinha
visto no além. Quando, disse ele, a sua alma deixara o corpo,
pusera-se a caminhar com muitas outras, e juntos chegaram a
um lugar divino onde se viam na terra duas aberturas situadas
lado a lado, e no céu, ao alto, duas outras que lhes ficavam
fronteiras. No meio estavam sentados juízes, que, tendo dado
a sua sentença, ordenavam aos justos que se dirigissem à direita
na estrada que subia até o céu, depois de terem posto à sua
frente um letreiro contendo o seu julgamento; e aos maus que
se dirigissem à esquerda na estrada descendente, levando, eles
também, mas atrás, um letreiro em que estavam indicadas todas
as suas ações. Como ele se aproximasse, por seu turno, os juizes
disseram-lhe que devia ser para os homens o mensageiro do
além e recomendaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que
se passava naquele lugar. Viu as almas que se iam, uma vez
julgadas, pelas duas aberturas correspondentes do céu e da terra;
pelas duas outras entravam almas que, de um lado, subiam
das profundezas da terra, cobertas de sujeira e pó. Do outro,
desciam, puras, do céu, e todas essas ai que chegavam sem
cessar, pareciam ter feito uma longa viagem. Chegavam à pianície
com alegria e acampavam aí como num dia de festa.
As que se conheciam desejavam-se as boas-vindas, e as que
vinham do seio da terra informavam-se do que se passava
no céu. As demais, que vinham do céu, informavam do que
se passava debaixo da terra. As primeiras contavam as suas
aventuras gemendo e chorando, à lembrança dos inúmeros
males e de tudo que tinham sofrido ou visto sofrer, durante
a sua estada subterrânea, que tem mil anos de duração, ao
passo que as outras, que vinham do céu, falavam de prazeres
deliciosos e de visões de extraordinário esplendor. Diziam
muitas coisas, Glauco, que exigiriam muito tempo para ser
relatadas. Mas aqui está o resumo, segundo Er. Por determinado
número de injustiças que tinha cometido em detrimento
de uma pessoa e por determinadO número de pessoas em
detrimento das quais tinha cometido a injustiça, cada alma
recebia, para cada falta, dez vezes a sua punição e cada punição
durava cem anos, ou seja, a duração da vida humana,
a fim de que a expiação fosse o décuplo do crime. Por exemplo,
os que tinham causado a morte de muitas pessoas, seja
traindo cidades OU exércitos, seja reduzindo homens à escravidão,
seja se prestando a cometer qualquer outro tipo de
maldade, eram atormentados dez vezes mais por cada um
desses crimes. Os que, em vez disso, tmham praticado o bem
à sua volta, tinham sido justos e piedosos, recebiam, na mesma
proporção, a recompensa merecida. A respeito dos que foram
mortos ainda na infância ou que viveram apenas alguns dias,
Er dava outros pormenores que não merece a pena referir.
Para a impiedade e a piedade em relação aos deuses e aos
pais e para o homicídio, havia, segundo ele, castigos e recompensas
ainda maiores.
Ele dizia tet estado presente quando uma alma perguntou
a outra onde estava Ardieu, o Grande. Este Ardieu fora
tirano de uma cidade de Panfília mil anos antes dessa época.
Havia matado o seu velho pai, o irmão primogénito e cometido,
dizia-se, muitos outros sacrilégios. Bem, a alma interrogada
respondeu Não veio, não virá nunca a este lugar.
Porque, entre outros espetáculos horríveis, vimos este: quando
estávamos perto da abertura e prestes a subir, depois de
termos sofrido as nossas penas, vimos de súbito esse tal Ardieu
com outros, a maior parte, tiranos como ele, mas havia
também particulares que se tinham tornado culpados de
grandes crimes. Estes julgavam poder subir, mas a abertura
recusou-lhes a passagem e mugia sempre que tentava sair
um desses homens que se tinham consagrado inteiramente
ao mal ou que não tinham expiado o suficiente. Então, dizia
ele, seres selvagens, com os corpos em chamas, que estavam
ali perto, ouvindo o mugido, agarraram alguns e levaramnos.
Quanto a Ardieu e aos outros, depois de lhes terem
manietado e amarrado os pés e a cabeça, derrubaram-nos,
esfolaram-nos, depois arrastaram-nos para fora do caminho
e fizeram-nos dobrar sobre arbustos espinhosos, declarando
a todos os que passavam por que motivo os tratavam assim
e que iam precipitá-los no Tártaro. Nesse lugar, acrescentava,
tinham sentido terrores de toda espécie, mas este sobrepunha-
se a todos: cada um temia que o mugido se fizesse
ouvir no momento em que deveria subir e foi para eles
uma viva alegria poderem subir sem que ele rompesse o
silêncio. Tais eram, mais ou menos, as penas e os castigos,
assim como as recompensas correspondentes.
Cada grupo passava sete dias na planície. Ao oitavo,
devia levantar o acampamento e pôr-se a caminho para chegar,
quatro dias mais tarde, a um lugar de onde se via uma
luz direita como uma coluna estendendo-se desde o alto, através
de todo o céu e de toda a terra, muito semelhante ao
arco-íris, mas ainda mais brilhante e mais pura. Chegaram
lá após um dia de marcha; e aí, no meio da luz, viram as
extremidades dos vínculos do céu, porque essa luz é o laço
do céu: como as armaduras que cingem os flancos das trirremes,
mantêm o conjunto de tudo o que ele arrasta na sua
revolução. A essas extremidades está suspenso o fuso da Necessidade,
que faz girar todas as esferas; a haste e a agulha
são de aço, e a roca, uma mistura de aço e outras matérias.
É a seguinte a natureza da roca: quanto à forma, assemelha-se
às deste mundo, mas, segundo o que dizia Er, deve-se representá-
la como uma grande roca oca por dentro, à qual se
ajusta outra roca semelhante, mas menor, do modo como se
ajustam umas caixas às outras, e, igualmente, uma terceira,
uma quarta e mais quatro. Com efeito, há ao todo oito rocas
inseridas umas nas outras, deixando ver no alto os seus bordos
circulares e formando a superfície contínua de uma única roca
em tomo da baste, que passa pelo meio da oitava. O bordo
circular da primeira roca, a que fica no exterior, é a mais larga,
depois seguem esta ordem: na segunda posição o da sexta, na
terceira posição o da quarta~ na quarta posição o da oitava, na
quinta o sétima, na sexta oda quinta, na sétima o da terceira
e na oitava o da segunda. O primeiro círculo, o maior de todos,
é o mais cintilante; o sétimo brilha com o mais vivo esplendor;
o oitavo tinge-se da luz que vem do sétimo; o segundo e o
quinto, que têm mais ou menos a mesma tonalidade, sao mais
amarelos que os anteriores; o terceiro é o mais branco de todos;
o quarto é avermelhado; e o sexto é o segundo mais alvo. Todo
o fuso gira com um mesmo movimento circular, mas, no conjunto
arrastado por este movimento, os sete círculos interiores
realizam lentas revoluções de sentido contrário ao do todo. Destes
círculos, o oitavo é ornais rápido, depois seguem-se o sétimo,
o sexto e o quinto, que ocupam a mesma posição em velocidade;
nesta mesma ordem, o quarto ocupava a terceira posiçao nesta
rotação inversa; o terceiro, a quarta posição, e o segundo, a
quinta. O próprio fuso gira sobre os joelhos da Necessidade.
No alto de cada círculo está uma Sereia, que gira com ele fazendo
ouvir um único som, uma única nota; e estas oito notas compõem
em conjunto uma única harmonia. Três outras mulheres,
sentadas ao redor a intervalos iguais, cada uma num trono, as
filhas da Necessidade, ou seja, as Moiras, vestidas de branco,
com a cabeça coroada de grinaldas. Elas cantam acompanhando
a harmonia das Sereias, e são três: Láquesis canta o passado,
Cloto, o presente, e Atropo, o futuro. E Cloto toca de vez em
quando com a mão direita no circulo exterior do fuso, para
fazê-lo girar, enquanto Ãtropo, com a mão esquerda, faz girar
os círculos interiores. Quanto a Láquesis, toca alternadamente
no primeiro e nos outros, com uma e outra mão.
Assim, quando chegaram, tiveram de se apresentar imediatamente
a Láquesis. Antes disso, um hierofante os pôs por
ordem; depois, tirando dos joelhos de Láquesis destinos e modelos
de vida, subiu a um estrado elevado e falou assim:
Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade, Almas efêmeras,
ides começar urna nova carreira e renascer para a condição
mortal. Não é um gênio que vos escolherá, vós mesmos
escolhereis o vosso gênio. Que o primeiro designado pela sorte
seja o primeiro a escolher a vida a que ficará ligado pela necessidade.
A virtude não tem senhor: cada um de vós, consoante
a venera ou a desdenha, terá mais ou menos. A responsabilidade
é daquele que escolhe. Deus não é responsável.
A estas palavras, lançou os destinos e cada um apanhou
o que caíra perto dele, exceto Er, porque não lhe foi permitido.
Cada um ficou então sabendo qual a posição que lhe tinha cabido
por sorte. Depois, o hierofante estendeu diante deles modelos
de vida em número muito superior ao das almas presentes.
Havia de toda espécie: todas as vidas dos animais e todas as
vidas humanas; viam-se tiranias, umas que duravam até a morte,
outras, interrompidas a meio caminho, que acabavam na
pobreza, no exilio e na mendicância. Havia também vidas de
homens famosos, quer pelo seu aspecto físico, beleza, força ou
aptidão para a luta, quer pela sua nobreza, e grandes qualidades
dos seus antepassados. Havia também as obscuras em todos
os aspectos, e o mesmo acontecia para as mulheres. Mas essas
vidas não implicavam nenhum caráter determinado da alma,
porque esta devia por lei mudar consoante a escolha feita. Todos
os outros elementos da existência estavam misturados com a
riqueza, a pobreza, a doença e a saúde, e também os meiostermos
entre eles. Parece que é aqui, Glauco, que reside para
o homem o maior perigo. Aqui está a razão por que cada um
de nós, pondo de lado qualquer outro estudo, deve, sobretudo,
preocupar-se em procurar e cultivar este, ver se está em condições
de conhecer e descobrir o homem que lhe dará a capacidade
e a ciência de distinguir as boas e as más condições e,
na medida do possível, escolher sempre as melhores. Tendo
em mente qual é o efeito dos elementos de que acabamos de
falar, tomados juntos e depois em separado, sobre a virtude de
uma vida, conhecerá o bem e o mal que proporciona uma certa
beleza, unida à pobreza ou à riqueza e acompanhada desta ou
daquela disposição da alma; quais são as conseqüências de um
nascimento ilustre ou obscuro, de uma condição privada ou
pública, da força ou da fraqueza, da facilidade ou da dificuldade
em aprender e de todas as qualidades semelhantes da alma,
naturais ou adquiridas, quando se misturam umas com as outras,
para que, confrontando todas estas considerações e não
perdendo de vista a natureza da alma, possa escolher entre
uma vida má e uma vida boa, chamando má à que possa tomar
a alma mais injusta e boa à que a torne mais justa, sem atender
ao resto. Na verdade, vimos que, durante esta vida e depois
da morte, é a melhor escolha que se pode fazer. E é preciso
defender esta opinião com absoluta inflexibilidade ao descer ao
Hades, para que também lá não se deixe deslumbrar pelas riquezas
e pelos miseráveis objetos desta natureza; não se exponha,
lançando-se sobre tiranias ou condições afins, causando,
assim, males sem número e sem remédio e sofrendo, por conseguinte,
outros ainda maiores; para saber, pelo contrário, escolher
sempre uma condição intermediária e evitar os excessos nos dois
sentidos, nesta vida, tanto quanto possíveL e em toda a vida futura,
porque é a isto que se liga a maior felicidade humana.
Pois bem, segundo o relato do mensageiro do além, o Hierofante
dissera, ao lançar os destinos: Mesmo para o ultimo a
chegar, se fizer uma escolha sensata e perseverar com ardor na
existência escolhida, há uma condição agradável, e não má. Que
o primeiro a escolher não se mostre negligente e que o último
não perca a coragem.
Quando acabou de pronunciar estas palavras, disse Er,
aquele a quem coubera o primeiro destino escolheu de imediato
a maior tirania e, arrebatado pela loucura e avidez, apossou-se
dela sem prestar a devida atenção ao que fazia; e não viu que
o destino implicava que o seu possuidor comeria os próprios
filhos e cometeria outros horrores; mas, depois de cair em si,
bateu no peito e deplorou a sua escolha, esquecendo os avisos
do hierofante, pois que, em vez de acusar a si mesmo por seus
males, voltava-se contra a sorte, os demônios e tudo o mais.
Era um dos que vinham do céu: tinha passado a vida anterior
numa cidade bem policiada e aprendido a virtude por hábito
e sem filosofia. E pode-se afirmar que, entre as almas assim
pegas, as que vinham do céu não eram as menos numerosas,
porque não tinham sido postas à prova pelos sofrimentos; pelo
contrário, a maior parte das que chegavam da terra, havendo
sofrido e visto sofrer as outras, não se precipitavam na escolha.
Daí que, como dos acasos do sorteio, a maior parte das almas
trocasse um bom destino por um mau e vice-versa. E assim, se
sempre que um homem nascesse para a vida terrestre se dedicasse
salutarmente à filosofia e o destino não o convocasse a
escolher entre os últimos, parece, segundo o que se conta do
além, que não só seria feliz neste mundo, mas que a sua passagem
deste mundo para o outro e o regresso se fariam não
pelo rude caminho subterrâneo, mas pela via unida do céu.
O espetáculo das almas que escolhem a sua condição, acrescentava
Er, valia a pena ser visto, porque era digno de dó, ridículo
e estranho. Com efeito, era segundo os hábitos da vida
anterior que, a maioria das vezes, faziam a sua escolha. Ele
dizia ter visto a alma que foi um dia a de Orfeu escolher a vida
de um cisne, porque, por ódio ao sexo que lhe dera a morte,
não queria nascer de uma mulher. Tinha visto a alma de Tâmiras
escolher a vida de um rouxinol, um cisne trocar a sua condição
pela do homem e outros animais canoros fazerem o mesmo. A
alma chamada em vigésimo lugar a escolher optou pela vida
de um leão: era a de Ajax, filho de Télamon, que não queria
voltar a nascer no estado de homem, pois não tinha esquecido
o julgamento das armas. A seguinte era a alma de Agamenon;
tendo também aversão pelo gênero humano, por causa das desgraças
passadas, trocou a sua condição pela de uma águia. A
alma de Atalanta, estando junto com as que tinham obtido uma
situação intermediária, considerando as grandes honras prestadas
aos atletas, não pôde ir mais além e escolheu-as. Em seguida,
viu a alma de Epeio, filho de Panopeu, passar à condição
de mulher perita, e, ao longe, nas últimas filas, a do bobo Tersites
revestir-se da forma de um macaco. Por fim, a alma de Ulisses,
a quem a sorte fixara o último lugar, adiantou-se para escolher;
despojada da sua ambição pela lembrança das fadigas passadas,
andou muito tempo à procura da condição tranqüila de um
homem comum. Com certa dificuldade, descobriu uma que jazia
a um canto, desdenhada pelos outros; e, quando a viu, disse
que não teria agido de maneira diferente se a sorte a tivesse
chamado em primeiro lugar e, alegre, escolheu-a. De igual modo
os animais passavam à condição humana ou à de outros animais,
os injustos nas espécies ferozes, os justos nas espécies domesticadas;
faziam-se assim cruzamentos de todas as espécies.
Depois que todas as almas escolheram a sua vida, avançaram
para Láquesis pela ordem que a sorte lhes fixara. Esta
deu a cada uma o gênio que tinha preferido, para lhe servir de
guardiã durante a existência e realizar o seu destino. O gênio
conduzia-a primeiramente a Cloto e, fazendo-a passar por baixo
da mão desta e sob o turbilhão do fuso em movimento, ratificava
o destino que ela havia escolhido. Depois de ter tocado o fuso,
levava-a para a trama de Átropo, para tomar irrevogável o que
tinha sido fiado por Cloto; então, sem se voltar, a alma passava
por baixo do trono da Necessidade; e, quando todas chegaram
ao outro lado, dirigiram-se para a planície do Lete, passando
por um calor terrível que queimava e sufocava, pois esta planície
está despida de árvores e de tudo o que nasce da terra. Ao
anoitecer, acamparam nas margens do rio Ameles, cuja água
nenhum vaso pode conter. Cada alma é obrigada a beber uma
certa quantidade dessa água, mas as que não usam de prudência
bebem mais do que deviam. Ao beberem, perdem a memória
de tudo. Então, quando todas adormeceram e a noite chegou
à metade, um trovão se fez ouvir, acompanhado de um tremor
de terra, e as almas, cada uma por uma via diferente, lançadas
de repente nos espaços superiores para o lugar do seu nascimento,
faiscaram como estrelas. Quanto a ele, dizia Er, tinhamno
impedido de beber a água; contudo, ele não sabia por onde
nem como a sua alma se juntara ao corpo: abrindo de repente
os olhos, ao alvorecer, vira-se estendido na pira.
E foi assim, Glauco, que o mito foi salvo do esquecimento
e não se perdeu, e pode salvar-nos, se lhe prestarmos fé; então
atravessaremos com facilidade o Lete e não mancharemos a
nossa alma. Portanto, se aaeditas em mim, crendo que a alma
é imortal e capaz de suportar todos os males, assim como todos
os bens, nos manteremos sempre na estrada ascendente e, de
qualquer maneira, praticaremos a justiça e a sabedoria. Assim
estaremos de acordo conosco e com os deuses, enquanto estivermos
neste mundo e quando tivermos conseguido os prêmios
da justiça, como os vencedores que se dirigem à assembléia
para receberem os seus presentes. E seremos felizes neste mundo
e ao longo da viagem de mil anos que acabamos de relatar.
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